Saturday, February 25, 2012







Origem do conceito de utopia


Pedro J. Bondaczuk


A palavra "utopia" significava, em grego, "não existe tal lugar". É formada pelo prefixo “U”, que nesse idioma significa “não” (ou seja, exprime a idéia de negação), e por “topia”, que quer dizer “lugar”. Da junção desses dois termos originou-se, pois, “não-lugar”. Ou seja, o local “em que não estamos agora”. Embora a palavra seja formada por duas expressões gregas, curiosamente, não existia, com essa conotação, nesse idioma. Foi criada, na verdade, pelo inglês Tomas Morus.

Em sua obra “Direito e Utopia”, o eminente jurista João Batista Herkenhoff confirma essa origem européia da expressão. Destaca que a palavra deriva, de fato, do grego (embora sem ser grega), e que significa: “que não existe em nenhum lugar”. Pondera, todavia, que esse conceito não pode e nem deve ser confundido com o de mito, do qual, na verdade, é o oposto. Ou seja, enfatiza que se trata da “representação daquilo que não existe ainda, mas que poderá existir se o homem lutar para a sua concretização”. E continua dizendo que esse ideal é a consciência antecipadora do amanhã. “O mito ilude o homem e retarda a história. A utopia alimenta o projeto de luta e faz a história”, destaca o jurista. Herkenhoff vê, dessa forma, no pensamento utópico, o “grande motor das revoluções”.

Caso aceitemos essas ponderações (e não há porque não aceitar), “utopia significa não-lugar ou lugar onde a vida seria melhor. É a esperança de realizar sonhos de justiça e liberdade social e, simultaneamente, de alcançar plena e autônoma realização pessoal. A eterna utopia, portanto, é realizar a identidade existente entre o eu e nós”, conclui Herkenhoff.

Atualmente, a palavra tem outra conotação, embora se assemelhe bastante à original. É utilizada no sentido de "idealização", de busca de algo de tal sorte elevado, que é impossível de ser alcançado. No entanto, atrevo-me a emprestar ao termo um significado diferente, totalmente novo: o de meta de perfeição humana a ser buscada de forma persistente e até teimosa, não por um único indivíduo, ou por um só grupo de homens esclarecidos e iluminados ou de um único tempo, mas por milhões, quiçá bilhões de pessoas, através de sucessivas gerações.

O ensaísta norte-americano Henry David Thoreau, que em alguns de seus textos é extremamente cáustico na defesa das liberdades individuais, escreveu, no livro “Desobedecendo”: "Se você construiu castelos no ar, não terá desperdiçado seu trabalho, pois no alto é onde devem estar. Agora, coloque fundações embaixo deles". Ou seja, enfatizou que, por maiores e mais arrojados que sejam nossos ideais, estes não podem se limitar a meras elucubrações, sob pena de desperdício de tempo. Para que gerem os efeitos desejáveis, devemos agir (nos limites de nossas forças e de nossa capacidade intelectual), sem tréguas ou esmorecimento, para torná-los concretos.

A tentativa de construir um mundo melhor, onde preponderem a solidariedade, o amor e a justiça, deve ser, pois, o objetivo máximo, constante, permanente, obsessivo até de sucessivas gerações, sempre em sentido evolutivo, de tal sorte que a humanidade caminhe – ora a passos lentos, ora de maneira acelerada, de acordo com as circunstâncias de momento – rumo à razão absoluta. Que marche em direção a uma sociedade harmoniosa e consensual, onde não haja oprimidos e nem opressores; nababos nem miseráveis e na qual não existam indivíduos mergulhados na absoluta ignorância, sem sequer dominar a leitura, como ocorre hoje. Estima-se que haja no mundo, em pleno século XXI, um bilhão de analfabetos, a maioria dos quais, mulheres, o que é uma aberração.

A palavra “utopia” foi cunhada, pela primeira vez, em dezembro de 1516, por Thomas Morus. Trata-se de um dos mais notáveis e controvertidos humanistas, íntimo de Erasmo de Rotterdã (que o celebrou, inclusive, no seu "Moriae Encomium" ou "Elogio da Loucura"). Tanto que foi beatificado em 1886 e canonizado por Pio XI em 1935. A força de suas idéias foi de tal sorte que, embora santo da Igreja Católica, tem uma estátua em plena Moscou, erigida por autoridades comunistas, portanto atéias, da extinta União Soviética.

Seu livro “De optimo republicae statu deque nova insula Utopia”, que gerou tanta polêmica naquele início do século XVI, quando foi publicado – e não somente na Inglaterra ou na Europa, mas em todos os círculos intelectuais de então – segue mais atual do que nunca. É lido, estudado e debatido por críticos literários, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos etc., das mais diversas escolas e tendências, mundo afora, que ora defendem, ora buscam ridicularizar suas propostas para uma sociedade ideal. Constitui-se em marco na história da utopia.

Destaco, todavia, um aspecto importante nessa minha ligeira análise do tema. Na Antigüidade, como veremos na seqüência, havia um conceito utópico bem definido, mas não existia a palavra que o caracterizasse. Já na fase das utopias literárias, havia o termo, mas elas não eram consideradas um movimento, nem mesmo pelos seus detratores, por seus inimigos, por aqueles que as combatiam, ferrenhamente, as considerando como um conjunto de heresias. Não passavam, segundo seus adversários, no máximo, de meras formas de se escrever ficção, se tanto.

O homem, único ser racional conhecido – é possível e até provável que na imensidão do universo, com quatrilhões ou mais de mundos, em uma infinidade de galáxias e sistemas estelares, haja outros, até mais inteligentes e perfeitos – é capaz, no meu entender, de concretizar qualquer sonho ou ideal, por mais inexeqüível que pareça. Pode edificar qualquer utopia que engendre, desde que o queira, de fato. O Homo Sapiens, devo ressaltar em seu favor, é um ser ainda muito novo, se comparado, já não direi ao tempo universal, mas à mera idade da Terra.

A propósito da existência ou não de vida em outras partes do cosmo, abro um parêntese para expor a instigante a opinião de Arthur Clarke, autor de "2001, uma Odisséia no Espaço" e "Laranja Mecânica", entre outras obras de ficção científica, a esse respeito. Ela foi exposta em um extenso artigo, intitulado "O futuro do mundo das comunicações", estampado no Suplemento Literário do jornal "O Estado de São Paulo", em 3 de setembro de 1978.

Diz o escritor: "Se décadas e séculos se passarem, sem qualquer indício de que há vida inteligente alhures no universo, os efeitos a longo prazo sobre a filosofia humana serão profundos – e talvez desastrosos. É melhor termos vizinhos que não gostamos, do que estarmos absolutamente sozinhos, porque a solidão cósmica poderia indicar uma conclusão muito deprimente – que a inteligência assinala o fim da evolução. Não. Não acredito nisso". Também não creio!

Recorde-se que os primeiros hominídeos, com lampejos, posto que primitivíssimos, de inteligência, datam de pouco mais de 50 mil anos, de acordo com as mais recentes conclusões dos pesquisadores. Ou seja, é um quase nada em relação aos quatro bilhões de anos de existência do Planeta. A espécie surgiu, por exemplo, pelo menos sessenta e cinco milhões de anos após a extinção das grandes bestas, dentre as quais as que mais fantasias despertam nas pessoas são os dinossauros. É provável que se estes não se extinguissem, o Homo Sapiens não tivesse a mínima possibilidade de existir. Mas existe! E que salto magnífico essa criatura deu, das cavernas às viagens espaciais! No entanto, ainda está engatinhando no que diz respeito ao autoconhecimento, ao domínio dos seus instintos, ao relacionamento com os indivíduos da própria espécie e das demais que o cercam.

Desde a invenção da escrita, milhares de textos foram deixados à posteridade, sobre uma suposta e desejável "Idade de Ouro", quando os homens teriam vivido em inocência, o vício da cupidez ainda não havia criado as odiosas divisões de classe e a humanidade seria harmoniosa e feliz. Provavelmente, os autores, das mais diversas épocas, lugares e costumes, expressaram somente o seu ideal, a utopia das utopias.

A partir da Renascença, com o advento da era das grandes navegações, circularam lendas a propósito da existência de um lugar de plena felicidade. Seria uma ilha, perdida em vastidões oceânicas e isolada do mundo, para evitar o contágio das pseudocivilizações existentes, mormente as européias e asiáticas. Foi à procura desse hipotético paraíso que Cristóvão Colombo aportou na América, julgando estar na Ásia, próximo à procurada "ilha das especiarias".

O espanhol Cabeza de Vaca situou esse edênico local no coração da América do Sul, nos altiplanos andinos, provavelmente nos arredores do Lago Titicaca, no Peru ou no centro da Colômbia. Fernão de Magalhães circunavegou o Planeta e julgou ter descoberto a "ilha de ouro" nas Filipinas, onde morreu em combate com os nativos locais. Mungo Park e Richard Burton entenderam que esse paraíso existisse no interior da África e empreenderam, em vão, exaustiva jornada por vastas extensões desse continente, que lhes exauriu a saúde e abreviou a vida. Vitus Behring procurou esse lendário lugar no Extremo Norte da Terra, sem encontrá-lo. Encontrou foi a morte, mas descobriu a passagem entre a Ásia e a América.

Essa "ilha de ouro" não existe. Ainda está por ser construída por pessoas de larga visão e de boa vontade. Sua localização não vai estar em algum minúsculo pedaço de terra do Pacífico Sul, do Atlântico Norte ou de qualquer outro dos mares da Terra. Será neste próprio e bizarro planeta azul, em sua totalidade, assim que seus habitantes reciclarem suas prioridades e se derem conta da estupidez de acumular bugigangas, como fazem desde que tiveram o primeiro lampejo de consciência.

Embora seja óbvio que deste mundo não levamos coisa alguma, tão logo a morte – fatalidade biológica que atinge indistintamente o humilde e o poderoso, o sábio e o néscio, o rico e o miserável – nivele a todos, mas ao contrário deixamos atos e fatos e gestos de amor, o ideal das últimas gerações tem sido apenas o de juntar coisas, em geral inúteis. E isso precisa mudar. Utopia? Talvez! Todavia, factível. Ou não?!

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