Thursday, August 25, 2011







Vermelho amargo

Pedro J. Bondaczuk

O escritor experiente tem, via de regra, muito cuidado ao escrever a seu próprio respeito. Geralmente, evita isso e não por modéstia ou recato, mas pelas dificuldades que isso traz. Para fazê-lo, por exemplo, tem que estar muito seguro, seguríssimo e policiar-se para evitar excessos. É “perigoso” enveredar por esse caminho.
Caso você pinte a si mesmo como um super-homem, ou um sabe tudo, mesmo que o seja de fato, certamente irá desagradar a gregos e troianos. Parte considerável dos leitores o classificará de convencido, vaidoso, quando não de megalomaníaco. Afinal, como diz surrado dito popular, “elogio em boca própria é vitupério”.
Se você, todavia, “desnudar-se” publicamente, expor suas chagas e vulnerabilidades, muitos dirão que você é complexado. Ou que é hipócrita e está se depreciando apenas para que outros o contestem e o elogiem. Não adianta dizer que não dá a mínima às opiniões alheias. No fundo, no fundo, todos nos importamos com o que pensam de nós e com a nossa imagem pública.
Para aventurar-se, portanto, por essa vertente literária, é necessário que você tenha muito talento e, sobretudo, bom-senso. Precisa pesar muito bem não apenas “o que” escrever, mas “como”. Por isso, são poucas as autobiografias que caem no gosto público e se transformam em sucesso de crítica e de vendas. Quando leio um livro do tipo, que me agrade e não suscite nenhum reparo, atribuo valor especial ao autor, por conhecer o quanto é difícil escrever sobre si próprio com equidistância e isenção.
Um dos livros de caráter autobiográfico que me agradou sobremaneira é “Vermelho amargo”, do escritor mineiro Bartolomeu de Campos Queirós, feliz lançamento da Editora Cosac Naify. Para quem não sabe, ou não se lembra, informo que o autor, além de talentoso, é bastante experiente. Aos 66 anos de idade, tem, em seu currículo, mais de 40 publicações, em vários gêneros, com predominância na literatura infantil. E não é só isso. Foi traduzido para o inglês, espanhol e dinamarquês. E mais, conquistou o Prêmio Jabuti de 2008, na categoria livro infantil, com “Sei por ouvir dizer”.
Destaco que “Vermelho amargo” não é destinado a crianças, embora estas também possam (e devam) lê-lo, por ser-lhes perfeitamente acessível. Destina-se, porém, mais especificamente, ao público adulto. Antes de conquista do Jabuti (façanha que não é para qualquer um), Bartolomeu já havia conquistado outra prestigiosa e cobiçada premiação. Seu livro “Até passarinho passa” levou a Academia Brasileira de Letras a lhe conceder o prêmio “O Melhor da Literatura Infantil”, em 2003.
Concorreu, em 2010, à principal premiação internacional para literatura infantil e juvenil, o Hans Christian Andersen, da qual foi finalista. Bartolomeu também é poeta, e dos bons, o que até dá para desconfiar na leitura de “Vermelho amargo”, que rescende a poesia do início ao fim. Está aí outra façanha do autor: ele mistura, de tal sorte, as linguagens, com tamanhos talento, naturalidade e bom-gosto, que ficamos em dúvida se esse pequeno grande livro (tem apenas 73 páginas) é de poesia em prosa ou de prosa poética. É uma delícia a sua leitura.
A história é uma espécie de passeio de sonho pela infância do autor. Concentra-se, sobretudo, no vazio deixado nele e em seus irmãos pela morte da mãe. O tom dramático e duro fica por conta do alcoolismo do pai e da indiferença da madrasta. Bartolomeu confessa que nem tudo o que escreveu é rigorosamente baseado em lembranças. Admite que romanceou muita coisa e, ao cabo da leitura, concluímos que o fez muito bem, com extrema perícia.
Os irmãos foram retratados sob o prisma da fantasia. Em certo trecho o autor “revela” (na verdade, fantasia): “Minha irmã maior gostava de agulhas. Meu primeiro irmão mastigava vidro”. Bartolomeu revela: “Escrevi a obra em seis meses, escolhendo cada palavra, em sua sonoridade e dimensão”.
Seu grande mérito é o de haver optado pela simplicidade que, como ressaltei em inúmeras ocasiões, é muito mais difícil do que se pensa. Ser simples, acreditem, é complicadíssimo. A maioria opta por recorrer a floreios, a jargões, a pirotecnias verbais e acaba comprometendo excelentes enredos. Bartolomeu, no entanto, não caiu nessa armadilha de falsa erudição.
Aos que possam, eventualmente, criticá-lo por misturar realidade e ficção, o autor responde: “Não existe memória pura. O livro foi feito do que vivi e do que inventei”. E justifica: “Meu real é mais absurdo do que minha fantasia”. Creio que isso ocorra com todos nós.
A metáfora principal da história, por mais trivial que pareça, é genial justamente por essa trivialidade. Está na comparação dos “estilos” de corte de tomates, da mãe e da madrasta, ao fazerem uma salada (o que justifica, inclusive, o título do livro). Quem diria que um detalhe aparentemente tão banal e sem importância suscitaria tantas lembranças e inspiraria uma obra-prima?!!! Pois foi o que aconteceu.
A madrasta picava o tomate em fatias finas, finíssimas, quase com a espessura de um papel, translúcidas, virtualmente transparentes. Já a mãe fatiava-o em cruz, que o transfigurava em “pequenas embarcações” em que “os barqueiros eram as sementes”.
A salada da madrasta era sem sabor, e engolida de uma só vez. E a da mãe? Bem, esta era especial e degustada, tanto pela boca, quanto pelo espírito, face às fantasias que suscitava. Fica aqui a pergunta que sempre faço quando comento algum livro: querem saber mais a respeito? E dou a costumeira e correspondente resposta: então comprem e leiam o livro de Bartolomeu de Campos Queirós.

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