Deixar a vida pela porta dos fundos
Pedro J. Bondaczuk
O que leva determinadas pessoas a darem cabo da própria vida, a deixá-la pela “porta dos fundos”? Sempre considerei essa atitude extrema um mistério. As causas, ou os pretextos, são os mais diversos, e injustificáveis (nada justifica tamanha insanidade), mas todos desembocam numa raiz comum: inadaptação. Na fragilidade psicológica, gerada, no mais das vezes, por profunda carência afetiva. Na incompetência para lidar com fracassos e frustrações. E vai por aí afora.
Trata-se de um tema delicadíssimo, tido, até, como tabu, tanto que a imprensa evita de abordá-lo. Há uma espécie de pacto tácito, nas redações dos jornais e de outros meios de comunicação, para não noticiar episódios desse tipo. Eles são sumamente dolorosos para as famílias dos suicidas e há sempre o risco de induzirem pessoas, com acentuada fragilidade psicológica, a imitarem esse gesto.
Imagino o desespero que se apossa de um suicida, tão irresistível, que o leva a perpetrar esse ato extremo. A prevenção do suicídio é uma das causas que abracei há tempos. Não integro, é verdade, entidades cuja finalidade é a de prevenir e evitar esse ato extremado, como o Centro de Valorização da Vida e congêneres. Mas aprendi muito a propósito. Não raro, o simples fato de nos dispormos a ouvir o desabafo de suicidas potenciais, sem sermões inúteis e ineficientes para a ocasião, mas com simpatia e compreensão, demove – não sem muita paciência e persistência – essas pessoas de cometerem uma ação tão terrível e definitiva.
Há catorze anos doei todos os direitos comerciais do meu livro “Por uma nova utopia”, lançado em 1998 pela Editora “M” – com o respectivo termo de doação registrado em cartório – ao Centro de Defesa da Vida, entidade voltada à prevenção do suicídio. Não me arrependo, claro, dessa decisão. Mais eu faria se mais pudesse. Afinal, a sensação de haver, de alguma forma, contribuído para salvar um número desconhecido (mas certamente elevado) de vidas, não tem preço.
E por que trago o tema à baila, num espaço voltado à literatura? Porque são vários, mas vários mesmo, em quantidade surpreendente, os escritores que cometeram essa loucura. Uns, fizeram isso ao descobrirem doenças incuráveis e por não suportaram a dor. Outros agiram por impulso momentâneo, após profundo desgosto amoroso. As circunstâncias (pretextos?) foram os mais variados, mas o resultado sempre foi o mesmo: morte prematura, desnecessária e evitável de artistas sensíveis e talentosos.
Um desses escritores suicidas foi o poeta, contista e ficcionista português, Mário de Sá Carneiro, amigo e discípulo de Fernando Pessoa (que exerceu inegável influência em seu estilo e maneira de encarar a literatura). Esse artista criativo e genial nasceu, em 19 de maio de 1890, numa família abastada da alta burguesia de Portugal. Materialmente, portanto, foi um privilegiado.
Era dotado de uma inteligência, até precoce, muito acima da média. Estudou nas melhores escolas do seu tempo. Talentosíssimo, iniciou-se na poesia aos 12 anos de idade. Aos 15, já traduzia textos de Victor Hugo e, com 17, obras de Goethe e Schiller. Em Coimbra, na Faculdade de Direito, conheceu aquele que seria o seu melhor e mais compreensivo amigo, Fernando Pessoa, que em 1912 o introduziu no círculo dos modernistas.
Mário de Sá Carneiro foi um dos grandes expoentes do Modernismo em Portugal e um dos mais ativos e produtivos integrantes da chamada Geração d’Orpheu. Tinha sucesso, tinha amigos, tinha mulheres, mas... Faltava-lhe algo, que não sabia definir o que era. Vivia amuado e insatisfeito, como se a vida lhe fosse pesado fardo e não a aventura fascinante (posto que não raro perigosa e surpreendente) que é. Olhasse para os lados e entenderia o que é sofrer de fato. Visitasse os bairros pobres, os hospitais, as prisões, compreenderia o quanto era privilegiado.
Desiludido com Coimbra, a cidade dos estudantes, que considerava atrasada e sem atrativos, mudou-se para Paris, onde passou a levar vida boêmia e dissoluta. Tornou-se, talvez sem se dar conta, alcoólatra. Por não ter limite nas fantasias e não saber administrar o dinheiro, chegou a passar fome. Mas seu grande problema consistia no fato de ser inadaptado socialmente e instável psicologicamente. Foi no ambiente cosmopolita de Paris que compôs grande parte da sua obra poética, entre os anos de 1912 e 1916.
Entre as obras de Sá Carneiro, destacam-se: “Amizade” (1912), peça teatral em parceria com Tomás Carreira Júnior; “Princípio” (1912), coletânea de novelas; “A confissão de Lúcio” (1913); “Céu em fogo” (1915), novelas; “Dispersão” (1913), poesia e “Indícios de ouro” (1937), poesia, póstumo.
Poeta genial, legou-nos poemas, como este:
Álcool
Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?
Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
E só de mim que ando delirante –
manhã tão forte que me anoiteceu.
Ou como este:
Último soneto
Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste...
--- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo porque muito te devi.
Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...
Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...
E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?
Ou, então, este:
Além-tédio
Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas
De as não ter e de nunca vir a tê-las
Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, enfim, de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.
Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu...Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia-a-dia
Cada vez mais velozes, mais esguios.
Uma vez que a vida que levava não o agradava e a que idealizava demorava a se concretizar, Sá Carneiro passou a viver uma angústia crescente, que o conduziria, finalmente, ao suicídio. Matou-se no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, ingerindo cinco frascos de arseniato de estricnina. Convidou o amigo, José de Araújo, para testemunhar sua agonia. Deixou, como bilhete de suicida, este poema:
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro...
Mário de Sá Carneiro deu cabo da vida em 26 de abril de 1916. Contava, então, com apenas 26 anos...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
O que leva determinadas pessoas a darem cabo da própria vida, a deixá-la pela “porta dos fundos”? Sempre considerei essa atitude extrema um mistério. As causas, ou os pretextos, são os mais diversos, e injustificáveis (nada justifica tamanha insanidade), mas todos desembocam numa raiz comum: inadaptação. Na fragilidade psicológica, gerada, no mais das vezes, por profunda carência afetiva. Na incompetência para lidar com fracassos e frustrações. E vai por aí afora.
Trata-se de um tema delicadíssimo, tido, até, como tabu, tanto que a imprensa evita de abordá-lo. Há uma espécie de pacto tácito, nas redações dos jornais e de outros meios de comunicação, para não noticiar episódios desse tipo. Eles são sumamente dolorosos para as famílias dos suicidas e há sempre o risco de induzirem pessoas, com acentuada fragilidade psicológica, a imitarem esse gesto.
Imagino o desespero que se apossa de um suicida, tão irresistível, que o leva a perpetrar esse ato extremo. A prevenção do suicídio é uma das causas que abracei há tempos. Não integro, é verdade, entidades cuja finalidade é a de prevenir e evitar esse ato extremado, como o Centro de Valorização da Vida e congêneres. Mas aprendi muito a propósito. Não raro, o simples fato de nos dispormos a ouvir o desabafo de suicidas potenciais, sem sermões inúteis e ineficientes para a ocasião, mas com simpatia e compreensão, demove – não sem muita paciência e persistência – essas pessoas de cometerem uma ação tão terrível e definitiva.
Há catorze anos doei todos os direitos comerciais do meu livro “Por uma nova utopia”, lançado em 1998 pela Editora “M” – com o respectivo termo de doação registrado em cartório – ao Centro de Defesa da Vida, entidade voltada à prevenção do suicídio. Não me arrependo, claro, dessa decisão. Mais eu faria se mais pudesse. Afinal, a sensação de haver, de alguma forma, contribuído para salvar um número desconhecido (mas certamente elevado) de vidas, não tem preço.
E por que trago o tema à baila, num espaço voltado à literatura? Porque são vários, mas vários mesmo, em quantidade surpreendente, os escritores que cometeram essa loucura. Uns, fizeram isso ao descobrirem doenças incuráveis e por não suportaram a dor. Outros agiram por impulso momentâneo, após profundo desgosto amoroso. As circunstâncias (pretextos?) foram os mais variados, mas o resultado sempre foi o mesmo: morte prematura, desnecessária e evitável de artistas sensíveis e talentosos.
Um desses escritores suicidas foi o poeta, contista e ficcionista português, Mário de Sá Carneiro, amigo e discípulo de Fernando Pessoa (que exerceu inegável influência em seu estilo e maneira de encarar a literatura). Esse artista criativo e genial nasceu, em 19 de maio de 1890, numa família abastada da alta burguesia de Portugal. Materialmente, portanto, foi um privilegiado.
Era dotado de uma inteligência, até precoce, muito acima da média. Estudou nas melhores escolas do seu tempo. Talentosíssimo, iniciou-se na poesia aos 12 anos de idade. Aos 15, já traduzia textos de Victor Hugo e, com 17, obras de Goethe e Schiller. Em Coimbra, na Faculdade de Direito, conheceu aquele que seria o seu melhor e mais compreensivo amigo, Fernando Pessoa, que em 1912 o introduziu no círculo dos modernistas.
Mário de Sá Carneiro foi um dos grandes expoentes do Modernismo em Portugal e um dos mais ativos e produtivos integrantes da chamada Geração d’Orpheu. Tinha sucesso, tinha amigos, tinha mulheres, mas... Faltava-lhe algo, que não sabia definir o que era. Vivia amuado e insatisfeito, como se a vida lhe fosse pesado fardo e não a aventura fascinante (posto que não raro perigosa e surpreendente) que é. Olhasse para os lados e entenderia o que é sofrer de fato. Visitasse os bairros pobres, os hospitais, as prisões, compreenderia o quanto era privilegiado.
Desiludido com Coimbra, a cidade dos estudantes, que considerava atrasada e sem atrativos, mudou-se para Paris, onde passou a levar vida boêmia e dissoluta. Tornou-se, talvez sem se dar conta, alcoólatra. Por não ter limite nas fantasias e não saber administrar o dinheiro, chegou a passar fome. Mas seu grande problema consistia no fato de ser inadaptado socialmente e instável psicologicamente. Foi no ambiente cosmopolita de Paris que compôs grande parte da sua obra poética, entre os anos de 1912 e 1916.
Entre as obras de Sá Carneiro, destacam-se: “Amizade” (1912), peça teatral em parceria com Tomás Carreira Júnior; “Princípio” (1912), coletânea de novelas; “A confissão de Lúcio” (1913); “Céu em fogo” (1915), novelas; “Dispersão” (1913), poesia e “Indícios de ouro” (1937), poesia, póstumo.
Poeta genial, legou-nos poemas, como este:
Álcool
Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?
Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
E só de mim que ando delirante –
manhã tão forte que me anoiteceu.
Ou como este:
Último soneto
Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste...
--- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo porque muito te devi.
Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...
Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...
E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?
Ou, então, este:
Além-tédio
Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas
De as não ter e de nunca vir a tê-las
Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, enfim, de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.
Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu...Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia-a-dia
Cada vez mais velozes, mais esguios.
Uma vez que a vida que levava não o agradava e a que idealizava demorava a se concretizar, Sá Carneiro passou a viver uma angústia crescente, que o conduziria, finalmente, ao suicídio. Matou-se no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, ingerindo cinco frascos de arseniato de estricnina. Convidou o amigo, José de Araújo, para testemunhar sua agonia. Deixou, como bilhete de suicida, este poema:
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro...
Mário de Sá Carneiro deu cabo da vida em 26 de abril de 1916. Contava, então, com apenas 26 anos...
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1 comment:
Acredito já ter lido essa história, talvez a mesma crônica. Vida acelerada, do começo ao fim. Em tão pouco tempo, viveu tudo que precisava. Curiosa maturidade precoce. Leitura necessária, hoje.
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