Vinte anos de golpes e de morticínios
Pedro J. Bondaczuk
O ex-chefe guerrilheiro Yoweri Musaveni, líder do Exército de Resistência Nacional, tomou posse, ontem, na presidência de Uganda, tornando-se o novo governante desse pobre e violento país africano (sem saída para o mar), em 24 anos de independência. Culmina, dessa maneira, com duas décadas de golpes e cinco de uma selvagem guerra civil, responsável por genocídios monumentais, cujas proporções verdadeiras dificilmente o mundo vai conhecer.
O chefe rebelde assume o cargo com a legitimação de suas armas. Afinal, foi a poder delas, sem contar com grande ajuda externa, que conseguiu impor a vontade da sua tribo, uma das maiores dessa República de 17 milhões de habitantes e que, desde a independência, estava, estranhamente, segregada da vida política, à totalidade dos ugandenses.
Ao prestar, ontem, juramento constitucional, em Kampala, cidade que tomou em combate, no sábado, recebeu um país esfacelado, ferido e saqueado. Um Estado virtualmente sem Forças Armadas, cujos soldados chegaram ao ponto de debandar frente ao avanço da guerrilha, não sem antes cometer toda a sorte de barbaridades contra a indefesa população civil, saqueando, violentando e trucidando cidadãos inocentes, que só querem ter o direito de exercer sua cidadania.
Anteontem, numa reunião com diplomatas credenciados na capital ugandense, Musaveni tranqüilizou os seus aliados ocidentais. Garantiu que seu regime não será marxista. Que vai restabelecer em pouco tempo a democracia e convocar, em breve, eleições presidenciais. O que chamou a atenção do crítico, todavia, foi esse termo vago. “Breve” tanto pode ser um prazo de alguns meses, como de muitos anos. Depende de quem mede esse tempo.
O grande problema ugandense, que sempre serviu de entrave ao desenvolvimento do país, foi o seu insuperável desarranjo institucional. Seu território, por obra e graça (ou seria desgraça?) do colonizador inglês, foi repartido entre tribos antagônicas e inconciliáveis, na época em que ainda era colônia.
Obtida a independência, a situação só conseguiu piorar. E piorou demais. No território de Uganda estava incluído um reino semi-autônomo, civilização africana bastante antiga, chamado Buganda. Assim que os ingleses se retiraram da ex-colônia, impuseram, para presidir a nova República formada, justamente o rei desse território, Mutesa II. Exatamente quem tinha todos os motivos possíveis para sabotar o regime republicano, por ter nascido e sido criado num sistema monárquico.
Só podia dar no que deu. Em pouco tempo foi deposto, deflagrando uma sucessão medonha de golpes, contragolpes e “revoluções salvadoras”, movidos por pessoas sem nenhuma noção quanto ao significado de uma gestão nacional, que durou 20 anos.
Aliás, Uganda, em virtude da grande quantidade de tribos que abriga, com línguas, religiões e costumes diferentes, nunca teve um genuíno sentimento de nacionalidade. Em agosto do ano passado, pouco após o general Tito Lutwa Okello ter assumido o governo, depois do general Basílio Olara Okello (que não é seu parente) ter derrubado, pela terceira vez, o presidente Milton Obote, foram descobertas numerosas valas comuns, onde estavam sepultadas milhares de pessoas, mortas sem nenhuma defesa.
O assassinato político tornou-se uma dolorosa rotina nesse país, fruto desse antagonismo tribal. E o povo nunca teve condições de fazer nada a não ser se submeter a tamanho horror e buscar se adaptar da melhor forma possível a ele, mesmo com a vida em permanente risco, suspensa, apenas, por um fio.
Quem sabe, agora, Musaveni, que sentiu na própria carne a dor da perseguição política e da clandestinidade compulsória, consiga entender os ugandenses. Quem sabe promova, finalmente, a conciliação nacional e inicie um processo autêntico de integração, sem levar em conta nenhuma distinção tribal.
Se conseguir essa façanha, certamente passará para a história como autêntico pai da pátria. Em caso contrário, não terá, sequer, tempo de esquentar a cadeira presidencial.
(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 30 de janeiro de 1986)
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
O ex-chefe guerrilheiro Yoweri Musaveni, líder do Exército de Resistência Nacional, tomou posse, ontem, na presidência de Uganda, tornando-se o novo governante desse pobre e violento país africano (sem saída para o mar), em 24 anos de independência. Culmina, dessa maneira, com duas décadas de golpes e cinco de uma selvagem guerra civil, responsável por genocídios monumentais, cujas proporções verdadeiras dificilmente o mundo vai conhecer.
O chefe rebelde assume o cargo com a legitimação de suas armas. Afinal, foi a poder delas, sem contar com grande ajuda externa, que conseguiu impor a vontade da sua tribo, uma das maiores dessa República de 17 milhões de habitantes e que, desde a independência, estava, estranhamente, segregada da vida política, à totalidade dos ugandenses.
Ao prestar, ontem, juramento constitucional, em Kampala, cidade que tomou em combate, no sábado, recebeu um país esfacelado, ferido e saqueado. Um Estado virtualmente sem Forças Armadas, cujos soldados chegaram ao ponto de debandar frente ao avanço da guerrilha, não sem antes cometer toda a sorte de barbaridades contra a indefesa população civil, saqueando, violentando e trucidando cidadãos inocentes, que só querem ter o direito de exercer sua cidadania.
Anteontem, numa reunião com diplomatas credenciados na capital ugandense, Musaveni tranqüilizou os seus aliados ocidentais. Garantiu que seu regime não será marxista. Que vai restabelecer em pouco tempo a democracia e convocar, em breve, eleições presidenciais. O que chamou a atenção do crítico, todavia, foi esse termo vago. “Breve” tanto pode ser um prazo de alguns meses, como de muitos anos. Depende de quem mede esse tempo.
O grande problema ugandense, que sempre serviu de entrave ao desenvolvimento do país, foi o seu insuperável desarranjo institucional. Seu território, por obra e graça (ou seria desgraça?) do colonizador inglês, foi repartido entre tribos antagônicas e inconciliáveis, na época em que ainda era colônia.
Obtida a independência, a situação só conseguiu piorar. E piorou demais. No território de Uganda estava incluído um reino semi-autônomo, civilização africana bastante antiga, chamado Buganda. Assim que os ingleses se retiraram da ex-colônia, impuseram, para presidir a nova República formada, justamente o rei desse território, Mutesa II. Exatamente quem tinha todos os motivos possíveis para sabotar o regime republicano, por ter nascido e sido criado num sistema monárquico.
Só podia dar no que deu. Em pouco tempo foi deposto, deflagrando uma sucessão medonha de golpes, contragolpes e “revoluções salvadoras”, movidos por pessoas sem nenhuma noção quanto ao significado de uma gestão nacional, que durou 20 anos.
Aliás, Uganda, em virtude da grande quantidade de tribos que abriga, com línguas, religiões e costumes diferentes, nunca teve um genuíno sentimento de nacionalidade. Em agosto do ano passado, pouco após o general Tito Lutwa Okello ter assumido o governo, depois do general Basílio Olara Okello (que não é seu parente) ter derrubado, pela terceira vez, o presidente Milton Obote, foram descobertas numerosas valas comuns, onde estavam sepultadas milhares de pessoas, mortas sem nenhuma defesa.
O assassinato político tornou-se uma dolorosa rotina nesse país, fruto desse antagonismo tribal. E o povo nunca teve condições de fazer nada a não ser se submeter a tamanho horror e buscar se adaptar da melhor forma possível a ele, mesmo com a vida em permanente risco, suspensa, apenas, por um fio.
Quem sabe, agora, Musaveni, que sentiu na própria carne a dor da perseguição política e da clandestinidade compulsória, consiga entender os ugandenses. Quem sabe promova, finalmente, a conciliação nacional e inicie um processo autêntico de integração, sem levar em conta nenhuma distinção tribal.
Se conseguir essa façanha, certamente passará para a história como autêntico pai da pátria. Em caso contrário, não terá, sequer, tempo de esquentar a cadeira presidencial.
(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 30 de janeiro de 1986)
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