Caricatura do poder
Pedro J. Bondaczuk
Os países da América Latina – e não vejo nenhuma exceção, pelo menos não me lembro de alguma – têm triste tradição política. Convivem, ou submetem-se ciclicamente, desde as respectivas independências, quando deixaram de ser colônias – a grande maioria da Espanha. e o Brasil de Portugal – com ditadores ridículos e megalomaníacos, com caudilhos caricatos, muitos dos quais, em neuróticos delírios, se julgavam semidivinos, eternos e merecedores de reverência e adoração. Há, ainda, vários deles por aí, à espreita, esperando a oportunidade de tomarem o poder.
Todos os países latino-americanos já passaram por essa malfadada experiência, uns por mais tempo, outros por menos, mas nenhum escapou dessa sina, o que talvez (ou certamente, sei lá) explique o atraso dessa região do mundo em relação às democracias européias e aos Estados Unidos (que no período da Guerra Fria, não somente sustentaram, como incentivaram e promoveram a instalação de muitas dessas ditaduras, que satisfaziam seus interesses, mas jamais os dos povos submetidos a tais tiranias).
Dezenas de livros foram escritos sobre o assunto, ora identificando os ditadores e os locais de suas ditaduras, ora criando personagens e republiquetas fictícios, mas de imediata identificação. Nenhuma dessas obras, todavia, se equipara, nem de longe (com todo o respeito que merecem), a “O outono do patriarca”, de Gabriel Garcia Marquez. Ao cabo da leitura das suas 260 páginas, por exemplo, o leitor fica sem saber, sequer, se leu um romance, ou se o texto não passou de uma brincadeira do autor. É um livro difícil, dificílimo de ler, que requer absurda concentração para não se perder.
Se alguém considera o estilo de José Saramago complexo (e é), irá considerá-lo facílimo de entender depois de ler essa caricatura de um típico caudilho latino-americano, “desenhada” pelo genial homem de letras colombiano. Gabriel Garcia Marquez classifica “O outono do patriarca” não como romance (como a maioria dos críticos e leitores faz), mas como um poema sobre a solidão do poder. O texto quase não tem parágrafos, apresenta pouca pontuação e escassa divisão em capítulos. Mistura tempos diversos, alternando passado e presente, além de diálogos e monólogos. Sua leitura é, pois, uma ginástica mental imensa, um teste à nossa capacidade de concentração.
Mas, essa complexidade diminui, ou até mesmo anula, o valor da obra? Não, não e não! Pelo contrário, torna-a mais genial, posto que única. Só que duvido que a maioria das pessoas que garantem ter lido o livro, o leu de fato. É provável que tenham lido, isto sim, sinopses de sinopses, quando não apenas a “orelha” que o introduz, e olhem lá.
A edição que tenho em mãos, da Editora Record, é a 3ª, datada de 1975. Marquez levou muito tempo para concluir essa obra, que começou a escrever em 1958. Explica que era, então, “uma narrativa conformista e linear, na terceira pessoa”. Enfocava a trajetória de um general, um ditador imaginário qualquer, de alguma republiqueta do Caribe. Foi na versão final que resolveu dar o rumo que deu a “O outono do patriarca”, o transformando em vigorosa e memorável “caricatura”. Isso mesmo. É o que essa festejada obra, de fato, é: caricatura.
O livro traz primorosa tradução de Remy Gorga Filho. É dele, também, o texto da “orelha” do volume que tenho em mãos, que inicia da seguinte forma: “Incrível, uma vaca na sacada presidencial!” Pois é, a vaca não sobe escada, mas essas vacas doiradas pelo sol do Caribe sobem. E ainda por cima abrem gavetas, pastam fichários e tapetes, atropelam-se por salões de audiências e recepção e fazem o pano de fundo fantástico da saga desse ditador ‘feudal e agropecuário’ que Gabriel Garcia Márquez nos dá em ‘O outono do patriarca’.
O caudilho que criou tem idade indefinida, entre 107 e 232 anos. Tinha um sósia perfeito, cópia mais exata do que se fosse gêmeo idêntico, Patrício Aragonês que, ao morrer, ou ser abatido, causou intensa euforia na população, que julgava que o morto fosse o ditador. Os que festejaram essa morte, porém, foram todos executados, e das formas mais cruéis imagináveis.
Trajando o tempo todo uniforme militar de cerimônia, com medalhas de ouro no peito, luvas de cetim e esporas de ouro que não tirava nem para dormir – e dormia no chão, com um dos braços sob a cabeça para fazer as vezes de travesseiro – o tirano, com enormes pés chatos, como patas de elefante e descomunal testículo, em conseqüência de uma hérnia, que o encheu de dor por toda a sua inútil e solitária vida, vivia como que prisioneiro de si mesmo, no palácio presidencial – onde pastavam vacas, cujas escadas estavam cheias de paralíticos e nos jardins, no meio de rosas, abrigavam-se leprosos – entre concubinas, filhos bastardos e ostentando insaciável apetite sexual senil.
Gabriel Garcia Márquez, a certa altura, reflete (reflexão, essa, que considero o ponto alto, o clímax do livro): “”O que é o poder? Que é que o gera? Que é que o alimenta?”. Remy, por sua parte, explica, na orelha do livro: “Seu Patriarca quer o poder pelo poder. Não é a pátria que o interessa. Não é o povo, e seu bem-estar, que o preocupa. Quer o poder, mas não sabe o que fazer dele, o que fazer com ele. Tomado de dúvidas, vive a permanente crise de nem mesmo saber por que tem o poder: o poder é um pequeno peixe vivo que se tomou nas mãos. E só se tem o poder se ele, vivo mas dominado, cabe no fundo da mão”.
E não é assim que esses caudilhos agem? Ao traçar sua jocosa, mas extensa e meticulosa caricatura do legítimo caudilho latino-americano, Gabriel Garcia Marquez, na verdade, apresenta um retrato de corpo inteiro do autêntico tiranete que explorou, perseguiu, dizimou e desgraçou seu povo até muito recentemente, bastando, apenas, lhe dar um rosto, um nome e um país nessa nossa infeliz América Latina. Obra complexa, esta, de difícil leitura e entendimento. Contudo, obra-prima de um gênio, de um lídimo ganhador, com méritos, do Prêmio Nobel de Literatura.
Pedro J. Bondaczuk
Os países da América Latina – e não vejo nenhuma exceção, pelo menos não me lembro de alguma – têm triste tradição política. Convivem, ou submetem-se ciclicamente, desde as respectivas independências, quando deixaram de ser colônias – a grande maioria da Espanha. e o Brasil de Portugal – com ditadores ridículos e megalomaníacos, com caudilhos caricatos, muitos dos quais, em neuróticos delírios, se julgavam semidivinos, eternos e merecedores de reverência e adoração. Há, ainda, vários deles por aí, à espreita, esperando a oportunidade de tomarem o poder.
Todos os países latino-americanos já passaram por essa malfadada experiência, uns por mais tempo, outros por menos, mas nenhum escapou dessa sina, o que talvez (ou certamente, sei lá) explique o atraso dessa região do mundo em relação às democracias européias e aos Estados Unidos (que no período da Guerra Fria, não somente sustentaram, como incentivaram e promoveram a instalação de muitas dessas ditaduras, que satisfaziam seus interesses, mas jamais os dos povos submetidos a tais tiranias).
Dezenas de livros foram escritos sobre o assunto, ora identificando os ditadores e os locais de suas ditaduras, ora criando personagens e republiquetas fictícios, mas de imediata identificação. Nenhuma dessas obras, todavia, se equipara, nem de longe (com todo o respeito que merecem), a “O outono do patriarca”, de Gabriel Garcia Marquez. Ao cabo da leitura das suas 260 páginas, por exemplo, o leitor fica sem saber, sequer, se leu um romance, ou se o texto não passou de uma brincadeira do autor. É um livro difícil, dificílimo de ler, que requer absurda concentração para não se perder.
Se alguém considera o estilo de José Saramago complexo (e é), irá considerá-lo facílimo de entender depois de ler essa caricatura de um típico caudilho latino-americano, “desenhada” pelo genial homem de letras colombiano. Gabriel Garcia Marquez classifica “O outono do patriarca” não como romance (como a maioria dos críticos e leitores faz), mas como um poema sobre a solidão do poder. O texto quase não tem parágrafos, apresenta pouca pontuação e escassa divisão em capítulos. Mistura tempos diversos, alternando passado e presente, além de diálogos e monólogos. Sua leitura é, pois, uma ginástica mental imensa, um teste à nossa capacidade de concentração.
Mas, essa complexidade diminui, ou até mesmo anula, o valor da obra? Não, não e não! Pelo contrário, torna-a mais genial, posto que única. Só que duvido que a maioria das pessoas que garantem ter lido o livro, o leu de fato. É provável que tenham lido, isto sim, sinopses de sinopses, quando não apenas a “orelha” que o introduz, e olhem lá.
A edição que tenho em mãos, da Editora Record, é a 3ª, datada de 1975. Marquez levou muito tempo para concluir essa obra, que começou a escrever em 1958. Explica que era, então, “uma narrativa conformista e linear, na terceira pessoa”. Enfocava a trajetória de um general, um ditador imaginário qualquer, de alguma republiqueta do Caribe. Foi na versão final que resolveu dar o rumo que deu a “O outono do patriarca”, o transformando em vigorosa e memorável “caricatura”. Isso mesmo. É o que essa festejada obra, de fato, é: caricatura.
O livro traz primorosa tradução de Remy Gorga Filho. É dele, também, o texto da “orelha” do volume que tenho em mãos, que inicia da seguinte forma: “Incrível, uma vaca na sacada presidencial!” Pois é, a vaca não sobe escada, mas essas vacas doiradas pelo sol do Caribe sobem. E ainda por cima abrem gavetas, pastam fichários e tapetes, atropelam-se por salões de audiências e recepção e fazem o pano de fundo fantástico da saga desse ditador ‘feudal e agropecuário’ que Gabriel Garcia Márquez nos dá em ‘O outono do patriarca’.
O caudilho que criou tem idade indefinida, entre 107 e 232 anos. Tinha um sósia perfeito, cópia mais exata do que se fosse gêmeo idêntico, Patrício Aragonês que, ao morrer, ou ser abatido, causou intensa euforia na população, que julgava que o morto fosse o ditador. Os que festejaram essa morte, porém, foram todos executados, e das formas mais cruéis imagináveis.
Trajando o tempo todo uniforme militar de cerimônia, com medalhas de ouro no peito, luvas de cetim e esporas de ouro que não tirava nem para dormir – e dormia no chão, com um dos braços sob a cabeça para fazer as vezes de travesseiro – o tirano, com enormes pés chatos, como patas de elefante e descomunal testículo, em conseqüência de uma hérnia, que o encheu de dor por toda a sua inútil e solitária vida, vivia como que prisioneiro de si mesmo, no palácio presidencial – onde pastavam vacas, cujas escadas estavam cheias de paralíticos e nos jardins, no meio de rosas, abrigavam-se leprosos – entre concubinas, filhos bastardos e ostentando insaciável apetite sexual senil.
Gabriel Garcia Márquez, a certa altura, reflete (reflexão, essa, que considero o ponto alto, o clímax do livro): “”O que é o poder? Que é que o gera? Que é que o alimenta?”. Remy, por sua parte, explica, na orelha do livro: “Seu Patriarca quer o poder pelo poder. Não é a pátria que o interessa. Não é o povo, e seu bem-estar, que o preocupa. Quer o poder, mas não sabe o que fazer dele, o que fazer com ele. Tomado de dúvidas, vive a permanente crise de nem mesmo saber por que tem o poder: o poder é um pequeno peixe vivo que se tomou nas mãos. E só se tem o poder se ele, vivo mas dominado, cabe no fundo da mão”.
E não é assim que esses caudilhos agem? Ao traçar sua jocosa, mas extensa e meticulosa caricatura do legítimo caudilho latino-americano, Gabriel Garcia Marquez, na verdade, apresenta um retrato de corpo inteiro do autêntico tiranete que explorou, perseguiu, dizimou e desgraçou seu povo até muito recentemente, bastando, apenas, lhe dar um rosto, um nome e um país nessa nossa infeliz América Latina. Obra complexa, esta, de difícil leitura e entendimento. Contudo, obra-prima de um gênio, de um lídimo ganhador, com méritos, do Prêmio Nobel de Literatura.
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