Friday, January 06, 2012







Final sem happy end

Pedro J. Bondaczuk

As histórias de amor, via de regra, costumam ter “happy end”, em que o herói beija a heroína, casa-se com ela e ambos vivem “felizes para sempre”. É aqui, no entanto, que todas elas pecam, embora seja o que os leitores sempre esperam. A vida não é assim. São raros, raríssimos, os finais felizes que ela permite. Ademais, dada a efemeridade humana, esse tal de “para sempre” é deslavada mentira. Não existe! É conto da carochinha. É verdade que o poetinha, Vinícius de Moraes, determinou que “o amor é eterno...” Todavia, acrescentou, em seu basilar poema em que faz essa afirmação, como quem não quer nada, esta verdade inegável e fatal (posto que amarga): “eterno... enquanto dura”.
A história de amor narrada por Urariano Mota, no romance “Soledad no Recife” (Boitempo Editorial), não cai nessa esparrela, nesse engodo, nessa armadilha, tão do agrado das ingênuas mocinhas românticas, com a cabeça cheia de sonhos e fantasias, mas sem a mesma, ou sequer próxima, dose de juízo. Esse primoroso livro não tem o clássico “happy end”. Nem por isso (ou exatamente por causa disso) deixa de ser belíssimo, poético, posto que pungente e frustrante caso de amor.
Urariano inicia o 12º capítulo, o clímax do enredo (boa parte do qual foi a vida que urdiu e que o autor se limitou a transcrever, com a força e a competência do seu talento), com esta patética e dolorosa confissão, feita por seu personagem simultaneamente protagonista central da história e seu narrador “Chegamos aqui ao mais difícil de escrever, de narrar, de contar”. Pudera! Como você se sentiria ao descrever as circunstâncias da morte da pessoa amada, ainda mais da maneira brutal e covarde como a de Soledad Barrett Viedma ocorreu? Eu não conseguiria fazer descrição alguma. Abriria mão da tarefa e ficaria curtindo em silêncio minha mágoa e minhas saudades.
E Urariano prossegue, sempre na voz do seu personagem-narrador, ainda neste primeiro parágrafo do capítulo 12: “Com, a mão na testa, ponho-me a refletir. A primeira frase que me vem, sem aviso, é: passei 37 anos para entender e contar este momento. Mas quando isto me digo, sinto que deveria esperar mais 37 anos, se mais vida eu tivesse. Para não mergulhar no lusco-fusco, aurora ou escuridão de uma probabilidade, entro e começo com as poucas ferramentas que consegui ao longo destes anos. Mas invoco a paciência e a coragem dos que me lêem, porque preciso de ajuda nesta difícil travessia” (...)
Um leitor mais chato e desatento, ou que não lesse o livro até o final, no afã de encontrar contradição onde ela sequer existe, certamente observará, triunfante: “Ora, se aquele que conta a história fazia parte do grupo guerrilheiro e era tão íntimo de todos os integrantes, a ponto de estar apaixonado por Soledad, por que sobreviveu? Ou não sobreviveu? Seria, porventura, um fantasma o que narra os fatos? O livro seria psicografado?”. Não, não, não, sujeitinho chato. Não existe essa contradição.
No segundo parágrafo do capítulo 12 isso está esclarecido, e muito bem. Está escrito: “Eu e Ivan escapamos no momento final. Em momentos de desânimo me pergunto para quê; em momentos de ânimo, me digo, eu sobrevivi para escrever este livro. A vida é uma ordem, mesmo quando falamos de uma destruição. Resta dizer por que escapamos, e se isso não consegue explicar, pelo menos devo dizer como pulamos fora do vórtice, do olho do furacão”. (...)
Urariano pouco, ou quase nada, fala do múltiplo traidor, Daniel, codinome do Cabo Anselmo. Não deita falação sobre seu hediondo ato, como algum escritor mais imperito faria. Eu, provavelmente, dedicaria capítulos e mais capítulos, carregados de inútil retórica e indisfarçável ódio, a esse cabuloso personagem, mas que desviaria o foco do que realmente importa na história: o amor e a magnífica figura de mártir de Soledad.
Da minha parte, também não me referirei a essa figura nefasta, cujos atos causam-me asco. A história se encarregou de mostrá-la, de corpo inteiro, em sua covardia e insensibilidade. Ademais, jornalistas muito mais competentes e precisos do que eu, fizeram isso com muito mais classe e exatidão do que a que talvez eu eventualmente tivesse.
É o caso, por exemplo, de Octávio Ribeiro (já falecido), o mitológico repórter policial conhecido como “Pena Branca” – que inspirou o seriado “Plantão de Polícia” da Rede Globo, na figura do repórter-detetive Waldomiro Pena, tão bem protagonizado por Hugo Carvana, que ficou no ar por mais de dois anos, em fins dos anos 70 e início dos 80 – que entrevistou o Cabo Anselmo, em 1984.
Outro que trouxe à tona, com o mesmo brilhantismo, o verdadeiro perfil dessa figura desprezível foi o não menos célebre jornalista policial, de velha e boa cepa de repórteres que parecem em extinção, Percival de Souza. Tudo o que eu pudesse dizer a seu respeito seria redundante e mais confundiria do que esclareceria o leitor sobre as ações e motivações desse tão controvertido (e, reitero, nefasto) personagem da época da ditadura militar, de triste memória para o Brasil.
Aliás, oportunamente, proponho-me a escrever sobre Octávio Ribeiro (esse sim merece ser sempre lembrado, e reverenciado), que tive o privilégio e a honra de conhecer pessoalmente, quando esteve em Campinas para lançar seu livro “Barra pesada”, ocasião em que chegamos a estreitar uma amizade que muito me honrou e que durou até sua morte.
Deixo por conta de Marco Albertim, cujo talento quem acompanha este espaço pode testemunhar, semanalmente, há já quase quatro anos, em sua coluna, para resumir o romance “Soledad no Recife”, de Urariano Mota, a partir da sua metade: “O sexto capítulo destila uma oração, sempre na primeira pessoa. O sétimo é particularmente tenso; título, Mota, há um grito sufocado pedindo título! O oitavo é acentuadamente digressivo, longo. Mas é aqui que o autor/narrador mostra-se fino na constatação: “Não ousávamos perguntar a que preço, a que preços, porque os desonestos mais desonestos são muito sensíveis à mais leve desconfiança.” E porque Daniel não amava Sol, diz o narrador: “Então ele era obrigado a fingir dentro do fingimento.” Finíssimo. A identidade do espião, ou o pressentimento do pior insinua-se na alma de Sol, no capítulo 10; as páginas nos dão ímpeto de torcer o pescoço de Daniel/Anselmo. A dor de Soledad vem a nu no capítulo 11; o autor soube, genial e poético, transmiti-la para nós; para nós e para a agonia do escritor”.
Faltou Albertim referir-se ao 12º capítulo, o do clímax de uma pungente história de amor, posto que sem happy end. E é, paradoxalmente, por causa da ausência de um final feliz que a figura majestática de Soledad Barrett Viedma não se apagará jamais da memória dos idealistas e dos amantes da liberdade, igualdade e fraternidade, por conta e responsabilidade desse escritor com “muita lenha” ainda para queimar: Urariano Mota.

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