Sunday, February 26, 2012







As várias fases da utopia

Pedro J. Bondaczuk


Com vistas a um estudo racional das utopias, podemos dividi-las, grosso modo, nas seguintes fases (embora não com estrito rigor):

Antiga

Etapa que vai desde a Antigüidade grega (com a República, de Platão, e a minuciosa descrição da suposta civilização – e posterior catástrofe – da Atlântida, continente que teria afundado no oceano, também descrita pelo mesmo filósofo) passando pela Idade Média, e que termina quando da invenção da palavra que a designa, por Thomas Morus, em 1516.

Pode-se incluir, nessa classificação, o chamado “milenarismo” dos cristãos primitivos. Como o próprio termo sugere, esse ideal centralizava-se na promessa do advento de Jesus Cristo, que daria início a um reinado de mil anos de paz, felicidade e harmonia na Terra, em que as doenças e a própria morte deixariam de existir, de acordo com a corrente milenarista, que se contrapunha, aliás, aos que acreditavam no Apocalipse.

Vários movimentos com essas características proliferaram ao longo de praticamente toda a Idade Média. A Igreja Católica combateu-os, a ferro e fogo, classificando-os de heresias, até exterminá-los por completo. O Apocalipse, atribuído ao apóstolo João, que o teria escrito na Ilha de Patmos, na Grécia, profetiza o fim do mundo na ocasião da volta de Jesus.

Este voltaria ao nosso mundo com todo o poder e glória – ao contrário do que ocorreu em sua primeira passagem pela Terra, quando nasceu frágil, pobre e humilde em uma estrebaria de Belém –, para um Juízo Final e definitivo, em que julgaria os vivos e os mortos (que, então, ressuscitariam). Puniria os que violaram os princípios cristãos e premiaria, em contrapartida, os que persistiram na virtude e na prática do bem, vencendo, dessa forma, em definitivo, as forças do mal.

Cristo salvaria, na ocasião dessa segunda vinda, os justos (com o aval da sua morte na cruz), que seriam levados para junto de Deus e se tornariam eternos, imortais. Em contrapartida, imputaria a segunda morte, a definitiva e irrevogável, no lago de fogo e enxofre, aos ímpios, aos fornicadores, aos tiranos etc.

Surgiram, também, outros relatos, mais amenos e humorados, nesse período da Idade Média, como o do país da Coconha, que projeta, numa Europa assolada pela peste e pela fome, uma terra de fartura, de saúde, de descanso e, principalmente, de comida. Nessa sociedade maravilhosa, haveria deliciosos alimentos e guloseimas com abundância inesgotável, e para todos. O homem não precisaria trabalhar para garantir o sustento. Poderia, dessa forma, reintegrar-se à natureza e se livrar do que é encarado como uma praga divina em diversas religiões: o trabalho.

É mister ressaltar que, a rigor, o Éden bíblico se constitui, também, numa forma de utopia. É comparado, muitas vezes, por alguns utopistas, às novas terras descobertas por Portugal e Espanha, nos séculos XV e XVI, especialmente o Brasil, onde os indígenas andavam (muitos ainda andam) nus, sem sentirem vergonha da nudez, assim como Adão e Eva antes de comerem o fruto proibido. E onde o calor e a vegetação luxuriante dos trópicos lembravam a fartura prometida na Bíblia, que dificilmente se pode alcançar no clima seco e severo do Oriente Médio, ou no intenso frio da Europa.

O escritor Mário Donato, num longo ensaio que publicou, em abril de 1983, no suplemento “Leitura”, do Diário Oficial do Estado de São Paulo, intitulado “Utopia e o sonho azul da Colônia Cecília”, enfatizou o ideal da ordem como o ponto de convergência de todos os utopistas. Estes variaram, apenas, e em detalhes, quanto à forma como esta seria imposta e assegurada às respectivas sociedades que idealizaram. Donato contesta, portanto, a afirmação – no seu entender equivocada – de muitos analistas, que viam conotações anarquistas nesses movimentos utópicos. E comprova, fartamente, sua contestação.

Escreve, em determinado trecho do citado ensaio: "Uma utopia? Que é uma utopia no consenso atual? Algo de paradisíaco e de inefável. Tão bom, que se faz inexeqüível". E prossegue: “Ora, as utopias inventadas pelos homens, desde que o mundo é mundo, não correspondem ao ideal dos que entendem, erradamente, o anarquismo. Com exceção do Jardim do Éden, onde viveram Adão e Eva em nudez, sem pecado e sem trabalhar e nem sofrer (o que, aliás, durou pouco), todas as utopias foram sempre rigorosamente organizadas, pois os seus criadores, criticando as sociedades em que viviam, elaboraram outras, em que o principal era a ordem, a ausência do imprevisto e o interesse coletivo sobrepujando o individual. Até a Canaã dos hebreus, onde os escritores bíblicos dizem que manavam leite e mel, tinha um Deus vigilante e ciumento, leis, sacerdotes, chefes, trabalhadores e soldados. Não era uma anarquia, embora tenha sido apontada como símbolo de um paraíso na Terra".

Literária

Nessa fase, foi produzido um grande número de obras de ficção, geralmente apresentando países com formas sociais, costumes e/ou governos ideais. Entre tantas dessas sociedades supostamente perfeitas, criadas pela mente de escritores imaginativos, podemos destacar as três que se tornaram mais célebres:
1.) “De optimo republicae statu deque nova insula Utopia”, uma espécie de romance filosófico, de Thomas Morus, em que o autor relata as condições de vida de uma ilha desconhecida, descoberta pelo navegador português Rafael Hitlodeu. Nessa sociedade, haviam sido abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa. As crianças eram educadas para considerar o ouro como coisa desprezível, usado, por exemplo, para fabricar urinóis. O metal só era acumulado para pagar os vizinhos mercenários. Os habitantes da ilha trabalhavam menos horas e apreciavam o que faziam. Morus enfatiza que era pelo fato dos trabalhadores da Inglaterra terem de sustentar uma imensa corja de vagabundos, como nobres, cortesãos e abades ociosos, que a jornada de trabalho se tornava demasiado longa nesse país.
2.) “Nova Atlântida”, de Francis Bacon. O filósofo imagina uma ilha onde se organizou um sistema destinado ao apoio e proteção à técnica. De acordo com seu relato, um rei famoso e sábio haveria criado, em remoto passado, uma “ordem ou sociedade” que chamou de a “Casa de Salomão”. Esse centro de pesquisa era dedicado, principalmente, ao “estudo das obras e criaturas de Deus”. Bacon ensaia uma interessante descrição do objetivo desta Casa, que bem poderia passar como uma tentativa de definir a técnica: “O objeto de nossa fundação é o conhecimento das causas, segredos e noções das coisas e o engrandecimento dos limites da mente humana, para a realização de todas as coisas possíveis”. A ordem ocupava um lugar preeminente na vida da sociedade da Nova Atlântida, com uma hierarquia interna, conformada, aparentemente, por sacerdotes cristãos.
3.) “Cittá del Sole” (“A Cidade do Sol”) de Tommaso Campanella. O rebelde monge dominicano calabrês imaginou um modelo utópico da sociedade que, progressivamente, se estenderia a toda a Terra. Nessa Cidade do Sol, que não era propriamente uma República, nem uma monarquia, nem oligarquia, reinava uma comunidade de bens. Esse Estado, onde floresciam todas as virtudes, não devia a sua perfeição, nem autoridade, ao rei, nem ao governo do povo, nem à sua oligarquia, mas única e tão-somente à ciência.

Socialista

Essa fase foi dominada por figuras de grande destaque, entre os teóricos socialistas, como Graccus Babeuf, Claude-Henri Du Rouvroy (Conde de Saint-Simon), Charles Fourier, Victor Considérant, Weiling, Robert Owen, Pierre-Josep Proudhon, Étienne Cabet, William Kina, Gustav Landauer e H. G. Wells, entre outros.

Todavia, enquanto esses expoentes teóricos do socialismo forjavam suas teorias sobre uma sociedade que tivesse essas características, em pleno sertão baiano, castigado por periódicas secas, terra assolada pela ignorância e pela miséria, ocorreu, na prática, a instalação de um grupamento de características marcadamente socialistas, posto que de curta duração e que terminou em tragédia.

Refiro-me ao arraial de Belo Monte, conhecido pelas pessoas de fora como “Canudos”, por causa da existência, na região, de plantas denominadas “canudos-de-pito”, que cresciam junto ao Rio Vaza-Barris. Seu mentor foi uma figura polêmica, encarada pela maioria dos historiadores como um louco fanático religioso, ignorante e que exploraria a ignorância, a superstição e o desespero da miserável população do Nordeste brasileiro em fins do século XIX.

Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, congregou, naquela localidade, cerca de 30 mil pessoas, sob a sua liderança espiritual e moral. Para os padrões de hoje, não era tanta gente assim. Mas devemos situar os fatos no devido contexto histórico. E, em termos relativos, tratava-se de uma multidão considerável. Basta dizer que Canudos, à época da sua destruição, era o segundo maior núcleo populacional da então Província da Bahia, com população apenas inferior à da capital, Salvador, que então tinha 200 mil habitantes.

Concordo com o geofísico Ruy Bruno Bacelar, um dos maiores especialistas neste ainda obscuro e mal-explicado episódio da História do Brasil, quando rebate a afirmação de que Antônio Maciel teria sido um fanático ignorante. Em entrevista publicada em maio de 1991 pela revista “Raízes da Bahia”, ponderou: “O Conselheiro falava e escrevia latim. Tinha uma cultura razoável para a época. Deixou pelo menos dois livros escritos”.

Há quem conteste, e até ridicularize, a afirmação que a sociedade que Antônio Mendes Maciel implantou em Belo Monte tivesse características socialistas. Bacelar rebate esses críticos e justifica sua tese: “Conselheiro estabeleceu uma comunidade de natureza socialista, baseada nos anseios das massas camponesas, mas influenciado, também, pelas idéias do cristianismo primitivo e, possivelmente, pela ‘utopia’ de Thomas Morus. Então era um sistema socialista em plena caatinga nordestina. Enquanto isso, publicava-se, na França, pela primeira vez, a obra-prima de Marx, ‘O Capital’, que o Conselheiro jamais ouvira falar”.

Não é notável?! Sem dúvida! Bacelar esclarece que o tipo de cristianismo praticado em Canudos não era exatamente nos moldes dos ensinamentos da Igreja Católica, embora não conflitassem, em sua essência, com estes. Assemelhava-se, no seu entender, ao dos essênios, antes da crença cristã haver sido contaminada, notadamente em Roma, por práticas pagãs, como, por exemplo, a adoração de imagens e de ícones. Tanto que nas procissões diárias de Belo Monte, estas nunca estavam presentes. Os fiéis carregavam, então, apenas o símbolo máximo do cristianismo: uma cruz.

Bacelar acrescenta, para justificar a afirmação de que Canudos se tratava de uma sociedade marcadamente socialista: “Ali não havia pobres, todos trabalhavam para a comunidade na medida de suas forças. Não havia assaltantes, fome, desemprego, prostituição, jogo ou explorados e exploradores. Não tinha prefeitura, autoridade, polícia ou eleição. Se tudo isso representa socialismo, então pode-se dizer que o movimento de Antônio Conselheiro foi socialista”.

É importante reproduzir o fecho da entrevista de Ruy Bacelar, quando ele menciona o que o Brasil perdeu ao matar no nascedouro essa utopia de justiça e igualdade que estava sendo implantada no sertão baiano: “O maior mérito do Conselheiro está em ter mostrado a perigosa e insidiosa presença do inimigo interno. A Guerra de Canudos serviu para nos mostrar que o inimigo que o brasileiro tem que levar a sério está aqui no Brasil. Canudos é um não imortal a todas as tiranias e sistemas políticos corruptos. E um não a todas as repúblicas degeneradas de ontem e de hoje. Canudos é um não ao Brasil de hoje, é o movimento histórico mais importante de nossa história, e Antônio Conselheiro é o maior vulto desta história. Estamos precisando do espírito do Conselheiro para combater aqueles que tentam tirar a nossa liberdade. Portanto, a minha conclusão é que a Guerra de Canudos foi uma guerra contra o socialismo, contra um homem que afirmava: ‘a terra é de todos’”.


Maturidade teórica

Esta última fase das utopias veio com os trabalhos de intelectuais como Ernst Bloch, Roger Duveau, Karl Manheim, Laurent Mucchielli, Raymond Ruyer, Jerzy Szachi, Martin Buber, Pierre Furter, o educador brasileiro Paulo Freire e muitos outros.

Ressalte-se que, em 1880, quando Friedrich Engels publicou o seu livro “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, os utópicos passaram a constituir um grupo definido, pelo menos para os marxistas. Até então, isso não ocorria.

Hoje, aceita-se que foi H. G. Wells quem, em 1905, com o livro “A moderna utopia”, deu à palavra seu sentido moderno e positivo. Outras obras que seguiram pelo mesmo caminho e que, por isso, merecem menção, são: “Geist der Utopie” (O espírito da utopia) de Ernst Bloch, 1923; A utopia e as utopias – Raymond Ruyer – 1950; Ideologia e utopia – Karl Manheim – 1960; O mito da cidade ideal – Laurent Mucchielli – 1960 e Sociologia da utopia – Roger Duveau – 1961.

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