Aprendizado no sofrimento
Pedro J. Bondaczuk
O sofrimento, quer o físico, quer o moral, quer o afetivo, quer, e principalmente, o psicológico, embora nos oprima e desespere, tem uma função didática, depois que passa (quando passa). As pessoas normais, via de regra, buscam esquecê-lo. Algumas ficam tão traumatizadas que, sempre que lembram dos maus momentos pelos quais passaram, voltam a sofrer com quase a mesma intensidade. Ninguém, a menos que se trate de um renitente masoquista, gosta de sofrer. E nem de lembrar seus sofrimentos. Poucos, pouquíssimos, extraem alguma lição deles.
Há, todavia, quem faça de seus tormentos matéria-prima de grandes obras artísticas. Estes. como todos, evidentemente, não gostam de sofrer. Evitam sofrimentos (os evitáveis, óbvio) da melhor maneira possível. Mas não buscam esquecer os que tiveram. Pelo contrário, tentam lembrá-los em minúcias, em detalhes, ponto a ponto. E perpetuam-nos em enredos e personagens marcantes. Refiro-me a “alguns” escritores (nem todos). E entre estes, destaco Fedor Dostoievski.
Em 23 de abril de 1849, o escritor, e todos os membros do chamado “Círculo de Petrachevski” – entre os quais o próprio Mikhail Petrachevski – foram presos, em São Petersburgo, pela polícia do czar. Recorde-se que esse grupo de jovens intelectuais idealistas dedicava-se, principalmente, a discutir as terríveis condições de vida da Rússia czarista, à luz das obras da farta bibliotecas do seu mentor, principalmente de livros proibidos pelas autoridades.
Seus integrantes sonhavam em implantar no país um regime fundamentado no ideal da Revolução Francesa, de igualdade, liberdade e fraternidade. Claro que não tinham meios e nem condições para tanto. Eram apenas idéias teóricas, sem que o grupo agisse de forma efetiva para implantá-las. Mas, aos olhos do regime, só o fato de trazê-las à baila, já se constituía em crime.
O interessante é que na época da sua prisão, Dostoievski já havia deixado, há pelo menos três meses, de participar das reuniões do grupo. Não que houvesse abdicado do seu ideal, longe disso. Na verdade, estava ligado a uma organização muito mais radical do que o “Círculo Pertrachevski”, e de cuja existência as autoridades sequer suspeitavam. Tratava-se de um bando de ativistas, liderado por Nicolai Spechniev, pronto para fazer ataques estratégicos. Não me consta, porém, que tivesse promovido alguma ação efetiva. E sua existência seria revelada, apenas, mais de meio século depois, quarenta anos após a morte de Dostoievski, em 1922, em plena vigência do socialismo e da formação da União Soviética.
Os supostos sediciosos foram enviados para a Fortaleza de Pedro e Paulo, onde permaneceram por oito meses à espera da decisão do czar acerca de seu destino. E em 22 de dezembro, esta foi anunciada: pena de morte, a ser cumprida de imediato, já no dia seguinte, 23 de dezembro de 1849. Imaginem uma manhã de dezembro na Rússia, em pleno inverno no hemisfério Norte, numa cidade não muito distante do Pólo, com neve caindo em abundância e uma temperatura por volta de 23 graus centígrados negativos.
Um grupo de condenados encontra-se perfilado contra um paredão, pronto para ser fuzilado. Os olhos são tapados com vendas negras, um padre ortodoxo busca levar o consolo final (como se isso fosse possível) aos condenados, enquanto o pelotão encarregado do cumprimento da pena faz evoluções no pátio.
Dostoievski lembrou, posteriormente, anos depois, que naquele momento dramático e crítico dividiu seu tempo entre se despedir dos amigos e refletir sobre toda sua vida até então. O comandante grita: “Ordinário, alto!”. E o pelotão se detém em frente dos condenados. O sargento, então, lê a acusação e a respectiva sentença de cada um daqueles jovens idealistas, cientes de que iriam morrer pelas idéias que esposaram, prestes a ser executada. E o militar prossegue: “Pelotão, preparar”. Faz uma pausa, que parece uma eternidade a Dostoiervski e seus companheiros, e prossegue: “Apontar!”.
Nova pausa, dessa vez mais demorada. Todos os condenados tremem. Seria de frio ou de medo? Provavelmente de ambos. Mas não importa. Finalmente, vem a ordem fatídica: “Fogo!!!”. Ouvem-se vários estampidos sinistros de fuzis. Mas nenhum dos condenados cai ferido. Será que a pontaria dos soldados, de todos do pelotão, era tão ruim, que ninguém acertou ninguém?
Ocorre que os tiros não foram disparados na direção dos condenados, mas para o alto. Era tudo uma farsa. O czar Nicolau I havia comutado a pena de morte, transformando-a em dez anos de trabalhos forçados na Sibéria. Mas, “para dar uma lição inesquecível” aos supostos sediciosos, ordenou ao pelotão de fuzilamento que simulasse a execução até o fim.
Nesse dia, não tenham dúvidas, Dostoievski, de fato, “morreu”. Perdeu seu encanto pelas pessoas. Perdeu tanto ao ponto de escrever, anos depois: “Quanto mais gosto da humanidade em geral, menos aprecio as pessoas em particular, como indivíduos”. Pudera! Ou de constatar, com amargura: “Compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isto é injuriar estas últimas”. Ou de destacar: “É claro e evidente que o mal se insinua no homem mais profundamente do que supõem os médicos socialistas. Em nenhuma ordem social é possível escapar ao mal e mudar a alma humana: ela própria é a origem da aberração e do pecado”.
Responda-me com sinceridade: Como você, caríssimo leitor, se sentiria se tivesse uma experiência como essa? Alguém que tivesse o coração mais fraco, à simples ordem dada pelo sargento para o pelotão fazer “fogo”, cairia duro ao solo, morto por fulminante enfarte.
Mas Dostoievski, posto que traumatizado para o resto da vida, ainda conseguiu ver grandeza e beleza no mundo e em algumas pessoas. Tanto que escreveu: “Conhecemos um homem pelo seu riso. Se na primeira vez que o encontramos ele ri de maneira agradável, o íntimo é excelente”. E, principalmente, quando afirmou isso, que se tornou a sua crença: “A beleza salvará o mundo”. É no que, pessoalmente, eu também acredito.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
O sofrimento, quer o físico, quer o moral, quer o afetivo, quer, e principalmente, o psicológico, embora nos oprima e desespere, tem uma função didática, depois que passa (quando passa). As pessoas normais, via de regra, buscam esquecê-lo. Algumas ficam tão traumatizadas que, sempre que lembram dos maus momentos pelos quais passaram, voltam a sofrer com quase a mesma intensidade. Ninguém, a menos que se trate de um renitente masoquista, gosta de sofrer. E nem de lembrar seus sofrimentos. Poucos, pouquíssimos, extraem alguma lição deles.
Há, todavia, quem faça de seus tormentos matéria-prima de grandes obras artísticas. Estes. como todos, evidentemente, não gostam de sofrer. Evitam sofrimentos (os evitáveis, óbvio) da melhor maneira possível. Mas não buscam esquecer os que tiveram. Pelo contrário, tentam lembrá-los em minúcias, em detalhes, ponto a ponto. E perpetuam-nos em enredos e personagens marcantes. Refiro-me a “alguns” escritores (nem todos). E entre estes, destaco Fedor Dostoievski.
Em 23 de abril de 1849, o escritor, e todos os membros do chamado “Círculo de Petrachevski” – entre os quais o próprio Mikhail Petrachevski – foram presos, em São Petersburgo, pela polícia do czar. Recorde-se que esse grupo de jovens intelectuais idealistas dedicava-se, principalmente, a discutir as terríveis condições de vida da Rússia czarista, à luz das obras da farta bibliotecas do seu mentor, principalmente de livros proibidos pelas autoridades.
Seus integrantes sonhavam em implantar no país um regime fundamentado no ideal da Revolução Francesa, de igualdade, liberdade e fraternidade. Claro que não tinham meios e nem condições para tanto. Eram apenas idéias teóricas, sem que o grupo agisse de forma efetiva para implantá-las. Mas, aos olhos do regime, só o fato de trazê-las à baila, já se constituía em crime.
O interessante é que na época da sua prisão, Dostoievski já havia deixado, há pelo menos três meses, de participar das reuniões do grupo. Não que houvesse abdicado do seu ideal, longe disso. Na verdade, estava ligado a uma organização muito mais radical do que o “Círculo Pertrachevski”, e de cuja existência as autoridades sequer suspeitavam. Tratava-se de um bando de ativistas, liderado por Nicolai Spechniev, pronto para fazer ataques estratégicos. Não me consta, porém, que tivesse promovido alguma ação efetiva. E sua existência seria revelada, apenas, mais de meio século depois, quarenta anos após a morte de Dostoievski, em 1922, em plena vigência do socialismo e da formação da União Soviética.
Os supostos sediciosos foram enviados para a Fortaleza de Pedro e Paulo, onde permaneceram por oito meses à espera da decisão do czar acerca de seu destino. E em 22 de dezembro, esta foi anunciada: pena de morte, a ser cumprida de imediato, já no dia seguinte, 23 de dezembro de 1849. Imaginem uma manhã de dezembro na Rússia, em pleno inverno no hemisfério Norte, numa cidade não muito distante do Pólo, com neve caindo em abundância e uma temperatura por volta de 23 graus centígrados negativos.
Um grupo de condenados encontra-se perfilado contra um paredão, pronto para ser fuzilado. Os olhos são tapados com vendas negras, um padre ortodoxo busca levar o consolo final (como se isso fosse possível) aos condenados, enquanto o pelotão encarregado do cumprimento da pena faz evoluções no pátio.
Dostoievski lembrou, posteriormente, anos depois, que naquele momento dramático e crítico dividiu seu tempo entre se despedir dos amigos e refletir sobre toda sua vida até então. O comandante grita: “Ordinário, alto!”. E o pelotão se detém em frente dos condenados. O sargento, então, lê a acusação e a respectiva sentença de cada um daqueles jovens idealistas, cientes de que iriam morrer pelas idéias que esposaram, prestes a ser executada. E o militar prossegue: “Pelotão, preparar”. Faz uma pausa, que parece uma eternidade a Dostoiervski e seus companheiros, e prossegue: “Apontar!”.
Nova pausa, dessa vez mais demorada. Todos os condenados tremem. Seria de frio ou de medo? Provavelmente de ambos. Mas não importa. Finalmente, vem a ordem fatídica: “Fogo!!!”. Ouvem-se vários estampidos sinistros de fuzis. Mas nenhum dos condenados cai ferido. Será que a pontaria dos soldados, de todos do pelotão, era tão ruim, que ninguém acertou ninguém?
Ocorre que os tiros não foram disparados na direção dos condenados, mas para o alto. Era tudo uma farsa. O czar Nicolau I havia comutado a pena de morte, transformando-a em dez anos de trabalhos forçados na Sibéria. Mas, “para dar uma lição inesquecível” aos supostos sediciosos, ordenou ao pelotão de fuzilamento que simulasse a execução até o fim.
Nesse dia, não tenham dúvidas, Dostoievski, de fato, “morreu”. Perdeu seu encanto pelas pessoas. Perdeu tanto ao ponto de escrever, anos depois: “Quanto mais gosto da humanidade em geral, menos aprecio as pessoas em particular, como indivíduos”. Pudera! Ou de constatar, com amargura: “Compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isto é injuriar estas últimas”. Ou de destacar: “É claro e evidente que o mal se insinua no homem mais profundamente do que supõem os médicos socialistas. Em nenhuma ordem social é possível escapar ao mal e mudar a alma humana: ela própria é a origem da aberração e do pecado”.
Responda-me com sinceridade: Como você, caríssimo leitor, se sentiria se tivesse uma experiência como essa? Alguém que tivesse o coração mais fraco, à simples ordem dada pelo sargento para o pelotão fazer “fogo”, cairia duro ao solo, morto por fulminante enfarte.
Mas Dostoievski, posto que traumatizado para o resto da vida, ainda conseguiu ver grandeza e beleza no mundo e em algumas pessoas. Tanto que escreveu: “Conhecemos um homem pelo seu riso. Se na primeira vez que o encontramos ele ri de maneira agradável, o íntimo é excelente”. E, principalmente, quando afirmou isso, que se tornou a sua crença: “A beleza salvará o mundo”. É no que, pessoalmente, eu também acredito.
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