Saturday, November 12, 2011







Escrita com maestria

Pedro J. Bondaczuk

Disse o escritor britânico, Graham Greene, que "há sempre um momento no tempo em que uma porta se abre e deixa entrar o futuro". Há homens que são clarividentes. Têm uma percepção de realidade superior aos demais. Expressam, em suas vidas e obras, a sabedoria e os anseios intemporais do ser humano. São muito mais do que modernos. São eternos. São modelos, mestres, paradigmas. São especiais. São as portas por onde o futuro entra.

Um desses homens – escritor, e dos melhores – foi o professor Benedito Sampaio. Poucos conhecem-no, hoje. Por que? Porque seus livros não foram republicados após sua morte, tipo de omissão bastante comum das nossas editoras. Quem, como eu, teve o privilégio de adquiri-los, delicia-se com sua literatura e, sobretudo, aprende, e muito, principalmente a manejar corretamente nosso expressivo idioma. Afinal, foi professor de Português que marcou época na cidade que resido, Campinas, por seu rigor no ensino desta “última flor do Lácio, inculta e bela”, como caracterizou-a o poeta Olavo Bilac.

Há que se distinguir entre sua atuação no magistério e sua lide literária. E, na literatura, separar sua obra em prosa, da sua clarividente poética. Claro que todos esses aspectos se fundem, se amalgamam, se unem, para compor uma personalidade fascinante, um ser humano espiritualmente rico, capaz de dosar com maestria, emoção e razão, "cabeça de gelo" e "coração de fogo", constância e ousadia, conservadorismo no que deve ser conservado --- ou seja, os valores eternos, consagrados pelos séculos --- e progressismo.

Houvesse sido só professor, já teria reunido méritos mais do que suficientes para a “imortalidade”, aquela única possível a qualquer um de nós: a da memória. Mas, à cátedra, uniu sua pena brilhante e vigorosa, legando-nos uma obra sólida e memorável. A paixão de Benedito Sampaio pelo ensino era tamanha, que, mesmo depois de aposentado, em 1950, continuou dando aulas particulares para futuros acadêmicos de Direito e integrando, oficialmente, bancas examinadoras de concursos.

Esse escritor talentoso era muito cioso sobre o que, como e acerca de quem escrever. É dele esta advertência, na crônica intitulada "O Jornalista", publicada no livro "De Minha Chácara": "Ai das mãos sacrílegas que profanam o jornalismo! Ai daqueles que, arrebatando das mãos do jornalista a pena impoluta que tem a nobreza da espada, começa de brandi-la como o sangrento punhal que fere desapiedado as reputações legitimamente alicerçadas! Ai das mãos impuras que profanam com mentira e calúnia o templo augusto da Verdade! Ai da pena venal que deixou de ser de ouro, porque por ouro se mercadejou no balcão dos interesses mesquinhos!"

Embora espírito cordato, homem dotado de finíssimo senso de humor, Benedito Sampaio não temia enfrentar polêmicas públicas, em defesa da pureza da língua. Publicou, entre outras obras, os estupendos, claros e preciosos compêndios: "Elementos de Gramática", "Questões da Língua" e "Falar Certo" e mais a antologia "Leituras Fáceis". Como seria bom se as escolas adotassem livros do mestre, para ensinar português correto e bem escrito aos seus alunos! Temos visto compêndios que chegam a ser assustadores. Mais confundem do que esclarecem. Semeiam ideologias odiosas, a pretexto de incentivar a leitura. Preservar a pureza da língua é o dever primordial do intelectual.

Como cronista, Benedito Sampaio tem textos deliciosos, publicados nos dois jornais diários de Campinas – “Diário do Povo” e “Correio Popular” – consolidados nos volumes "O Cosmorama da Cidade", que foi premiado pela Academia Brasileira de Letras, e "De minha Chácara". Suas crônicas são, boa parte delas, na verdade, pequenos contos. São repletas de humor e revelam, sobretudo, um homem extremamente observador, conhecedor profundo da natureza humana, e refinado crítico de costumes. Além de intelectual apaixonado por seu país e pelo seu povo.

Criou tipos que encontramos a todo instante pela cidade, intemporais, perenes, mas de carne e osso. Como o doutor Abrenúncio, por exemplo, que se gabava de "ter lido tudo, sem ter lido nada". Como Binucho. Como o Lindoro, que lhe surrupiou o livro "Gramática Brasileira", do padre Figueira. Como o Zeferino. Como o Juca das Neves e seus álbuns. Como o poeta Gervásio. Como o pedante Nicote, dos pafós e das xaras. E vai por aí afora.

Não enveredou pelo romance, porque o gênero, provavelmente, não lhe aprazia. Benedito Sampaio adotava, na prática, uma norma basilar: jamais explorou a temática da degradação humana. E, mesmo quando retratava desvios de comportamento, tipos que agiam em desacordo com a moral e os bons costumes, deixava sempre, como conclusão, alguma mensagem proveitosa, algum ensinamento aos leitores. Não há um único texto do mestre explorando o sexo, a corrupção humana no mais alto grau, a violência absurda e gratuita, ou seja, o grande filão da indústria editorial de hoje. Sua pena era usada com talento, com perícia, com elegância, para instruir, para educar, para exaltar a família, a pátria, a amizade, a lealdade e todas as virtudes essenciais ao homem, para um convívio saudável em sociedade. Deixou-nos páginas impregnadas de esperança, deliciosas, sumamente originais, a comprovar que é possível o escritor praticar uma arte que promova a evolução do indivíduo, sem fazer apologia do derrotismo, da decadência, das chagas morais, cada vez mais expostas ao público, de forma abjeta e paranóica, nestes dias de tamanha obscuridade e solidão que a humanidade atravessa. Por isso, tomo-o por parâmetro em minha atuação literária.

Benedito Sampaio não possui um único texto, por menor que seja, que faça, mesmo que veladamente, a apologia do derrotismo. Suas críticas aos defeitos humanos --- uma realidade que se impõe ressaltar --- eram sutis, respeitosas, utilizando muitas vezes o expediente sempre didático da fábula, para extrair lições sobre as vantagens da virtude e da boa conduta, em detrimento dos vícios e da degradação. Isto, sem partir para aqueles sermões pedantes e hipócritas, que os falsos moralistas utilizam, com objetivos de autopromoção. Seus textos são, via de regra, bem humorados, mal escondendo o profundo amor que o autor nutria pelas pessoas menos aquinhoadas.

Foi, também, magnífico poeta. Suas poesias não sofrem os efeitos do tempo. Não são, portanto, modernas. São mais do que isso. São intemporais. São eternas. São poesias e nada mais. Estão reunidas, principalmente, no livro "Tangolomango". Trago, da sua autoria, como “amostra”, este belo poema:

“Espelho”

"Um dia,
da profundeza tenebrosa
do vazio não-ser,
a semente ignorada,
amorosa brotou.
Tenho a impressão que a semente amorosa fui eu.

A semente ignorada nasceu,
e se fez lágrima,
e foi crescendo:
e então fiquei sendo uma lágrima grande! Do tamanho de um lago sem bordas,
que sem termos se espalha e se abisma no abismo.

Não ficou na Capela Sistina a tristeza e o pavor
da primeira mulher pecadora,
mas caiu no painel de minha lágrima...

O pranto imenso da catástrofe maior
não se imergiu no bom dilúvio do castigo:

Anda a boiar na minha mágoa.
Hiroshima explodiu! Houve um clarão sinistro
iluminando a minha lágrima...

Quando Nossa Senhora chorou,
ficou mais úmido o meu rosto!

Eu sou uma lágrima grande,
que rola pelas encostas
da montanha --- sofrimento!
Eu sou lágrima de lágrimas!
Das lágrimas universais:
Das lágrimas dos homens que nasceram desgraçados,
das lágrimas dos homens que viveram como tristes,
das lágrimas dos homens que morreram chorando...

Sou espelho de todas as lágrimas,
sou uma lágrima grande!

Mas disso não me envaído. Que glória haverá nas minhas lágrimas,
se até com as fitas tristes de Hollywood/eu me ponho a chorar?"

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