Thursday, February 09, 2012









Vida que rivaliza com a obra

Pedro J. Bondaczuk

O escritor russo, considerado como o legítimo fundador do existencialismo, Fedor Dostoievski, é daqueles cuja biografia, se não supera, pelo menos se iguala, em drama e interesse, à sua obra. E olhem que esta foi original e única. Para que vocês tenham uma idéia da sua criatividade, basta dizer que, para o “pai da psicanálise”, Sigmund Freud, “Os irmãos Karamazov foi o melhor romance escrito em todos os tempos”. Claro que se trata de certo exagero. Mas não se pode negar que é um livro extraordinário, em todos os sentidos.
A vida desse escritor, porém, fascina os que tomam conhecimento dos principais fatos que protagonizou dada sua dramaticidade. Fedor Mihailovich Dostoievski nasceu em 11 de novembro de 1821 em São Petersburgo, então a capital da Rússia. Morreu cerca de três meses após completar 60 anos de idade, em 9 de fevereiro de 1881. Publicou 34 livros, sendo 15 romances, 17 novelas e contos e 2 de não-ficção (notas literárias e um diário). Postumamente, foi publicado um volume da sua correspondência.
Como que por ironia do destino, a vida de Dostoievski se restringiu, do nascimento até os 16 anos de idade, aos limites do hospital Marinski, onde o pai era médico. Arguto observador, desde menino, via como eram maltratadas as pessoas humildes, que necessitavam de assistência à saúde (como ocorre, ainda hoje, em várias partes do mundo, inclusive, guardadas as devidas proporções, aqui no Brasil). E as impressões colhidas nesse período seriam utilizadas pelo escritor, anos mais tarde, para um romance extraordinário e chocante (como de resto foi toda a sua obra), publicado em 1862, intitulado “Humilhados e ofendidos”.
A Rússia, em que Dostoievski viveu, era caracterizada por profundos desníveis sociais. Os camponeses e operários urbanos eram escravos, na mais autêntica acepção do termo, embora não fossem reconhecidos como tal. O país inteiro constituía-se no mais gigantesco latifúndio jamais visto em qualquer época ou lugar.
O povo, imerso em profunda ignorância, tinha no clero ortodoxo seu mais cruel algoz, pois era o instrumento, por excelência, para manter o estado de opressão, de domínio absoluto e incontestável, dos senhores feudais sobre os camponeses, tratados como servos e não como trabalhadores. O todo poderoso proprietário rural tinha, na prática, poder de vida e morte sobre os que viviam e trabalhavam em seus domínios. Estes tratados não como pessoas, como seres humanos dotados de inteligência e sentimentos, mas como “máquinas de gerar trabalho”, que poderiam ser descartadas e substituídas ao bel prazer dos seus “donos”.
Esse comportamento revoltava o idealista que existia em Dostoievski, que sonhava com uma pátria em que a igualdade de direitos e oportunidades fosse tônica e tivesse, pelos seus méritos e virtudes, hegemonia sobre as demais nações do mundo, como exemplo de boa convivência entre a totalidade do seu povo.
Seu contato com a literatura começou quando ainda vivia no hospital Marinski, com as leituras dos livros de Puchkin, Gogol e, principalmente, do inglês Sir Walter Scott. O acontecimento que iria transformar sua vida seria a morte da mãe, com quem tinha muitas afinidades e por quem nutria irrestrita admiração. Após sua perda, resolveu desbravar novos horizontes e deixar o ambiente restrito e opressivo do hospital. Entrou, pois, para a Escola Militar de Engenharia, atendendo, dessa forma, sonho da mãe.
São Petersburgo seria marcante em sua vida e na carreira de escritor. Foi lá que produziu, e publicou, seu primeiro texto literário, um conto chamado “Pobre gente”, que foi recebido muito favoravelmente pela crítica e que recebeu elogios de consagrados membros da vanguarda literária russa, como Bielinski e Nekrasov, entre outros.
Mas foi, também, na capital do império que Dostoievski se envolveu em atividades políticas (que lhe valeriam, tempos depois, imensos dissabores e duríssimas experiências pessoais). Em São Petersburgo ligou-se a vários intelectuais, cientistas, filósofos e oficiais do exército, no que se convencionou chamar de “Círculo de Petrachevski”, pelo fato do grupo ser liderado pelo anarquista Mikhail Petrachevski, que então contava com 28 anos de idade.
Todos esses jovens, intelectuais inconformados com a situação social da Rússia, a maioria escritores, acreditavam que o socialismo seria a salvação para seu imenso e caótico país. Mas não nos moldes do que foi implantado após a Revolução Bolchevique de 1917. Tratava-se de um socialismo mais romântico, mais puro, mais ameno, virtualmente utópico em suas concepções.
Os jovens intelectuais do Círculo Petrachevski debatiam, criticavam e divulgavam obras de socialistas de projeção na Europa, como o francês Fourier (conde de Saint-Simon) e o galês Robert Owen.
Os poemas de Puchkin eram recitados com vibração e fervor e as críticas dos jornalistas de vanguarda, cujos textos eram “underground”, pois sofriam rigorosa proibição por parte dos censores czaristas, eram analisados em minúcias. Enfim, embora seus membros não se vissem como tal, o grupo era revolucionário, na verdadeira acepção do termo. E manteve-se atuante por bom tempo, com as semanais reuniões das sextas-feiras sendo realizadas por um período de três anos.
Um dia, em 1849, a “casa caiu”. As atividades do “Círculo Petrachevski” foram descobertas pela polícia do czar. Comenta-se que houve delação, embora isso jamais tenha sido provado. Mas todos os membros dessa confraria foram presos, acusados de crime de sedição e complô para derrubar o regime e condenados à pena de morte, inclusive Dostoievski. Muitos foram executados. O escritor, porém, teve a pena comutada e transformada em prisão, na longínqua e gélida Sibéria. Sobre esse período, todavia, voltarei a tratar com mais detalhes, pela sua importância histórica.

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