Friday, August 19, 2011







Romance ou aula de literatura?

Pedro J. Bondaczuk

O que é mais importante em uma obra de ficção (não importa se conto, novela, peça teatral, roteiro de cinema ou, e principalmente, romance): o enredo, ou seja, a história em si ou os personagens que a povoam? Não vale dizer que ambos, o que seria uma resposta demasiado simplista e óbvia. Afinal, queiram ou não, uma das duas características prepondera sobre a outra, mesmo que ligeiramente.
Para o escritor argentino Ricardo Piglia, os personagens são mais importantes do que as histórias. São criados com base na experiência de vida do autor, na observação das pessoas que conheceu pessoalmente, ou de quem ouviu falar, ou sobre as quais leu, não importa. São, pois, “retalhos”, com características de diversas delas, condensadas em uma só. A perícia em juntar esses “pedaços”, e com coerência e lógica, é que os torna verossímeis e não grotescos Frankensteins, risco que os imperitos correm a todo momento. Criar, em torno desses personagens, situações e circunstâncias, é o de menos.
Concordo, portanto, plenamente com Piglia. Ademais, quem sou eu para discordar?! O escritor argentino, meu contemporâneo (é de 1941, ou seja, somente dois anos mais velho do que eu), é um dos mais criativos, originais e, sobretudo, polêmicos da atualidade. Seus textos, livros ou simples ensaios esparsos, induzem-me invariavelmente à reflexão. Nem todos os escritores conseguem isso. Óbvio que nem sempre concordo com suas colocações. Mas as discordâncias são escassas e em questões secundárias, marginais, e não no essencial.
Ricardo Emílio Piglia Renzi esteve recentemente no Brasil, mais especificamente, em novembro de 2010, quando compareceu ao Festival Literário Internacional de Pernambuco (Fliporto), onde esbanjou inteligência, com opiniões fortes, corajosas e... polêmicas.
Por exemplo, criticou o atual Prêmio Nobel de Literatura, Mário Vargas Llosa, de quem disse que a última grande obra que produziu foi escrita em 1966. Elogiou o chileno Roberto Bolaño (falecido), afirmando que sua originalidade e genialidade comprovam que a literatura latino-americana não se restringe a Gabriel Garcia Marquez, como muita gente ainda supõe. E não poupou elogios a Jorge Luís Borges (meu guru literário) de quem “herdou” as principais características.
Gosto de Piglia e não li, ainda, nada do que escreveu que me levasse a fazer lhe re3strições. Pelo contrário, aprendo, e muito, em cada livro dele que leio. Um dos que considero singulares (singularmente genial), que me marcou sobremaneira, é o romance “A cidade ausente”. Não que os outros fossem, ou sejam, de qualidade inferior, longe disso. Mas esse livro, posto que de ficção, é, da primeira à última página, magnífica aula de literatura. E garanto-lhes que não estou exagerando. O autor revela opiniões que poucos escritores teriam a coragem de manifestar. Faz de seus personagens metáforas literárias, das mais ousadas e precisas.
Vejam, por exemplo, o que Piglia diz, em determinado trecho, colocado na boca de um tal de Russo: “A obra literária diz a verdade mentindo”. E não é? Os personagens não são frutos da imaginação, que o autor sugere que sejam reais, posto que não sejam, aos quais confere o máximo de verossimilhança? E é pela boca desses seres fictícios que transmite suas idéias e opiniões. Portanto, finge mentir... mas não mente.
Esse mesmo personagem, ou seja, Russo, observa, em outro trecho: “Um relato não é outra coisa senão a reprodução da ordem do mundo, numa escala puramente verbal. Uma réplica da vida, caso a vida fosse feita só de palavras”. Ao término da leitura do romance, ficou-me a sensação não de haver lido uma obra de ficção, mas de ter assistido a uma aula de literatura, em que fica claro o papel do escritor no mundo e fica mais clara ainda a importância da literatura em nossa vida.
Valho-me de uma análise da professora Shirley de Souza Gomes Carreira para dar-lhes idéia mais precisa do enredo de “A cidade ausente”, cuja leitura é de tirar o fôlego. A mestra escreve: “O romance gira em torno de uma máquina, reprodutora de relatos, cujas transmissões foram captadas por Júnior, o protagonista, que trabalha na redação de um jornal. Graças às transmissões, Júnior conseguia publicar as matérias antes que os fatos se produzissem”.
O romance foi estruturado como uma coletânea de contos, não escritos por nenhum personagem e nem pelo autor, mas pela incrível “máquina”, que tinha a faculdade do raciocínio. E esta é, como os personagens (digamos, “humanos”) outra metáfora: a da escrita, do ato criativo do escritor que narra, invariavelmente, o que já foi dito por muitos outros, posto que com outras palavras, não raro até de outro idioma, mas que são, ao fim e ao cabo, meras repetições, disfarçadas de novidade.
E o que vem a ser a tal e milagrosa máquina? Shirley de Souza Gomes Carreira nos revela: “...O encontro da vida com a ficção é insinuado por uma das personagens, Ana, quando esta observa que Elena Obieta adoeceu. ‘Macedônio (Fernandez, personagem onipresente) decidiu que a salvaria’. No romance, a derrota da morte se dá através da construção de uma máquina que tendo armazenado os dados que havia no cérebro de Elena, sua memória e seu conhecimento, passa a gerar relatos virtuais”.
A máquina é testada com um conto (celebérrimo) de Edgar Alan Poe, “William Winston”, que trata da questão do “duplo”, ou seja, de dois sósias absolutamente iguais e inidentificáveis, embora não se tratem de gêmeos ou sequer de irmãos, que são como a imagem de espelho um do outro. A máquina produz uma história com todos os ingredientes da que foi escrita pelo norte-americano, posto que com outras palavras, completamente diferentes das utilizadas por Edgar Alan Poe. E o conto dela recebe título também diferente, para caracterizá-la como original, como outra história e que, portanto, não se trataria de plágio: “Stephen Stevensen”.
A certa altura, Ricardo Piglia põe estas observações na boca de outro dos personagem: “Grandes poetas deixam de sê-lo e se transformam em nada e em vida vêem surgir outros clássicos (que também são esquecidos). Todas as obras-primas duram o que dura a língua em que foram escritas. Só o silêncio persiste, claro como a água, sempre igual a si mesmo”.
Por essas e outras, ficou-me a sensação, ao cabo da leitura de “A cidade ausente”, que não li propriamente um romance, instigante e original, mas que fui brindado, de fato, (reitero) com uma magistral aula de criatividade literária. E será que não fui?!

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