Livro reabilita o Marquês de Sade
Pedro J. Bondaczuk
O marquês de Sade, ou Donatien Alphonse François, celebrizado como libertino, considerado um monstruoso psicopata e cujo nome foi usado para batizar uma psicopatia, o sadismo, "seria considerado um homem normal", caso vivesse nos dias de hoje. A tese é do escritor tunisiano Serge Bramly, autor do romance "O terror na alcova" (Editora Record), que gira em torno dos oito meses até aqui obscuros na vida desse personagem, ao mesmo tempo trágico e heróico, que desperta simultaneamente ira e piedade, por suas idéias e pela forma com que foi tratado, respectivamente. Trata-se do tempo em que permaneceu internado em Picpus, mistura de cárcere e de estalagem, onde alguns nobres foram instalados, às custas do Estado, à espera do momento de serem guilhotinados, no auge do Terror, em 1794, durante a Revolução Francesa.
Ao cabo da leitura do livro de Bramly fica no ar a pergunta: "Quem era mais desequilibrado, o marquês, cujo romance "Os cem dias de Sodoma" choca ainda hoje, (quando os horrores se tornaram banais), ou o regime que o puniu, que provocou na França um genocídio como poucos já perpetrados (comparável, guardadas as devidas proporções, ao Holocausto nazista, à carnificina do Khmer Vermelho no Camboja nos anos 70 ou à recente limpeza étnica na Bósnia)?". A história não tem sido justa com nenhum dos dois. Enquanto Sade é tido até hoje como um monstro, ele que não tirou vida alguma, a Revolução é citada como a fonte dos "Direitos Humanos", ela que violou o mais sagrado deles: o à vida.
Serge Bramly, em entrevista publicada em "O Globo", enfatiza que a "utilização do seu nome (o de Sade, para batizar o sadismo) é um pouco exagerada". Assegura que "no caso do termo sado-masoquista, ele seria muito mais 'maso' do que 'sado'. Enfatiza que "é importante ressaltar a diferença entre o que ele viveu e o que escreveu. O que viveu foram práticas sexuais relativamente banais. Já o que ele escreveu, isso sim, é sadismo. Para ele, se você não é capaz de exprimir as idéias mais monstruosas como dormir com a própria mãe, não é livre. A verdadeira liberdade de pensamento só acontece quando destruímos todas as barreiras. Nesse sentido, sua filosofia e sua moral são libertárias". A tese pode ser discutível, mas é válida.
Em suma, Sade permaneceu quase 46 anos de sua vida preso --- a primeira das prisões ocorreu ainda no reinado do rei Luís XVI, em 1768, acusado de haver flagelado uma mendiga e a última foi seu internamento no asilo de loucos de Charenton, onde morreu aos 74 anos de idade – exclusivamente por suas idéias. Nesse aspecto, pode ser comparado ao escritor franco-indiano Salman Rushdie, autor dos "Versículos Satânicos", punido pela "fathwa" (sentença de morte islâmica) ditada pelo líder supremo dos xiitas, o iraniano aiatolá Ruhollah Khomeini.
A diferença é que os líderes da Revolução Francesa tinham o poder de matar o marquês. Estranha-se que não o tenham feito, quando se sabe que mandaram para a guilhotina artistas, filósofos e cientistas notáveis, sem nenhuma vinculação com a política e a monarquia, como foi o caso do químico Lavoisier. Quem o "protegia" nos altos escalões? E por que? É um mistério que nunca foi esclarecido. Bramly narra em seu livro, inclusive, que os encarregados de escolher os que seriam guilhotinados estiveram em Picpus para buscar Sade para execução. Seu nome era o nono da lista. Viram-no, mas fizeram de conta que não estava ali. E no relatório que tinham que apresentar aos seus superiores registraram, simplesmente, que este não foi encontrado.
O autor de "O terror na alcova" trabalhou no Brasil, como fotógrafo de moda, entre 1971 e 1973. Sobre essa experiência, confessa: "Naquela época, eu tinha interesse específico pelo ritual da macumba, o transe nos terreiros do Rio. Eu era casado com uma brasileira, com a qual tenho uma filha. Acabei fazendo um livro sobre macumba. Acho que, na época, Sade no Brasil era uma resposta à ditadura, um exemplo de liberdade". Embora seu livro se trate de um romance, Serge Bramly garante que se manteve rigorosamente fiel aos documentos referentes à vida do marquês e às suas idéias.
O número de pessoas guilhotinadas a mando dos líderes da Revolução Francesa, especialmente do temível Robespierre – chamado no livro de Serge Bramly de "O Incorruptível" – é desconhecido até os dias de hoje. A contagem das execuções sumárias, feitas após simulacros de julgamentos, baseados em acusações vagas, sem que os acusados tivessem respeitado seu sagrado direito de defesa, parou quando chegou aos vinte mil. Quantas foram, de fato, as vítimas? Cinqüenta mil? Setenta mil? Cem mil? Mais? Menos? Ninguém sabe. Talvez nunca se venha a saber.
Registros da época especulam que a intenção dos sanguinários revolucionários era a de executar dois milhões de franceses, para através dessa sangria, "purificar os humores" da pátria. Os revolucionários fizeram da guilhotina uma ferramenta "didática". Pretendiam impor-se pelo medo. Quando as pessoas acostumaram-se às execuções – o homem acostuma-se com tudo, até com o horror – estas foram tornadas mais chocantes e copiosas. O terror tinha que ser mantido a qualquer preço.
Robespierre acabou sendo vítima da própria loucura. Também foi guilhotinado, como muitos de seus desafetos ou a maioria inocente que morreu sem culpa e sem haver cometido qualquer delito. Quem foi mais monstruoso: Donatien, que expunha idéias repugnantes em seus livros, mas cujas práticas seriam consideradas inocentes e até normais (posto que exóticas e não convencionais) nos dias de hoje, ou o líder revolucionário, que mandou tanta gente para o patíbulo?
Serge Bramly, com base em documentos da época, faz o seguinte relato sobre as execuções, em determinado trecho do livro "O terror na alcova": "A maior parte daquele sangue escorre entre as tábuas separadas da plataforma. Certa tarde, como as execuções sucediam-se incessantemente e caíra uma tromba-d'água, o sangue derramado, misturado à chuva, formou uma imensa poça aos pés do cadafalso. O solo encharcado não absorvia mais nada e uma lama vermelha espalhou-se por toda a Place de la Révolution. Atraiu dezenas de cães vadios, que começaram a lamber o delicioso líquido... O sangue deixou-os bêbados e provocou entre eles uma briga feroz e generalizada".
E Bramly prossegue na narrativa: "Aqueles demônios chafurdavam nas poças, mordiam uns aos outros e fugiam, em meio a terríveis latidos, por entre as pernas dos espectadores apavorados. Durante muito tempo, foram vistos correndo pelas ruas, cobertos de um abjeto lodo avermelhado. Conforme uma testemunha, encontraram no dia seguinte marcas de sangue, do outro lado do Sena, inclusive na parte alta da Rue de Bourgogne". Este é um caso típico em que a realidade é muito mais chocante do que a mais delirante das ficções. Mesmo que esta seja a relatada pelo autor dos "Cento e vinte dias de Sodoma", "Justine" e "Filosofia de Alcova".
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
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Ao cabo da leitura do livro de Bramly fica no ar a pergunta: "Quem era mais desequilibrado, o marquês, cujo romance "Os cem dias de Sodoma" choca ainda hoje, (quando os horrores se tornaram banais), ou o regime que o puniu, que provocou na França um genocídio como poucos já perpetrados (comparável, guardadas as devidas proporções, ao Holocausto nazista, à carnificina do Khmer Vermelho no Camboja nos anos 70 ou à recente limpeza étnica na Bósnia)?". A história não tem sido justa com nenhum dos dois. Enquanto Sade é tido até hoje como um monstro, ele que não tirou vida alguma, a Revolução é citada como a fonte dos "Direitos Humanos", ela que violou o mais sagrado deles: o à vida.
Serge Bramly, em entrevista publicada em "O Globo", enfatiza que a "utilização do seu nome (o de Sade, para batizar o sadismo) é um pouco exagerada". Assegura que "no caso do termo sado-masoquista, ele seria muito mais 'maso' do que 'sado'. Enfatiza que "é importante ressaltar a diferença entre o que ele viveu e o que escreveu. O que viveu foram práticas sexuais relativamente banais. Já o que ele escreveu, isso sim, é sadismo. Para ele, se você não é capaz de exprimir as idéias mais monstruosas como dormir com a própria mãe, não é livre. A verdadeira liberdade de pensamento só acontece quando destruímos todas as barreiras. Nesse sentido, sua filosofia e sua moral são libertárias". A tese pode ser discutível, mas é válida.
Em suma, Sade permaneceu quase 46 anos de sua vida preso --- a primeira das prisões ocorreu ainda no reinado do rei Luís XVI, em 1768, acusado de haver flagelado uma mendiga e a última foi seu internamento no asilo de loucos de Charenton, onde morreu aos 74 anos de idade – exclusivamente por suas idéias. Nesse aspecto, pode ser comparado ao escritor franco-indiano Salman Rushdie, autor dos "Versículos Satânicos", punido pela "fathwa" (sentença de morte islâmica) ditada pelo líder supremo dos xiitas, o iraniano aiatolá Ruhollah Khomeini.
A diferença é que os líderes da Revolução Francesa tinham o poder de matar o marquês. Estranha-se que não o tenham feito, quando se sabe que mandaram para a guilhotina artistas, filósofos e cientistas notáveis, sem nenhuma vinculação com a política e a monarquia, como foi o caso do químico Lavoisier. Quem o "protegia" nos altos escalões? E por que? É um mistério que nunca foi esclarecido. Bramly narra em seu livro, inclusive, que os encarregados de escolher os que seriam guilhotinados estiveram em Picpus para buscar Sade para execução. Seu nome era o nono da lista. Viram-no, mas fizeram de conta que não estava ali. E no relatório que tinham que apresentar aos seus superiores registraram, simplesmente, que este não foi encontrado.
O autor de "O terror na alcova" trabalhou no Brasil, como fotógrafo de moda, entre 1971 e 1973. Sobre essa experiência, confessa: "Naquela época, eu tinha interesse específico pelo ritual da macumba, o transe nos terreiros do Rio. Eu era casado com uma brasileira, com a qual tenho uma filha. Acabei fazendo um livro sobre macumba. Acho que, na época, Sade no Brasil era uma resposta à ditadura, um exemplo de liberdade". Embora seu livro se trate de um romance, Serge Bramly garante que se manteve rigorosamente fiel aos documentos referentes à vida do marquês e às suas idéias.
O número de pessoas guilhotinadas a mando dos líderes da Revolução Francesa, especialmente do temível Robespierre – chamado no livro de Serge Bramly de "O Incorruptível" – é desconhecido até os dias de hoje. A contagem das execuções sumárias, feitas após simulacros de julgamentos, baseados em acusações vagas, sem que os acusados tivessem respeitado seu sagrado direito de defesa, parou quando chegou aos vinte mil. Quantas foram, de fato, as vítimas? Cinqüenta mil? Setenta mil? Cem mil? Mais? Menos? Ninguém sabe. Talvez nunca se venha a saber.
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3 comments:
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