Prisioneiros de nós mesmos
Pedro J. Bondaczuk
O que aconteceria se a atual civilização entrasse subitamente em colapso (e isso é mais possível do que muita gente pensa), e se de repente, não importa a razão, desaparecessem governos, instituições, leis etc., ou seja, tudo o que caracteriza mo que entendemos como “vida civilizada”? Vou restringir um pouco a hipótese acima e supor que tudo isso acontecesse não em âmbito global, mas com determinado grupo de pessoas que, de repente, por um motivo qualquer, se visse isolado em algum lugar remoto, sem possibilidades de sair dali e sem nenhum meio de comunicação, por um tempo indeterminado.
O que ocorreria nessas circunstâncias? Essa comunidade, sem vínculos sanguíneos, ou seja, sem parentesco, retroagiria à barbárie, ou se reorganizaria, em bases melhores do que as vigentes no mundo atual? Todos se comportariam na base do “cada um por si”, sem respeito a nenhuma hierarquia, regra, crença ou seja lá o que for, ou agiriam de forma solidária e cooperativa, tendo em vista o bem comum? Suponho que a primeira hipótese seria mais provável. Claro que certeza, certeza mesmo ninguém tem. Morris West aborda essa possibilidade num romance instigante, que mais do que uma aventura que prende o leitor da primeira à última página, possibilita esse tipo de reflexão. Trata-se de “O navegante”.
O livro em questão, basicamente, relata a história de um professor universitário no Havaí, Gunnar Thorkild, que é recusado pela direção de determinada universidade para assumir uma cátedra ali por uma razão insólita. Por mencionar a existência de uma ilha mística perdida na vastidão do Oceano Pacífico, em um de seus trabalhos acadêmicos. Ocorre que o local mencionado não constava de nenhum mapa. Não havia nenhuma menção a ela provinda de qualquer fonte confiável, que não fosse o referido professor. Para todos os efeitos, ao menos oficialmente, não existia.
Thorkild, todavia, insiste em afirmar sua existência. E vai mais longe: diz que ela é o local de repouso dos grandes navegantes do Pacífico. E mais, que ele próprio é descendente direto de um desses heróis que fazem da alegada ilha, que seria paradisíaca, local de descanso e lazer.
Desafiado, resolve organizar uma expedição em busca dessas terras desconhecidas, cuja existência é negada. Leva consigo um grupo heterogêneo de pessoas, com personalidades rigorosamente diferentes umas das outras, sem nenhum tipo de vínculo ou de parentesco. A história, propriamente dita, começa aí. Ou melhor, com a chegada da expedição a determinada ilha, que talvez seja, talvez não seja a que Thorkild procurava.
O barco que conduziu esses aventureiros sofre séria avaria. Na verdade, fica inutilizado. E o grupo é forçado a ficar confinado naquele local sem possibilidade de escape. Por quanto tempo? Não se sabe. Talvez para sempre. Talvez tenha que se organizar e instituir ali uma nova civilização, que se aproxime da ideal, muito diferente da que havia deixado ao embarcar para a aventura. Pelo menos têm oportunidade para tal.
Não tarda, todavia, para se estabelecerem conflitos entre os integrantes do grupo, reitero, com personalidades, gostos, sonhos, educação, realidades etc. rigorosamente diferentes uns dos outros. Emergem líderes ao mesmo tempo que se manifestam opositores, contestadores, rebeldes que se recusam a seguir ordens de lideranças que não reconhecem. Em pouco tempo se reproduzem, na remota, perdida e selvagem ilhota, as injustiças, patifarias, corrupções e tudo o mais que há de ruim e que acontece em qualquer outro local do Planeta.
Morris West, portanto, traz à baila os velhos e eternos problemas de relacionamento humano: o amor, a solidariedade, a capacidade de sacrifício, com a disposição (ou não) individual e coletiva para sacrificar-se, além das exigências naturais de uma vida em comum diante dos instintivos e primitivos terrores face ao desconhecido. O autor reflete a respeito, através dos personagens. Sobre a tendência a sonhar, por exemplo, acentua:“Por trás de todo grande sonho há sempre uma grande verdade ou mesmo uma verdade pequena que assumiu uma importância fundamental”.
Sobre o que nos espera adiante, no próximo minuto, ou no próximo dia, ou no próximo mês, ou no próximo ano, ou nos posteriores e cada vez mais remotos, observa: “Vive-se um minuto depois do outro, vive-se uma hora, vive-se um dia. O futuro é o que se sonha. A realidade é o momento presente apenas, a cada batida do coração”.
Sobre a necessidade que as pessoas têm de uma religião, não importa qual, ou seja, de uma crença no místico, no insólito, no transcendental, opina: “A fé religiosa dá ao homem a compreensão da aritmética do cosmos, isto é, um meio de harmonizar-se com o universo misterioso em que se encontra”. E não é o que ocorre? Alguém compreende, de fato, onde está, e por que, por quanto tempo, para não dizer o que ou quem é? Duvido! Especular a propósito, muitos especulam. Creio que a maioria de nós. Mas saber, saber mesmo, de fato, com absoluta certeza, ninguém sabe. Somente desconfia, e na maioria das vezes sem nenhuma base sólida.
Como em toda comunidade heterogênea, como a que estava confinada naquela remota ilha do Pacífico, as variações de humor dos seus membros, os medos, incertezas, dificuldades etc. desembocam na reação, até instintiva, da violência. E essa resulta, primeiro, em um aborto provocado e depois em um homicídio, com a conseqüente necessidade de isolar o(s) infrator(es).
Essa distorção de comportamento, essa insanidade levou Morris West à seguinte reflexão, através de um dos personagens: “Uma das coisas que eu nunca pude compreender é a loucura que nos faz matar os que ainda não nasceram. Ao mesmo tempo, compreendo o anarquista que quer fazer voar pelos ares as nossas cidades imundas e deixar o mato e as árvores crescerem por entre as ruínas. O selvagem nobre de Rousseau não era apenas um,a ficção romântica. Mas nós levamos o homem à Lua e fizemos da tortura uma das belas artes”.
Daí é lícito se concluir que a instauração de uma sociedade ideal, do tal Paraíso (Éden, Walhala ou seja lá qual for) é impossível? Da minha parte, não diria tanto, mas considero essa possibilidade como sumamente improvável. E o que Morris West acha disso? Afirma: “O paraíso terrestre é a mais velha e maior ilusão do homem. Ainda que ele existisse, nós o arruinaríamos. Por mais que os frutos estivessem ao alcance da mão, haveríamos sempre de querer os que estivessem mais alto”.
Pelo menos foi isso que fizeram os personagens desse romance instigante, (posto que um tanto pessimista para alguns), sumamente realista, que, liderados por Gunnar Thorkild, não conseguiram realizar o sonho de estabelecer ali, naquela remota ilha do Pacífico, a sociedade ideal, o paraíso na Terra, que tiveram oportunidade de fazer. A explicação desse fracasso estaria nesta outra constatação de Morris West: “Todos nós somos prisioneiros. De nossos genes, de nossa história, de nossos velhos sonhos ancestrais”. Sociedade ideal? É coisa que sempre esteve e que talvez sempre estará no movediço e irreal terreno das utopias. Ou não?!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
O que aconteceria se a atual civilização entrasse subitamente em colapso (e isso é mais possível do que muita gente pensa), e se de repente, não importa a razão, desaparecessem governos, instituições, leis etc., ou seja, tudo o que caracteriza mo que entendemos como “vida civilizada”? Vou restringir um pouco a hipótese acima e supor que tudo isso acontecesse não em âmbito global, mas com determinado grupo de pessoas que, de repente, por um motivo qualquer, se visse isolado em algum lugar remoto, sem possibilidades de sair dali e sem nenhum meio de comunicação, por um tempo indeterminado.
O que ocorreria nessas circunstâncias? Essa comunidade, sem vínculos sanguíneos, ou seja, sem parentesco, retroagiria à barbárie, ou se reorganizaria, em bases melhores do que as vigentes no mundo atual? Todos se comportariam na base do “cada um por si”, sem respeito a nenhuma hierarquia, regra, crença ou seja lá o que for, ou agiriam de forma solidária e cooperativa, tendo em vista o bem comum? Suponho que a primeira hipótese seria mais provável. Claro que certeza, certeza mesmo ninguém tem. Morris West aborda essa possibilidade num romance instigante, que mais do que uma aventura que prende o leitor da primeira à última página, possibilita esse tipo de reflexão. Trata-se de “O navegante”.
O livro em questão, basicamente, relata a história de um professor universitário no Havaí, Gunnar Thorkild, que é recusado pela direção de determinada universidade para assumir uma cátedra ali por uma razão insólita. Por mencionar a existência de uma ilha mística perdida na vastidão do Oceano Pacífico, em um de seus trabalhos acadêmicos. Ocorre que o local mencionado não constava de nenhum mapa. Não havia nenhuma menção a ela provinda de qualquer fonte confiável, que não fosse o referido professor. Para todos os efeitos, ao menos oficialmente, não existia.
Thorkild, todavia, insiste em afirmar sua existência. E vai mais longe: diz que ela é o local de repouso dos grandes navegantes do Pacífico. E mais, que ele próprio é descendente direto de um desses heróis que fazem da alegada ilha, que seria paradisíaca, local de descanso e lazer.
Desafiado, resolve organizar uma expedição em busca dessas terras desconhecidas, cuja existência é negada. Leva consigo um grupo heterogêneo de pessoas, com personalidades rigorosamente diferentes umas das outras, sem nenhum tipo de vínculo ou de parentesco. A história, propriamente dita, começa aí. Ou melhor, com a chegada da expedição a determinada ilha, que talvez seja, talvez não seja a que Thorkild procurava.
O barco que conduziu esses aventureiros sofre séria avaria. Na verdade, fica inutilizado. E o grupo é forçado a ficar confinado naquele local sem possibilidade de escape. Por quanto tempo? Não se sabe. Talvez para sempre. Talvez tenha que se organizar e instituir ali uma nova civilização, que se aproxime da ideal, muito diferente da que havia deixado ao embarcar para a aventura. Pelo menos têm oportunidade para tal.
Não tarda, todavia, para se estabelecerem conflitos entre os integrantes do grupo, reitero, com personalidades, gostos, sonhos, educação, realidades etc. rigorosamente diferentes uns dos outros. Emergem líderes ao mesmo tempo que se manifestam opositores, contestadores, rebeldes que se recusam a seguir ordens de lideranças que não reconhecem. Em pouco tempo se reproduzem, na remota, perdida e selvagem ilhota, as injustiças, patifarias, corrupções e tudo o mais que há de ruim e que acontece em qualquer outro local do Planeta.
Morris West, portanto, traz à baila os velhos e eternos problemas de relacionamento humano: o amor, a solidariedade, a capacidade de sacrifício, com a disposição (ou não) individual e coletiva para sacrificar-se, além das exigências naturais de uma vida em comum diante dos instintivos e primitivos terrores face ao desconhecido. O autor reflete a respeito, através dos personagens. Sobre a tendência a sonhar, por exemplo, acentua:“Por trás de todo grande sonho há sempre uma grande verdade ou mesmo uma verdade pequena que assumiu uma importância fundamental”.
Sobre o que nos espera adiante, no próximo minuto, ou no próximo dia, ou no próximo mês, ou no próximo ano, ou nos posteriores e cada vez mais remotos, observa: “Vive-se um minuto depois do outro, vive-se uma hora, vive-se um dia. O futuro é o que se sonha. A realidade é o momento presente apenas, a cada batida do coração”.
Sobre a necessidade que as pessoas têm de uma religião, não importa qual, ou seja, de uma crença no místico, no insólito, no transcendental, opina: “A fé religiosa dá ao homem a compreensão da aritmética do cosmos, isto é, um meio de harmonizar-se com o universo misterioso em que se encontra”. E não é o que ocorre? Alguém compreende, de fato, onde está, e por que, por quanto tempo, para não dizer o que ou quem é? Duvido! Especular a propósito, muitos especulam. Creio que a maioria de nós. Mas saber, saber mesmo, de fato, com absoluta certeza, ninguém sabe. Somente desconfia, e na maioria das vezes sem nenhuma base sólida.
Como em toda comunidade heterogênea, como a que estava confinada naquela remota ilha do Pacífico, as variações de humor dos seus membros, os medos, incertezas, dificuldades etc. desembocam na reação, até instintiva, da violência. E essa resulta, primeiro, em um aborto provocado e depois em um homicídio, com a conseqüente necessidade de isolar o(s) infrator(es).
Essa distorção de comportamento, essa insanidade levou Morris West à seguinte reflexão, através de um dos personagens: “Uma das coisas que eu nunca pude compreender é a loucura que nos faz matar os que ainda não nasceram. Ao mesmo tempo, compreendo o anarquista que quer fazer voar pelos ares as nossas cidades imundas e deixar o mato e as árvores crescerem por entre as ruínas. O selvagem nobre de Rousseau não era apenas um,a ficção romântica. Mas nós levamos o homem à Lua e fizemos da tortura uma das belas artes”.
Daí é lícito se concluir que a instauração de uma sociedade ideal, do tal Paraíso (Éden, Walhala ou seja lá qual for) é impossível? Da minha parte, não diria tanto, mas considero essa possibilidade como sumamente improvável. E o que Morris West acha disso? Afirma: “O paraíso terrestre é a mais velha e maior ilusão do homem. Ainda que ele existisse, nós o arruinaríamos. Por mais que os frutos estivessem ao alcance da mão, haveríamos sempre de querer os que estivessem mais alto”.
Pelo menos foi isso que fizeram os personagens desse romance instigante, (posto que um tanto pessimista para alguns), sumamente realista, que, liderados por Gunnar Thorkild, não conseguiram realizar o sonho de estabelecer ali, naquela remota ilha do Pacífico, a sociedade ideal, o paraíso na Terra, que tiveram oportunidade de fazer. A explicação desse fracasso estaria nesta outra constatação de Morris West: “Todos nós somos prisioneiros. De nossos genes, de nossa história, de nossos velhos sonhos ancestrais”. Sociedade ideal? É coisa que sempre esteve e que talvez sempre estará no movediço e irreal terreno das utopias. Ou não?!!!
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