Autofagia das megalópolis
Pedro J. Bondaczuk
As palavras “megalópole”, e sua variante “megalópolis” (minha preferida), já constam dos bons dicionários, ao contrário do que muitos pensam. Fui questionado, recentemente, por exemplo, sobre sua existência por um leitor, a propósito de recente poema meu que divulguei, e que tinha esse título. Ambas as formas, claro, têm o mesmo significado. E são substantivos femininos. O Dicionário Português Online define-as assim: “Designação dada às grandes aglomerações populacionais constituídas por metrópoles cujos limites se interpenetram, como é o caso da faixa costeira norte-americana que se estende de Boston a Washington e compreende as cidades de Nova York, Filadélfia e Baltimore”.
A palavra pode até ser nova, mas o conceito não é. Foi utilizado, por exemplo, há muito tempo, no início do século XX, mais especificamente em 1918, pelo historiador e filósofo alemão Oswald Spengler, em seu polêmico, mas fundamental livro “O declínio do Ocidente”. Ressalte-se que essa obra constitui um marco nos debates historiográficos, políticos e filosóficos há já quase cem anos. Ainda influencia gerações de historiadores mundo afora, notadamente na Europa. A enciclopédia eletrônica Wikipédia cita, por exemplo, duas grandes personalidades influenciadas por esse livro: o historiador inglês Arnold Toynbee, na Filosofia da História, e o escritor e ex-ministro da Cultura da França, André Malraux, na Filosofia da Arte.
Spengler, na verdade, não se refere especificamente, ou literalmente, a alguma “megalópole” (ou “megalópolis” como queiram). Cita “cidades megalopolitanas”, o que vem a dar na mesma. Convém, antes de tudo, traçar alguns comentários a propósito das idéias e da postura desse nem sempre bem compreendido intelectual germânico, mais especificamente, prussiano. Há quem (errônea e injustamente) o acuse de ter sido simpatizante do nazismo. Afinal, o Partido Nacional Socialista, de Adolf Hitler, de triste memória para a humanidade, adotou muitos dos princípios defendidos por ele.
Todavia, Spengler escreveu seu célebre livro antes do surgimento desse movimento ideológico. Morreu, em Munique, em 8 de maio de 1936, apenas três anos após o nazismo ser implantado na Alemanha. Mas, até a morte, foi firme e inequívoco crítico dessa intolerável ideologia extremista, sobretudo do seu radicalismo e do seu racismo. Ler “O declínio do Ocidente” é uma aventura intelectual fascinante e que ainda vale a pena.
A propósito de “megalópolis”, que na época em que o historiador e filósofo alemão escreveu sua obra, mal se esboçavam, e nem de longe eram sequer parecidas com as atuais, Spengler escreveu: “As cidades megalopolitanas são todas intelecto. Seu crescimento desproporcionado, seus contrastes de riqueza e pobreza, sua vida artificial e o ‘tardium vitae’ apressam-lhe o fim”.
A seguir, fala da dependência da tecnologia que os cidadãos, os habitantes daquelas megazonas urbanas, já tinham arraigada. Escreveu a propósito: “Em nossos dias, o senhor do mundo, o homem ocidental, está se tornando o escravo da máquina. Todas as coisas orgânicas agonizam nas garras dessa organização megalopolitana da máquina. A máquina acaba por destruir a si mesma. Na gaiola de aço e pedra das suas cidades, o homem ocidental começa a sentir-se farto das máquinas e da civilização e a voltar às formas simples de vida, à Natureza”.
O leitor talvez estranhe o fato de Spengler afirmar que o “homem ocidental” era “o senhor do mundo”. É necessário contextualizar essa afirmação. Na época em que o livro foi escrito, ele, de fato, era o grande “proprietário” do Planeta e em sentido literal. As potências ocidentais – Grã-Bretanha, França, Alemanha e Estados Unidos – eram detentoras de várias colônias, notadamente na África e na Ásia. Países europeus de menor porte – como Bélgica, Holanda, Itália, Portugal e Espanha – também detinham o seu quinhão. Vivia-se em pleno período colonial, que somente acabaria ao término da Segunda Guerra Mundial, e de forma mais intensa, ao longo da década de 1960, quando a maioria dos atuais países africanos e asiáticos obteve suas respectivas independências nacionais.
Na Ásia, por exemplo, a China, posto que não colônia, vivia às voltas com intestinos distúrbios internos e profunda instabilidade social, num estado literalmente de caos, que a enfraquecia quer política, quer economicamente. A Índia ainda era colônia britânica, unida ao atual Paquistão, formando um único (e turbulento) território. Malásia, Birmânia, Singapura, Indonésia etc. igualmente permaneciam colonizadas. O “homem ocidental”, portanto, era de fato “o senhor do mundo”.
O notável é que Spengler previu, com muita antecedência, o fim do colonialismo. Claro que na época sua previsão despertou ceticismo. No mínimo, não foi levada a sério. Ele escreveu a propósito: “A segunda religiosidade já vem a caminho. Os povos coloniais explorados sublevam-se contra o homem branco megapolitano. A civilização da máquina começa a destruir a si mesma e um dia jazerá em fragmentos, esquecida, nossas estradas de ferro e transatlânticos tão mortos quanto as estradas romanas e a Muralha da China, nossas cidades gigantes e nossos arranha-céus em ruínas como a velha Mênfis e a antiga Babilônia. A história da técnica megapolitana da máquina aproxima-se rapidamente do seu fim inevitável. Ela será devorada por dentro, como a forma superior de toda cultura. Quando e de que modo, é o que não sabemos”.
A despeito, todavia, do fim do colonialismo, a decadência que Spengler previu, não apenas para as cidades megapolitanas, mas, e sobretudo, para as potências ocidentais, ainda não se concretizou, embora possa (tudo indica que sim) estar a caminho. Queiram ou não, esse processo está em pleno andamento e talvez já não possa mais ser detido. Talvez algumas potências consigam somente retardá-lo. Estão aí as sucessivas crises econômicas a indicar essa direção. Cidades asiáticas, que Spengler não considerava “megalópolis” (talvez por desconhecê-las ou talvez porque na ocasião de fato não o fossem) adquiriram essa conformação, como são os casos de Xangai, Pequim, Hong Kong, Tóquio, Taipei, Bombaim e tantas outras.
Estaria a balança do poderio mundial pendendo na direção das chamadas “potências emergentes” (Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul, entre outras)? Isto, só o tempo comprovará ou desmentirá. Minha intuição é que, provavelmente, confirmará a irreversível decadência do Ocidente (não tomado, apenas, no sentido geográfico, mas na conceituação dada por Spengler), com a destruição da tal da “civilização da máquina”, que estaria arruinando a si própria, num processo de autofagia, de erosão de dentro para fora. É caso para se pensar.
Pedro J. Bondaczuk
As palavras “megalópole”, e sua variante “megalópolis” (minha preferida), já constam dos bons dicionários, ao contrário do que muitos pensam. Fui questionado, recentemente, por exemplo, sobre sua existência por um leitor, a propósito de recente poema meu que divulguei, e que tinha esse título. Ambas as formas, claro, têm o mesmo significado. E são substantivos femininos. O Dicionário Português Online define-as assim: “Designação dada às grandes aglomerações populacionais constituídas por metrópoles cujos limites se interpenetram, como é o caso da faixa costeira norte-americana que se estende de Boston a Washington e compreende as cidades de Nova York, Filadélfia e Baltimore”.
A palavra pode até ser nova, mas o conceito não é. Foi utilizado, por exemplo, há muito tempo, no início do século XX, mais especificamente em 1918, pelo historiador e filósofo alemão Oswald Spengler, em seu polêmico, mas fundamental livro “O declínio do Ocidente”. Ressalte-se que essa obra constitui um marco nos debates historiográficos, políticos e filosóficos há já quase cem anos. Ainda influencia gerações de historiadores mundo afora, notadamente na Europa. A enciclopédia eletrônica Wikipédia cita, por exemplo, duas grandes personalidades influenciadas por esse livro: o historiador inglês Arnold Toynbee, na Filosofia da História, e o escritor e ex-ministro da Cultura da França, André Malraux, na Filosofia da Arte.
Spengler, na verdade, não se refere especificamente, ou literalmente, a alguma “megalópole” (ou “megalópolis” como queiram). Cita “cidades megalopolitanas”, o que vem a dar na mesma. Convém, antes de tudo, traçar alguns comentários a propósito das idéias e da postura desse nem sempre bem compreendido intelectual germânico, mais especificamente, prussiano. Há quem (errônea e injustamente) o acuse de ter sido simpatizante do nazismo. Afinal, o Partido Nacional Socialista, de Adolf Hitler, de triste memória para a humanidade, adotou muitos dos princípios defendidos por ele.
Todavia, Spengler escreveu seu célebre livro antes do surgimento desse movimento ideológico. Morreu, em Munique, em 8 de maio de 1936, apenas três anos após o nazismo ser implantado na Alemanha. Mas, até a morte, foi firme e inequívoco crítico dessa intolerável ideologia extremista, sobretudo do seu radicalismo e do seu racismo. Ler “O declínio do Ocidente” é uma aventura intelectual fascinante e que ainda vale a pena.
A propósito de “megalópolis”, que na época em que o historiador e filósofo alemão escreveu sua obra, mal se esboçavam, e nem de longe eram sequer parecidas com as atuais, Spengler escreveu: “As cidades megalopolitanas são todas intelecto. Seu crescimento desproporcionado, seus contrastes de riqueza e pobreza, sua vida artificial e o ‘tardium vitae’ apressam-lhe o fim”.
A seguir, fala da dependência da tecnologia que os cidadãos, os habitantes daquelas megazonas urbanas, já tinham arraigada. Escreveu a propósito: “Em nossos dias, o senhor do mundo, o homem ocidental, está se tornando o escravo da máquina. Todas as coisas orgânicas agonizam nas garras dessa organização megalopolitana da máquina. A máquina acaba por destruir a si mesma. Na gaiola de aço e pedra das suas cidades, o homem ocidental começa a sentir-se farto das máquinas e da civilização e a voltar às formas simples de vida, à Natureza”.
O leitor talvez estranhe o fato de Spengler afirmar que o “homem ocidental” era “o senhor do mundo”. É necessário contextualizar essa afirmação. Na época em que o livro foi escrito, ele, de fato, era o grande “proprietário” do Planeta e em sentido literal. As potências ocidentais – Grã-Bretanha, França, Alemanha e Estados Unidos – eram detentoras de várias colônias, notadamente na África e na Ásia. Países europeus de menor porte – como Bélgica, Holanda, Itália, Portugal e Espanha – também detinham o seu quinhão. Vivia-se em pleno período colonial, que somente acabaria ao término da Segunda Guerra Mundial, e de forma mais intensa, ao longo da década de 1960, quando a maioria dos atuais países africanos e asiáticos obteve suas respectivas independências nacionais.
Na Ásia, por exemplo, a China, posto que não colônia, vivia às voltas com intestinos distúrbios internos e profunda instabilidade social, num estado literalmente de caos, que a enfraquecia quer política, quer economicamente. A Índia ainda era colônia britânica, unida ao atual Paquistão, formando um único (e turbulento) território. Malásia, Birmânia, Singapura, Indonésia etc. igualmente permaneciam colonizadas. O “homem ocidental”, portanto, era de fato “o senhor do mundo”.
O notável é que Spengler previu, com muita antecedência, o fim do colonialismo. Claro que na época sua previsão despertou ceticismo. No mínimo, não foi levada a sério. Ele escreveu a propósito: “A segunda religiosidade já vem a caminho. Os povos coloniais explorados sublevam-se contra o homem branco megapolitano. A civilização da máquina começa a destruir a si mesma e um dia jazerá em fragmentos, esquecida, nossas estradas de ferro e transatlânticos tão mortos quanto as estradas romanas e a Muralha da China, nossas cidades gigantes e nossos arranha-céus em ruínas como a velha Mênfis e a antiga Babilônia. A história da técnica megapolitana da máquina aproxima-se rapidamente do seu fim inevitável. Ela será devorada por dentro, como a forma superior de toda cultura. Quando e de que modo, é o que não sabemos”.
A despeito, todavia, do fim do colonialismo, a decadência que Spengler previu, não apenas para as cidades megapolitanas, mas, e sobretudo, para as potências ocidentais, ainda não se concretizou, embora possa (tudo indica que sim) estar a caminho. Queiram ou não, esse processo está em pleno andamento e talvez já não possa mais ser detido. Talvez algumas potências consigam somente retardá-lo. Estão aí as sucessivas crises econômicas a indicar essa direção. Cidades asiáticas, que Spengler não considerava “megalópolis” (talvez por desconhecê-las ou talvez porque na ocasião de fato não o fossem) adquiriram essa conformação, como são os casos de Xangai, Pequim, Hong Kong, Tóquio, Taipei, Bombaim e tantas outras.
Estaria a balança do poderio mundial pendendo na direção das chamadas “potências emergentes” (Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul, entre outras)? Isto, só o tempo comprovará ou desmentirá. Minha intuição é que, provavelmente, confirmará a irreversível decadência do Ocidente (não tomado, apenas, no sentido geográfico, mas na conceituação dada por Spengler), com a destruição da tal da “civilização da máquina”, que estaria arruinando a si própria, num processo de autofagia, de erosão de dentro para fora. É caso para se pensar.
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