Thursday, January 05, 2012







Beleza que antecede a tragédia

Pedro J. Bondaczuk

O livro de Urariano Mota, “Soledad no Recife” (Boitempo Editorial), objeto destas minhas descompromissadas digressões, reúne, entre os vários méritos que tem, um que considero basilar: suscita reflexão. Tendo como pano de fundo um fato dos mais escabrosos e condenáveis – no caso a múltipla traição de Cabo Anselmo – rescende, todo ele, de beleza, de poesia, de encantamento e de ternura. Como isso é possível? Apenas um fator permite e explica essa magia. Aliás, dois: talento e sensibilidade.
Por que me refiro à traição de Cabo Anselmo, cujo codinome no livro (e na guerrilha) era Daniel, como “múltipla”? Porque de fato foi. Porque ele traiu muita gente ao mesmo tempo. Traiu, por exemplo, a causa que dava a entender que abraçara. Com isso, traiu o povo brasileiro, que tentava se livrar da ditadura militar. Traiu os companheiros de aventura, entregando-os aos algozes, ciente de que não escapariam com vida das mãos dos agentes do DOPS. Traiu a mulher que jurava amar, assassinando-a por tabela, pois embora não fosse o autor material do crime, tinha absoluta ciência absoluta de que esse seria seu destino. E traiu, sobretudo, o filho que gerou, ainda no ventre de Soledad, que não teve a mais remota chance de sequer vir à luz. Tratou-se, pois, de comportamento hediondo e imperdoável.
Esse fato, todavia, que pode até ter inspirado, num primeiro momento, Urariano a escrever o livro, não é, ao contrário do que o leitor desavisado possa concluir, o tema central do romance. “Soledad no Recife” é, na verdade, uma história de amor. Platônico, é verdade. Sem o esperado “happy end” de praxe desse tipo de enredo. Mas bonito, poderoso e com todas as características que envolvem esse profundo sentimento. No caso, trata-se do amor do personagem que narra, na primeira pessoa, a história, tão bem urdida que em momento algum peca por falta de verossimilhança.
Convenhamos que é perfeitamente plausível e, sobretudo, lógico que um jovem, mal saído da adolescência (como é o caso do personagem que narra o enredo), apaixonar-se por sua companheira de aventura que, além de íntegra, idealista e corajosa, era mulher bastante bela, como o caso de Soledad. Quem não se apaixonaria? Eu, provavelmente, ficaria tão ou mais apaixonado que o personagem em questão. Mesmo sendo ela ligada ao chefe do grupo, ora bolas!.
Afinal, o amor não reconhece nenhum “certificado de propriedade” de quem quer que seja, que na verdade não existe e nunca existiu. O que liga duas pessoas, nesses relacionamentos afetivos, é, somente, o compromisso mútuo. Todavia, certo ou errado, este pode ser (e frequentemente é) rompido. Quando o relacionamento não mais satisfaz a uma das partes, ou a ambas, mesmo que não surja um novo amor pelo caminho, não tem como a ligação prosperar. Ou o compromisso é rompido ou essas duas pessoas coabitam na base do puro hábito, não raro cercado de indiferença ou, em casos extremos, bafejado até pelo ódio, tornando o relacionamento penoso e doentio.
Quem nunca se apaixonou por alguma companheira de escola, ou de trabalho, com a qual conviveu cotidianamente por um bom período, que atire a primeira pedra. É verdade que, na maioria das vezes, essa paixão é passageira e não raro secreta. Às vezes, até, o próprio apaixonado (ou os apaixonados) sequer admite esse sentimento. Mas ele existe! Está lá! E pode ou não se manifestar e prosperar, dependendo das circunstâncias.
No livro de Urariano, o jovem guerrilheiro apaixonado está fascinado, sobretudo, pela beleza de Soledad. E desabafa, posto que apenas para si próprio: “’Como é bela’, eu me disse, quando na verdade eu traduzi para beleza o que era graça, graça e terna feminilidade” (...). Mais adiante pondera: “Mas belo mesmo é o tempo futuro para todos nós”. (...) E não é? Pelo menos enquanto não chega e rapidamente se torna passado, está, sem dúvida alguma, revestido de suprema beleza, em decorrência da esperança que esse futuro tende a suscitar.
As pessoas costumam associar (erroneamente) o belo ao bom e, por conseqüência, o feio ao mau. Nem sempre isso é verdadeiro. Neste mundo de aparências, a beleza tem sido supervalorizada, sublimada, perseguida, colocada por muitos como uma espécie de ideal, mesmo sendo transitória. Diríamos até que ela é "virtual", para usar expressão tão em voga, uma espécie de ilusão, de fantasia da mente, de delírio. Afinal, restringe-se a um determinado tempo, curtíssimo por sinal.
Uma pessoa bonita não se livra dos efeitos transformadores dos anos. E estes, salvo na passagem da infância para a adolescência e às vezes desta para a maturidade, nunca são para melhor. Representam desgaste, decadência, envelhecimento. E, por conseqüência, sofrimento. Quanto mais bela é uma pessoa quando jovem, maior será sua frustração quando envelhecer, murchar, fenecer. Mas... Acaso isso importava para o jovem guerrilheiro apaixonado? Claro que não! Ele queria Soledad para si, sem se importar com obstáculos e com o depois. Sentia-se, como é natural, enciumado. Pudera! Não seria verossímil se não se sentisse assim. E ponderou a respeito: “...Ora, ciúme, o ciúme tem a posse, pelo menos deseja a posse, ainda que tenha a crucial dúvida da posse”. (...)
O livro do Urariano leva-me a reiterar esta confissão que fiz há algum tempo, em uma das minhas tantas crônicas, e que é mais oportuna do que nunca neste contexto: “Gosto do que faço e não troco essa satisfação tão simples por nenhuma outra das tantas que as pessoas procuram. Pouco importam minhas privações materiais se preencho minha vida de beleza. Nenhum sofrimento me abala se me alimento de poesia. Enquanto a maioria dos escritores tem como matéria-prima os becos escuros da alma, os sentimentos trágicos, os acontecimentos tétricos, os instintos selvagens ou os atos primitivos, prefiro concentrar-me no lado belo da existência. Gosto de tratar de emoções simples. A beleza está na simplicidade. Dizem que a felicidade é sem graça e não se presta à literatura. Puro engano. A morte, embora me atemorize, é que não me fascina. A violência, em todas as suas formas e manifestações, me causa repugnância. Amo a beleza, a solidariedade, a delicadeza”.
Daí meu fascínio por esta bela história de amor, mesmo sem o trivial “happy end” desse tipo de texto, que é o livro “Soledad no Recife” do escritor, e meu amigo, Urariano Mota.



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