Confidências e inconfidências
Pedro J. Bondaczuk
As cartas que alguém escreve a um amigo (ou mesmo a um inimigo, não importa) pertencem, no fim das contas, a quem as escreveu, que poderia, assim, exigir que fossem mantidas em sigilo, ou a quem as recebeu? Entendo que a este último. Afinal, lhes foram endereçadas. Quem as endereçou deveria ter essa percepção. Se o conteúdo dessa correspondência é desabonador à sua imagem e à sua biografia, que não a escrevesse e nem enviasse.
Está bem, escrever cartas, nesta época do computador, é coisa arcaica que pouquíssimas pessoas ainda fazem. Vivemos em plena era do e-mail. E este pode ser, conforme o caso, tão comprometedor ou até mais que as antigas “missivas” (termo arcaico que as novas gerações sequer sabem o que significa).
Trago a questão à baila após ler despacho da agência de notícias France Press dando conta da divulgação da correspondência que J. D. Salinger manteve, durante pelo menos vinte anos, com Donald Hartog, amigo inglês por quem nutria grande afeto, a julgar pelo teor das cartas. Duvido que o discreto e arredio autor do “O apanhador no campo de centeio” aprovaria essa devassa em parte da sua intimidade. Afinal, o exótico escritor sempre foi tido e havido como um sujeito rigorosamente anti-social. Fugia, por exemplo, da imprensa como o diabo foge da cruz. Diz-se que meses antes de morrer (morreu em janeiro de 2010), chegou a destruir todas suas anotações, para impedir que caíssem em “mãos profanas”. Mas essa imagem corresponde à realidade, àquilo que ele realmente foi?
Vejamos. É certo que Salinger não teria deixado instruções específicas pedindo, por exemplo, sigilo para essas cartas. Tudo indica que não deixou. Mas, conhecendo sua personalidade, isso era (ou é) até desnecessário. Ficava implícito. Em defesa de seu amigo, Donald Hartog, faz-se necessário destacar que a correspondência não foi divulgada propriamente por ele, mas pelos filhos. Ou melhor, pela filha, Frances.
Ela doou a coleção de 50 cartas datilografadas e quatro cartões postais escritos à mão por Salinger à Universidade de East Anglia. E a direção dessa escola superior é que tomou a iniciativa de tornar a correspondência pública, dado o interesse que o autor de “O apanhador no campo de centeio” sempre despertou não somente nos estudiosos de literatura e nos críticos literários, mas, sobretudo, no público leitor. Duvido que Salinger, se estivesse vivo, fosse gostar disso ou concordar com tamanha exposição da sua vida privada e sua pessoa. Creio que a primeira atitude que tomaria seria romper a amizade com Hartog.
E o que esse punhado de cartas revela, que o público ainda não saiba? O principal é que o escritor não era tão arredio, o ermitão contemporâneo, que todos sempre pensaram que tenha sido. É certo que sempre evitou os “holofotes” da imprensa. Mas era um cidadão de classe média comum, como tantos outros, com gostos e atitudes característicos de um americano típico dessa categoria social. Apreciava hambúrgueres, tinha programas de televisão favoritos e até fazia “turismo interno” quando a oportunidade para tal se apresentava. Não vivia, pois, entrincheirado em sua casa no Estado de New Hampshire, como a imprensa sempre deu a entender.
Só por essa revelação da sua personalidade já vale a pena cometer inconfidências em relação às confidências que fez, por vinte anos, ao amigo além-mar, Donald Hartog. Ao contrário do que sempre se apregoou, Salinger gostava até de esporte, mais especificamente de tênis, sendo admirador incondicional do tenista britânico Tim Henman. Que diabos, excêntrico ou não, era homem do seu tempo! Até porque, excentricidade também tem limites.
Para desmentir os que criaram uma imagem (falsa, como se vê agora) de ermitão arredio, avesso a contato com quaisquer pessoas, fica claro nas cartas ora divulgadas que Salinger também gostava de viajar, isto é, de se expor. Afinal, isso era impossível de fazer sozinho, não é mesmo? Fez, até mesmo, uma excursão de ônibus para as cataratas do Niágara, na fronteira com o Canadá. Deve, assim como os companheiros de viagem, ter conversado muito, cantado, rido etc.etc.etc. e se divertido. Por que não?! Outro cartão postal norte-americano de lugar que visitou foi o do Grand Canyon.
Mas o escritor esteve, também, no exterior. Por exemplo, viajou, com a mulher, para a Alemanha. Os jornalistas é que “comeram bola” e não registraram esta (e outras) viagens que fez. Como a visita ao amigo inglês, em Londres, em abril de 1989, quando inclusive tirou fotografias na companhia de Hartog e família, fotos estas que agora também estão sendo divulgadas, junto com as 50 cartas.
Essa amizade, informe-se, era bastante antiga e, ao que parece, persistiu pela vida toda de ambos. Os dois se conheceram em Viena, na Áustria, em 1937, antes do início da Segunda Guerra Mundial, quando tinham apenas 18 anos. Claro que Salinger ainda não tinha escrito sua obra-prima e, provavelmente, sequer desconfiava que viria a se tornar o escritor que foi.
Na época, ele trabalhava com importação de alimentos. Os assuntos tratados nas cartas são os mais triviais e comuns possíveis, destes que os amigos que se gostam tratam em correspondências. Numa delas, por exemplo, datada de 1992, Salinger informa Hartog sobre um incêndio que destruiu sua casa.
Frances jura que, na intimidade, o escritor não era nem um pouco parecido com a imagem pública que pintaram dele. Será que a publicação dessa correspondência mudará a imagem (negativa) do autor de “O apanhador em campo de centeio” daqui para a frente, que parece ser mais falsa do que nota de três dólares? Tenho lá minhas dúvidas. Afinal, as pessoas sempre acreditam no que querem acreditar, seja certo ou seja errado.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
As cartas que alguém escreve a um amigo (ou mesmo a um inimigo, não importa) pertencem, no fim das contas, a quem as escreveu, que poderia, assim, exigir que fossem mantidas em sigilo, ou a quem as recebeu? Entendo que a este último. Afinal, lhes foram endereçadas. Quem as endereçou deveria ter essa percepção. Se o conteúdo dessa correspondência é desabonador à sua imagem e à sua biografia, que não a escrevesse e nem enviasse.
Está bem, escrever cartas, nesta época do computador, é coisa arcaica que pouquíssimas pessoas ainda fazem. Vivemos em plena era do e-mail. E este pode ser, conforme o caso, tão comprometedor ou até mais que as antigas “missivas” (termo arcaico que as novas gerações sequer sabem o que significa).
Trago a questão à baila após ler despacho da agência de notícias France Press dando conta da divulgação da correspondência que J. D. Salinger manteve, durante pelo menos vinte anos, com Donald Hartog, amigo inglês por quem nutria grande afeto, a julgar pelo teor das cartas. Duvido que o discreto e arredio autor do “O apanhador no campo de centeio” aprovaria essa devassa em parte da sua intimidade. Afinal, o exótico escritor sempre foi tido e havido como um sujeito rigorosamente anti-social. Fugia, por exemplo, da imprensa como o diabo foge da cruz. Diz-se que meses antes de morrer (morreu em janeiro de 2010), chegou a destruir todas suas anotações, para impedir que caíssem em “mãos profanas”. Mas essa imagem corresponde à realidade, àquilo que ele realmente foi?
Vejamos. É certo que Salinger não teria deixado instruções específicas pedindo, por exemplo, sigilo para essas cartas. Tudo indica que não deixou. Mas, conhecendo sua personalidade, isso era (ou é) até desnecessário. Ficava implícito. Em defesa de seu amigo, Donald Hartog, faz-se necessário destacar que a correspondência não foi divulgada propriamente por ele, mas pelos filhos. Ou melhor, pela filha, Frances.
Ela doou a coleção de 50 cartas datilografadas e quatro cartões postais escritos à mão por Salinger à Universidade de East Anglia. E a direção dessa escola superior é que tomou a iniciativa de tornar a correspondência pública, dado o interesse que o autor de “O apanhador no campo de centeio” sempre despertou não somente nos estudiosos de literatura e nos críticos literários, mas, sobretudo, no público leitor. Duvido que Salinger, se estivesse vivo, fosse gostar disso ou concordar com tamanha exposição da sua vida privada e sua pessoa. Creio que a primeira atitude que tomaria seria romper a amizade com Hartog.
E o que esse punhado de cartas revela, que o público ainda não saiba? O principal é que o escritor não era tão arredio, o ermitão contemporâneo, que todos sempre pensaram que tenha sido. É certo que sempre evitou os “holofotes” da imprensa. Mas era um cidadão de classe média comum, como tantos outros, com gostos e atitudes característicos de um americano típico dessa categoria social. Apreciava hambúrgueres, tinha programas de televisão favoritos e até fazia “turismo interno” quando a oportunidade para tal se apresentava. Não vivia, pois, entrincheirado em sua casa no Estado de New Hampshire, como a imprensa sempre deu a entender.
Só por essa revelação da sua personalidade já vale a pena cometer inconfidências em relação às confidências que fez, por vinte anos, ao amigo além-mar, Donald Hartog. Ao contrário do que sempre se apregoou, Salinger gostava até de esporte, mais especificamente de tênis, sendo admirador incondicional do tenista britânico Tim Henman. Que diabos, excêntrico ou não, era homem do seu tempo! Até porque, excentricidade também tem limites.
Para desmentir os que criaram uma imagem (falsa, como se vê agora) de ermitão arredio, avesso a contato com quaisquer pessoas, fica claro nas cartas ora divulgadas que Salinger também gostava de viajar, isto é, de se expor. Afinal, isso era impossível de fazer sozinho, não é mesmo? Fez, até mesmo, uma excursão de ônibus para as cataratas do Niágara, na fronteira com o Canadá. Deve, assim como os companheiros de viagem, ter conversado muito, cantado, rido etc.etc.etc. e se divertido. Por que não?! Outro cartão postal norte-americano de lugar que visitou foi o do Grand Canyon.
Mas o escritor esteve, também, no exterior. Por exemplo, viajou, com a mulher, para a Alemanha. Os jornalistas é que “comeram bola” e não registraram esta (e outras) viagens que fez. Como a visita ao amigo inglês, em Londres, em abril de 1989, quando inclusive tirou fotografias na companhia de Hartog e família, fotos estas que agora também estão sendo divulgadas, junto com as 50 cartas.
Essa amizade, informe-se, era bastante antiga e, ao que parece, persistiu pela vida toda de ambos. Os dois se conheceram em Viena, na Áustria, em 1937, antes do início da Segunda Guerra Mundial, quando tinham apenas 18 anos. Claro que Salinger ainda não tinha escrito sua obra-prima e, provavelmente, sequer desconfiava que viria a se tornar o escritor que foi.
Na época, ele trabalhava com importação de alimentos. Os assuntos tratados nas cartas são os mais triviais e comuns possíveis, destes que os amigos que se gostam tratam em correspondências. Numa delas, por exemplo, datada de 1992, Salinger informa Hartog sobre um incêndio que destruiu sua casa.
Frances jura que, na intimidade, o escritor não era nem um pouco parecido com a imagem pública que pintaram dele. Será que a publicação dessa correspondência mudará a imagem (negativa) do autor de “O apanhador em campo de centeio” daqui para a frente, que parece ser mais falsa do que nota de três dólares? Tenho lá minhas dúvidas. Afinal, as pessoas sempre acreditam no que querem acreditar, seja certo ou seja errado.
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