Sunday, February 05, 2012







Desvendando Pessoa

Pedro J. Bondaczuk

O poeta português Fernando Pessoa deve ter sido um sujeito fascinante. Refiro-me ao homem, com suas virtudes e defeitos, e não ao mito, de imagem asséptica e por isso irreal, inverossímil. E digo “deve”, porquanto, óbvio, não o conheci pessoalmente. Nem poderia. Quando ele morreu, em 30 de novembro de 1935, faltavam quase oito anos para eu nascer. Todavia, li muito a seu respeito, bem como escrevi textos e mais textos sobre a sua obra, notadamente a poética (mas não somente ela).
Muito se escreveu sobre ele. No meu estilo sempre exagerado, não resisto à tentação de colocar aqui um superlativo, o “muitíssimo”. Sua vida e seus escritos foram virados pelo avesso. Não me admiraria se a bibliografia desse escritor – que além do nosso idioma, falava e escrevia com absoluta correção o inglês, língua que aprendeu e falou muito em sua passagem pela África do Sul – atingisse ou mesmo ultrapassasse os mil livros.
Biografias suas há aos montes. Até a pouco, no entanto, não havia nenhuma escrita por brasileiros. Não havia. Agora há. E escrita por um escritor (e conhecidíssimo homem público) de primeira linha da nossa cultura e principalmente literatura que, entre outros feitos, tornou-se, em 2007, “imortal” da Academia Pernambucana de Letras, onde ocupa a cadeira de número 27, sucedendo a Pelópidas Soares. O leitor bem-informado certamente já sabe a quem me refiro. É a ele mesmo, ao advogado, ex-ministro da Justiça do governo do presidente José Sarney, além de cronista de mão cheia e, agora, biógrafo, José Paulo Cavalcanti.
Em março de 2011 a Editora Record lançou seu livro “Fernando Pessoa: uma (quase) biografia”, alentado volume, de 736 páginas, que por si só já sugere a complexidade (e genialidade) do biografado. Na época do lançamento, o autor concedeu, inclusive, entrevista a Jô Soares, na Rede Globo, em rede nacional, em que explicou o que o levou a empreender tamanha e tão complexa e demorada “aventura” intelectual. Destaque-se que José Paulo (Zé Paulo para os íntimos), dispõe de impressionante coleção de documentos – cartas, bilhetes, fotografias etc. – do poeta. Daí a precisão dessa obra de fôlego, rigorosamente fundamentada, mas escrita com emoção. Pudera!
Fernando Antonio Nogueira Pessoa, nascido em Lisboa num dia de Santo Antônio, em 13 de junho de 1888, é considerado um dos maiores poetas não somente de língua portuguesa, mas da literatura universal. Pelo tanto de textos dele que tive o privilégio de ler, concordo plenamente. E nem tenho como discordar. Muitos e muitos e muitos já o compararam a Luís Vaz de Camões. Sei lá! Ambos diferiram em estilos e na temática, embora hajam se igualado em genialidade. Que seja! A comparação é válida! O crítico literário Harold Bloom afirma que a obra de Fernando Pessoa é “um legado da língua portuguesa ao mundo”. A de Camões também, claro. Vai daí...
Mas voltemos ao seu mais recente biógrafo, José Paulo Cavalcanti. Para surpresa do leitor (e também a minha, por que não?), o escritor trata o biografado sem a menor cerimônia. Mostra Fernando Pessoa, entre outras coisas, como um “beberrão” (que era), um “homossexual dissimulado” (que não se tem certeza se foi ou não) e “um escritor de escassa criatividade (o que é discutível)”. Choque geral! A suposta homossexualidade latente do poeta já foi abordada por muita gente, uns negando que a tivesse e outros garantindo sua existência.
A esse propósito, Zé Paulo ponderou, em entrevista a Maria Carolina Maia, da revista “Veja”: “No livro o tema (homossexualidade) ocupa um capítulo inteiro. Em resumo, Pessoa tinha uma natureza homossexual, mas nunca foi além disso (nunca concretizou sua opção). Não há um depoimento de amigo, um texto, uma foto em posição suspeita” . A rigor, isso dá argumento aos que negam a homossexualidade do poeta. Não que isso o tornasse pior ou melhor do que foi. Trata-se, apenas, de um detalhe da sua vida pessoal e de suas preferências.
Já sobre o alcoolismo do biografado, José Paulo derruba, com base em provas e no veredito consensual de professores de medicina consultou, que ele não morreu de cirrose, como quase todas as biografias afirmam. A causa mortis provável foi uma pancreatite. Todo um capítulo do livro é dedicado a mostrar essa tese. Quanto ao gosto pelo álcool, do poeta, todos os testemunhos existentes apontam nessa direção. Ele gostava, mesmo, de beber e, não raro, exagerava na dose.
Sempre que se fala de Pessoa, porém, qual é o tema recorrente? Claro, são os heterônimos de que se utilizou. A primeira vez (quando tinha apenas quinze anos) que ouvi falar do poeta e que li seus poemas, fiquei sabendo que ele utilizou quatro. Já considerei, na ocasião, isso notável. Notabilíssimo. Mais tarde, soube que Teresa Rita Lopes catalogou dezenas de outros. Para ser exato, apurou que Pessoa se valeu de 72 heterônimos! Zé Paulo, em seu livro, porém, elevou essa cifra a mais de duas centenas, a 202 nomes” .Todavia, ponderou, na entrevista concedida a Maria Carolina Maia: “Apesar do número enorme de heterônimos, Pessoa decidiu abandonar todos para reunir o melhor do que escreveu num livro de 300, 400 páginas em seu próprio nome”. Não deu tempo, todavia, de publicá-lo. A morte o colheu antes.
Na mesma entrevista, Zé Paulo explica algumas outras revelações do seu livro e como elas influirão na imagem que o público tem desse poeta angustiado, problemático, sofrido, todavia genial a despeito da “pouca criatividade”: “No livro, busco saber quem é o homem por trás da obra. Sua obra já está bem estudada, faltava saber como era ele. E, pouco a pouco, das sombras, emerge um homem vaidoso e discreto. O livro fala de seus hábitos – suas rotinas e manias, como o sentar sempre sobre as mãos, a cabeça levemente pendida para a esquerda, o falar baixo – e também de um livro de poesias que escreveu e vendeu a um russo, que o publicou. Fala também do último encontro de Ophelia Queiroz, implausível amor, com seu corpo, no Hospital São Luís dos Franceses. Um estudo mais amplo sobre sua sexualidade, suas angústias, a arte de beber”.
A biografia escrita por José Paulo Cavalcanti, que lhe consumiu oito anos de árduo trabalho, se caracteriza, sobretudo, pela exatidão e rigor dos fatos. É fruto, além de meticulosa (diria científica) pesquisa, muitas viagens a Portugal (em média, quatro por ano, para Lisboa). Conversou e conversou e conversou muito com pessoas que conheceram o biografado e conviveram com ele.
Chama-me, particularmente, a atenção a seguinte declaração dada por Zé Paulo no final da entrevista à “Veja”: “Há dois tipos de pessoas, os felizes e os desesperados. Os felizes, homens sensatos que são, marcam data para acabar e acabam suas tarefas. E seus livros. Os desesperados, enquanto sentem que pode ficar melhor, não terminam nunca. Infelizmente, para mim, pertenço a este segundo grupo”. Provavelmente, Pessoa também pertencia. Fica-me a impressão, ao cabo da leitura da sua biografia e de muita reflexão a respeito que, se o poeta vivesse, digamos, pelo menos mais cinco anos, teria nos deixado uma obra mais ”redonda”, mais consistente, mais equilibrada, melhor acabada, sem hiatos e nem contradições. Contudo... provavelmente, não impressionaria, como o que, de fato deixou, impressiona. Enfim... nunca se saberá.


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