Monday, February 06, 2012







Constante mutação

Pedro J. Bondaczuk

O historiador francês, Raoul Girardet, afirmou: “O mito não pode ser abarcado, definido, encerrado em contornos precisos, senão em conseqüência de uma operação conceitualizante, obrigatoriamente redutora, que sempre se arrisca a traí-lo ou a de ele dar apenas uma versão empobrecida, mutilada, destituída de sua riqueza e de sua complexidade”.
O mesmo processo que o criou, pode levar à sua descaracterização. Ou seja, através dos acréscimos feitos pela pessoa que tenta dar a sua definição, ou emprestar-lhe alguma conceituação, ou traçar seus limites exatos. Por isso, o mito está em constante mutação, a cada nova versão que se tenha dele.

A religião, por causa da sua origem, é fundamental para o homem. O cineasta italiano, Marco Ferreri, criador do chamado “cinema da crueldade”, tentou explicar a razão dessa importância, remontando à sua origem. Afirmou que a religião “tem um poder liberador”, porque “foi o primeiro colóquio do homem com o mundo exterior, com o fantástico”. Sua origem está na fé, ou seja, na crença no incrível, no que não se pode entender e, por isso, explicar ou racionalizar. É o mito dos mitos. Para Santo Agostinho, “a compreensão é a recompensa da fé”.

Os processos de racionalização e de criação de mitos são, em geral, cíclicos. À medida que a técnica evolui, a humanidade se divide em tendências antagônicas. Uma é a de se apegar ao material, ao palpável ou, na pior das hipóteses, demonstrável através da ciência. Outra é a que necessita – tanto quanto necessitamos do ar que respiramos, do alimento que ingerimos ou da roupa que vestimos – da fantasia, dos símbolos, da mitificação.

Ferreri observou: “O homem histórico era racional – um ser adormecido. O homem de hoje desperta o seu lado fantástico. Voltam os mitos e a cultura animista”. É esse lado fantasioso das pessoas que ensejou o surgimento das artes, de todas elas. A tragédia grega, por exemplo, nada mais era do que uma parte do ritual de determinada celebração em honra do deus Dionísio.

Os gregos, aliás, jamais conseguiram dissociar os conceitos de religião, política e sociedade. Seus mitos não foram meras fábulas poéticas, como muitos, erroneamente, supõem. Foram parte da sua história, em que a mitologia exerceu o papel de “conector” entre os fatos.

A vertente de inspiração dos escritores trágicos, apesar da disparidade de estilos e de concepções, sempre teve um ponto em comum. Todos estes autores ressaltaram o quão precária é a vida, que pode se extinguir a qualquer instante, como a chama de uma vela em meio a um vendaval, por qualquer razão (doença, desastre, assassinato, acidente, suicídio etc.) ou até sem nenhum motivo. Ressaltaram, invariavelmente, a fragilidade humana, a despeito da arrogância do homem.

Mas, na sua concepção, a extinção da vida ou as mudanças que ocorrem com todos nós, não dependiam do acaso, mas estavam na total dependência dos deuses. Estes poderiam, por exemplo, caprichosamente, alçar uma pessoa qualquer, mesmo que não tivesse atrativos, méritos ou talentos, subitamente à glória. Em contrapartida, pela mesma razão, poderiam lançar qualquer um, por mais méritos e aptidões que tivesse, na completa ruína e degradação.

Um desses casos, que atravessaram séculos e chegaram até nós, o mito de Édipo, abordado há algum tempo, em versão modernizada, na novela “Mandala”, exibida pela Rede Globo. Para os autores gregos de tragédias, portanto, os deuses sempre se impunham aos homens. Suas leis – ditadas ao capricho, não raro sem lógica ou racionalidade, impostas a seu bel prazer – tinham que ser seguidas à risca, sem questionamentos ou contestações, sob pena de severos castigos aos infratores. Não levavam em conta, pois, o livre-arbítrio do homem.

Trata-se da maior prova de que esses deuses foram “criados” pelas criaturas e não eram preexistentes a elas, dado o fato que tinham paixões, iras, caprichos e contradições absolutamente humanos. Os heróis das tragédias eram os que transgrediam essas regras das caprichosas divindades, quer por manifestação de vontade pessoal, quer de forma inconsciente e às vezes meramente circunstancial, mesmo tendo que enfrentar a ira divina.

Um dos mitos que acompanham o ser humano há milênios, sem que seja possível determinar sua origem, é o da chamada “Idade de Ouro”. Ou seja, de um estágio ideal de vida, em que todos os problemas e contradições da convivência entre as pessoas estariam equacionados, em que todos os homens seriam solidários e felizes e não haveria cobiça, desníveis sociais e conflitos. Seria o retorno ao Éden, ao Paraíso original, à vida eterna e de gozo.

Raoul Girardet observou: “A visão da Idade de Ouro confunde-se irredutivelmente com a de um tempo não-datado, não-mensurável, não-contabilizável, do qual se sabe, apenas, que se situa no começo da aventura humana e que foi o da inocência e da felicidade”.

Há, no entanto, quem situe essa era radiosa e ideal não no passado remoto, mas num futuro distante. São os idealistas, que acreditam que um dia a razão irá preponderar sobre os instintos e sobre a força bruta. É claro que não há previsão de “quando” isso poderia acontecer. Os céticos, materialistas, por seu turno, não acreditam que essa era ideal tenha existido no passado e muito menos que venha a existir no futuro. E há os que vêem no Estado o criador potencial desse tempo de solidariedade e de justiça social e, sobretudo, de perfeição humana.

Já os animistas entendem que a Idade de Ouro vá ocorrer, mas não nesta vida ou no plano material, mas numa outra dimensão, apenas espiritual, outorgada pela divindade aos que seguirem os seus preceitos e rituais. Este, portanto, é um mito perene, inesgotável, presente de uma forma ou de outra em todas as culturas e religiões, embora cada uma com a sua retórica.

Os que acreditam que esta era ideal ficou perdida no passado, empreendem uma busca tenaz por sua reconstrução. Os que entendem que ela vai existir no futuro, têm esperanças de que estarão vivos para gozar de suas benesses.
Nem todos os mitos, no entanto, são saudáveis, inocentes ou meramente exóticos. Há os patológicos, que desligam as pessoas da realidade, as tornando anti-sociais. Os motivos para essas anomalias variam e vão desde distúrbios genéticos à inadaptação comportamental.

O psiquiatra escocês, Ronald David Laing, resumiu, em poucas palavras, o que conduz um indivíduo aparentemente normal à esquizofrenia. Observou: “A pessoa que de repente não quer mais corresponder à imagem que sua família ou o meio social lhe impingiu, refugia-se no irreal, no imaginário, torna-se esquizofrênica”.

A loucura, em suas diversas formas, nem sempre é fácil de ser diagnosticada. Há quem garanta que ela raramente o é com precisão e segurança. Genericamente, porém, pode ser dito que todo o indivíduo “alheio ao mundo”, sem meios de entender o que se passa ao seu redor, ou de agir sobre isso, é “louco” ou, como querem alguns, “alienado”.

Existiriam, conforme muitos especialistas, vários estados intermediários de desligamento da realidade. Tudo começaria com contatos mais ou menos reais com o mundo, até a ocorrência da fuga total. Seria um escape para a pura fantasia, em geral angustiante e opressiva, não raro, insuportável. Este último estágio é que seria o da loucura. Não deixa, como se vê, de ser um conceito bastante vago e impreciso.

Grande parte da humanidade, conforme revelam pesquisas, se encontra nessa fase intermediária entre a realidade plena e a alienação. Por isso, até que se justifica (em termos) o dito popular: “Em cada sete pessoas, seis são loucas e uma pensa que não é”. No estágio de semi-alienação, porém, o indivíduo ainda pode ser salvo, dependendo de ser ou não compreendido pelos que o cercam e com ele convivem. Se ajudado, tende a se ligar, de novo, ao mundo. Caso contrário...Ronald Laing adverte, todavia: “Uma palavra pode matar uma pessoa. Uma simples palavra, colocada no lugar certo, no momento certo, pode mudar toda uma vida”. E como pode!

A palavra “mito” pode ter conotações populares, que nada têm a ver com filosofia. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em seu “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, menciona alguns desses significados. O termo pode designar, por exemplo, a representação de fatos ou personagens reais, exagerados pela imaginação do povo, pela tradição etc.

Outra interpretação apontada pelo dicionarista é a de “pessoa ou fato assim representado ou concebido: para muitos, Ruy Barbosa é um mito, no sentido de ‘monstro sagrado’”. O mesmo poderíamos dizer de pessoas excepcionais em suas respectivas atividades, como Pelé, Michael Jordan, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros.

Aurélio aponta outro significado: “Idéia falsa sem correspondência na realidade”. E exemplifica: “As dívidas surgidas no inventário demonstram que a sua fortuna era um mito”. Finalmente, digno de nota, é o sentido apontado de “coisa inacreditável, fantasiosa, irreal, utopia”. Aurélio dá, como exemplo, neste caso, esta frase: “A perfeição absoluta é um mito”.

Um dos mitos mais conhecidos é o “da Caverna”, de Platão, que simboliza o processo que, no entender do filósofo grego, “a alma passa da ignorância à verdade”. É exposto, com minúcia, no livro sétimo de “A República”. No texto, o autor buscou, através da sua teoria das idéias, explicar o conhecimento e a existência das coisas.

Para Platão, “o mundo é ordenado segundo uma hierarquia de formas ligadas entre si por uma relação de comunidade ou de exclusão”. Propiciar sua descoberta é que seria o papel do filósofo. Platão afirma que o universo, praticamente, é constituído de “coisas e não-coisas”. Uma determinada forma, portanto, deve entrar numa dessas categorias e ser, por conseguinte, excluída da outra.

Para exemplificar, podemos definir, por esse critério, uma baleia da seguinte forma: trata-se de um corpo e não de uma relação. É vivo, e não inorgânico. É um animal e não vegetal. É mamífero, e não ovíparo. É cetáceo e não de outro tipo. É do mar, e não da terra. A definição dessa baleia, portanto, será esta: um corpo vivo, animal, mamífero, cetáceo e do mar.

Para Platão, as “idéias” eram unidades inteligíveis hierarquizadas sob a égide do Bem. Com elas, o filósofo procurou explicar o conhecimento e a existência das coisas. O recurso utilizado foi o da “participação do sensível no inteligível e da reminiscência”. Esta última seria a memória que a alma tem de uma vida anterior da qual foi separada.

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