Ainda riqueza e pobreza
Pedro J. Bondaczuk
O ex-chanceler argentino, Dante Caputo, observou, num discurso de abertura da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1988, que a humanidade jamais conseguirá viver em paz e harmonia enquanto houver um fosso profundo separando países ricos e pobres. Para ilustrar sua advertência, utilizou-se de uma imagem muito significativa. Disse que os passageiros de primeira classe de um transatlântico de luxo jamais poderão se sentir seguros se nos porões desse navio houver uma bomba prestes a explodir.
Argumentou, com lógica cartesiana, que se o artefato romper o casco da embarcação, com a explosão, esta, certamente, afundará, levando consigo, para o fundo do oceano, todos a bordo. Ou seja, tanto os passageiros de primeira classe, com sua empáfia e arrogância, quanto os de terceira, incluindo eventuais clandestinos que se escondam nos porões.
Esse é o perfil do mundo contemporâneo. Terminada a guerra fria, com o fim do comunismo no Leste europeu e, conseqüentemente, com o fim do antagonismo ideológico que colocou o mundo à beira da confrontação nuclear, não veio a tão sonhada e apregoada paz. Houve, apenas, uma troca de conflitos, o que é lamentável. A tal da globalização, em vez de dividir, de forma um pouquinho mais equânime, a riqueza coletiva mundial, concentrou-a, ainda mais, nas mãos das potências econômicas, em detrimento de países miseráveis, condenados à fome, ao atraso, à marginalidade, à ignorância, às epidemias e à conseqüente violência gerada pelo desespero.
Volto ao tema “riqueza e pobreza” atendendo solicitação de um dos meus leitores mais fiéis, que me acompanhou por mais quinze anos pelas páginas do jornal Correio Popular de Campinas, em que mantive, por uma década e meia, coluna diária de comentário de política internacional. Solicitou-me que abordasse o assunto não pelo enfoque individual, mas pelo coletivo, no de países. Claro que é impossível abordar assunto tão amplo, complexo e polêmico em algumas poucas linhas. Josué de Castro, por exemplo, escreveu, há 65 anos, todo um (memorável) livro, “Geografia da Fome” e abordou a questão da miséria “apenas” pelo aspecto da carência alimentar. E somente do Brasil. Imaginem o quanto seria preciso escrever para abordar só a fome no mundo!
A humanidade conta, neste início de século e de milênio, com uma quantidade de riqueza e de recursos tecnológicos como jamais contou em época alguma da história, a despeito de sucessivas crises econômicas internacionais. Sequer preciso citar dados estatísticos comprobatórios, já que qualquer pessoa medianamente informada e esclarecida poderá ter acesso a eles recorrendo ao “Google”. Há alimentos estocados, nos silos norte-americanos e das potências européias, suficientes para alimentar sobejamente cada indivíduo da Terra por um par de anos. Recordes de safras são batidos sucessivamente. Nos países desenvolvidos, as respectivas populações vêem-se às voltas com doenças causadas pela obesidade, ou seja, do excessivo consumo de comida, e não da fome.
E o que acontece nas comunidades nacionais paupérrimas, da África e da Ásia? Ocorre um fenômeno exatamente inverso. Milhões e milhões de pessoas morrem de inanição, ou estão condenadas a esse tipo de morte, caso não venham a ser socorridas a tempo. É, por exemplo, o que se verifica, atualmente, na região conhecida como “Chifre da África”, em especial a Somália, Quênia, Etiópia e Djibuti, onde 13,3 milhões de seres humanos, parte considerável dos quais crianças, não têm rigorosamente nada para comer. E as mortes se sucedem, configurando perversa tragédia, não inevitável, como cataclismos do tipo terremoto, furacão ou vulcão, mas “anti-natural”, posto que evitável e passiva de prevenção. Sinto-me mal, muito mal, apenas em abordar essa catástrofe. Mas não se trata de ficção, porém de fato palpávcel e comprovável, que depõe contra a tão propalada racionalidade do “homo sapiens” (ou “homo demens”, como o classificou Edgar Morin).
A tecnologia "encolheu" o mundo, reduzindo distâncias, aproximando povos, expandindo o conhecimento. As comunicações, os transportes, a eletrônica, a informática, a medicina etc. chegaram a um ponto de desenvolvimento tal, que a vida das pessoas teria tudo para ser extremamente fácil, agradável e feliz. E, sobretudo, longa. Teria... Mas não é. Nunca, em tempo algum, houve tanta miséria e desolação como agora. O ser humano se supera, a cada dia, em egoísmo, insensibilidade e alienação.
Os famintos do mundo são, na atualidade, em quantidade jamais imaginada pelo mais pessimista dos futurólogos. Além dos habitantes do “Chifre da África”, cuja situação é crítica, algumas centenas de milhões de pessoas mundo afora sofre em decorrência da fome e de suas seqüelas. Mais de 900 milhões de indivíduos são analfabetos. Um bilhão de pessoas não têm onde morar. Doenças de fácil prevenção, originadas da desnutrição e falta de higiene, ceifam multidões, em especial crianças. Epidemias e pandemias espalham-se Planeta afora. Enfermidades tidas como erradicadas (como a tuberculose) retornam com maior intensidade. Vírus até então desconhecidos, extremamente selvagens e letais, como o do Ebola, manifestam-se em paupérrimas comunidades africanas.
A humanidade foi dividida, aleatoriamente, em três mundos distintos e estanques, em termos de desenvolvimento econômico, social e cultural. Fala-se, ultimamente, de um quarto, o constituído por países absolutamente inviáveis, mas que existem e descem a ladeira da miserabilidade com rapidez estonteante nestes tempos de alta velocidade.
Josué de Castro, na introdução do seu livro “Geografia da Fome”, observou: “Interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado”. E isso ele escreveu em 1946! Esse panorama, hoje, é diferente? Não, não e não. O problema, por não ser resolvido, apenas se agravou, e muito.
A riqueza gerada por dois terços dos habitantes terrestres vai parar, invariavelmente, nas mãos do um terço restante, através da especulação financeira, apátrida e sem piedade, que se mundializou. E essa concentração de renda e recursos é cada vez maior, a despeito de planos, programas, promessas, juras, manifestações de intenções e conferências internacionais, que não passam de exercícios cínicos e inócuos de retórica.
O escritor D. H. Lawrence, célebre por seu romance "O Amante de Lady Chaterley", que teve sua obra censurada como "pornográfica" e "atentatória à moral" e que não viu o livro ser publicado na íntegra (o que ocorreria apenas após a sua morte), criticou os pressupostos baseados no "ter", em detrimento do "ser". Escreveu: "O que queremos é destruir nossas falsas, inorgânicas relações, especialmente com o dinheiro, e restabelecer nossa relação orgânica e viva com o cosmos, o Sol e a Terra, com a raça humana e com a nação e a família".
Imoral não é falar sobre sexo e erotismo. Imoral é deixar pessoas morrendo à míngua, enquanto temos mais do que precisamos e desperdiçamos. Qual a razão do patrimônio da humanidade – que são os recursos do Planeta – estar entregue a pessoas tão medíocres, sem princípios e sem idéias, que os vêm depredando de forma estúpida e sistemática? Sim, que me respondam a essa questão tão simples e objetiva... se alguém tiver resposta que se sustente!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
O ex-chanceler argentino, Dante Caputo, observou, num discurso de abertura da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1988, que a humanidade jamais conseguirá viver em paz e harmonia enquanto houver um fosso profundo separando países ricos e pobres. Para ilustrar sua advertência, utilizou-se de uma imagem muito significativa. Disse que os passageiros de primeira classe de um transatlântico de luxo jamais poderão se sentir seguros se nos porões desse navio houver uma bomba prestes a explodir.
Argumentou, com lógica cartesiana, que se o artefato romper o casco da embarcação, com a explosão, esta, certamente, afundará, levando consigo, para o fundo do oceano, todos a bordo. Ou seja, tanto os passageiros de primeira classe, com sua empáfia e arrogância, quanto os de terceira, incluindo eventuais clandestinos que se escondam nos porões.
Esse é o perfil do mundo contemporâneo. Terminada a guerra fria, com o fim do comunismo no Leste europeu e, conseqüentemente, com o fim do antagonismo ideológico que colocou o mundo à beira da confrontação nuclear, não veio a tão sonhada e apregoada paz. Houve, apenas, uma troca de conflitos, o que é lamentável. A tal da globalização, em vez de dividir, de forma um pouquinho mais equânime, a riqueza coletiva mundial, concentrou-a, ainda mais, nas mãos das potências econômicas, em detrimento de países miseráveis, condenados à fome, ao atraso, à marginalidade, à ignorância, às epidemias e à conseqüente violência gerada pelo desespero.
Volto ao tema “riqueza e pobreza” atendendo solicitação de um dos meus leitores mais fiéis, que me acompanhou por mais quinze anos pelas páginas do jornal Correio Popular de Campinas, em que mantive, por uma década e meia, coluna diária de comentário de política internacional. Solicitou-me que abordasse o assunto não pelo enfoque individual, mas pelo coletivo, no de países. Claro que é impossível abordar assunto tão amplo, complexo e polêmico em algumas poucas linhas. Josué de Castro, por exemplo, escreveu, há 65 anos, todo um (memorável) livro, “Geografia da Fome” e abordou a questão da miséria “apenas” pelo aspecto da carência alimentar. E somente do Brasil. Imaginem o quanto seria preciso escrever para abordar só a fome no mundo!
A humanidade conta, neste início de século e de milênio, com uma quantidade de riqueza e de recursos tecnológicos como jamais contou em época alguma da história, a despeito de sucessivas crises econômicas internacionais. Sequer preciso citar dados estatísticos comprobatórios, já que qualquer pessoa medianamente informada e esclarecida poderá ter acesso a eles recorrendo ao “Google”. Há alimentos estocados, nos silos norte-americanos e das potências européias, suficientes para alimentar sobejamente cada indivíduo da Terra por um par de anos. Recordes de safras são batidos sucessivamente. Nos países desenvolvidos, as respectivas populações vêem-se às voltas com doenças causadas pela obesidade, ou seja, do excessivo consumo de comida, e não da fome.
E o que acontece nas comunidades nacionais paupérrimas, da África e da Ásia? Ocorre um fenômeno exatamente inverso. Milhões e milhões de pessoas morrem de inanição, ou estão condenadas a esse tipo de morte, caso não venham a ser socorridas a tempo. É, por exemplo, o que se verifica, atualmente, na região conhecida como “Chifre da África”, em especial a Somália, Quênia, Etiópia e Djibuti, onde 13,3 milhões de seres humanos, parte considerável dos quais crianças, não têm rigorosamente nada para comer. E as mortes se sucedem, configurando perversa tragédia, não inevitável, como cataclismos do tipo terremoto, furacão ou vulcão, mas “anti-natural”, posto que evitável e passiva de prevenção. Sinto-me mal, muito mal, apenas em abordar essa catástrofe. Mas não se trata de ficção, porém de fato palpávcel e comprovável, que depõe contra a tão propalada racionalidade do “homo sapiens” (ou “homo demens”, como o classificou Edgar Morin).
A tecnologia "encolheu" o mundo, reduzindo distâncias, aproximando povos, expandindo o conhecimento. As comunicações, os transportes, a eletrônica, a informática, a medicina etc. chegaram a um ponto de desenvolvimento tal, que a vida das pessoas teria tudo para ser extremamente fácil, agradável e feliz. E, sobretudo, longa. Teria... Mas não é. Nunca, em tempo algum, houve tanta miséria e desolação como agora. O ser humano se supera, a cada dia, em egoísmo, insensibilidade e alienação.
Os famintos do mundo são, na atualidade, em quantidade jamais imaginada pelo mais pessimista dos futurólogos. Além dos habitantes do “Chifre da África”, cuja situação é crítica, algumas centenas de milhões de pessoas mundo afora sofre em decorrência da fome e de suas seqüelas. Mais de 900 milhões de indivíduos são analfabetos. Um bilhão de pessoas não têm onde morar. Doenças de fácil prevenção, originadas da desnutrição e falta de higiene, ceifam multidões, em especial crianças. Epidemias e pandemias espalham-se Planeta afora. Enfermidades tidas como erradicadas (como a tuberculose) retornam com maior intensidade. Vírus até então desconhecidos, extremamente selvagens e letais, como o do Ebola, manifestam-se em paupérrimas comunidades africanas.
A humanidade foi dividida, aleatoriamente, em três mundos distintos e estanques, em termos de desenvolvimento econômico, social e cultural. Fala-se, ultimamente, de um quarto, o constituído por países absolutamente inviáveis, mas que existem e descem a ladeira da miserabilidade com rapidez estonteante nestes tempos de alta velocidade.
Josué de Castro, na introdução do seu livro “Geografia da Fome”, observou: “Interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado”. E isso ele escreveu em 1946! Esse panorama, hoje, é diferente? Não, não e não. O problema, por não ser resolvido, apenas se agravou, e muito.
A riqueza gerada por dois terços dos habitantes terrestres vai parar, invariavelmente, nas mãos do um terço restante, através da especulação financeira, apátrida e sem piedade, que se mundializou. E essa concentração de renda e recursos é cada vez maior, a despeito de planos, programas, promessas, juras, manifestações de intenções e conferências internacionais, que não passam de exercícios cínicos e inócuos de retórica.
O escritor D. H. Lawrence, célebre por seu romance "O Amante de Lady Chaterley", que teve sua obra censurada como "pornográfica" e "atentatória à moral" e que não viu o livro ser publicado na íntegra (o que ocorreria apenas após a sua morte), criticou os pressupostos baseados no "ter", em detrimento do "ser". Escreveu: "O que queremos é destruir nossas falsas, inorgânicas relações, especialmente com o dinheiro, e restabelecer nossa relação orgânica e viva com o cosmos, o Sol e a Terra, com a raça humana e com a nação e a família".
Imoral não é falar sobre sexo e erotismo. Imoral é deixar pessoas morrendo à míngua, enquanto temos mais do que precisamos e desperdiçamos. Qual a razão do patrimônio da humanidade – que são os recursos do Planeta – estar entregue a pessoas tão medíocres, sem princípios e sem idéias, que os vêm depredando de forma estúpida e sistemática? Sim, que me respondam a essa questão tão simples e objetiva... se alguém tiver resposta que se sustente!
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