Testemunhas e cúmplices
Pedro J. Bondaczuk
O escritor é, óbvio, testemunha do tempo em que vive. É verdade que quem é incapaz de produzir uma única linha de texto também o é. A diferença é que o homem de letras tem a capacidade de registrar tipos, lugares, comportamentos, costumes etc. enfim, tudo o que diz respeito à vida em sociedade. Afinal, escreve não especificamente para a sua geração, mas para a posteridade, o quão remota não se sabe, mesmo que não se dê conta. Portanto, o escritor, além de testemunha do seu tempo, acaba por se constituir, também, em cúmplice dele. Ou seja, age, se comporta, fala, se veste, vive etc. como todas as demais pessoas.
Mantenho o que escrevi há tempos, de que o compromisso do homem de letras não é com a realidade. É, sim, de pelo menos sugerir a possibilidade de um dia existir um mundo melhor do que aquele em que vive, de justiça, paz, amor, solidariedade e todas as virtudes que admiramos, por serem raras na atualidade (e que, ademais, sempre foram em qualquer tempo e lugar). Seu papel é o de ser, mesmo que não ostensivamente, porém nas entrelinhas, arauto da esperança. Deixe a realidade nua e crua para o jornalista.
Embora possa parecer paradoxal, no entanto, concordo com Anatole France quando constata: “O real serve-nos para fabricar melhor ou pior um pouco de ideal”. Ou seja, para criarmos nossos enredos, temos que nos basear no que “existe”: em cenários, comportamentos, costumes e atitudes que vivenciamos e conhecemos. Caso contrário, corremos o risco de não sermos sequer compreendidos e, portanto, de sermos esquecidos, por mais originais e fascinantes que sejam nossas histórias. Afinal, o leitor precisa de um referencial para se situar.
Tempos atrás confessei que me sentia frustrado por não encontrar nos romances, novelas, contos etc. referências a objetos, comportamentos, atitudes, linguagens etc. do nosso tempo. Eram raríssimos, por exemplo, textos que se referissem ao computador. Navegar na internet e freqüentar redes sociais, tipo “Facebook”, “Orkut” ou “Tweeter”, era coisa que os personagens não faziam de jeito algum, mesmo sendo nossos contemporâneos. Utilizar celulares (que se transformam, cada vez mais, em instrumentos multimídia em miniatura, com funções, simultaneamente, de computador, gravador, câmera fotográfica, mini-TV e..., telefone, claro), Ipods, Ipads e outros tantos recursos de comunicação ao nosso dispor, nem pensar.
Dia desses, porém, para a minha satisfação, encontrei referências a essas engenhocas, cada vez mais comuns e até corriqueiras em nossas vidas, num texto literário de ficção. Qual a razão dessa omissão? Esquecimento? Distração? A convicção de que se trata de objetos tão comuns que nem carece fazer menção a eles? Se for este último o caso, são justamente eles que têm que estar presentes na vida dos personagens (claro, os urbanos), a menos que eles procedam de Marte ou de qualquer planeta alhures, perdidos na imensidão do universo.
Se não nos referirmos a esses equipamentos hoje triviais, como os nossos potenciais leitores do século XXII saberão que existiram? Se não escrevermos sobre nossos hábitos e comportamentos, as futuras gerações vão desconhecer como procedíamos em nosso dia a dia. Há escritores, e não poucos, que têm escrúpulos em reproduzir a linguagem do povo. Não recomendo, óbvio, que se estropie o idioma a torto e a direito. Cabe-nos respeitar os cânones da nossa língua e todas as regras gramaticais.
Mas há palavras e expressões fartamente utilizadas até por renomados intelectuais, coloquialmente, e que ficamos cheios de dedos para não reproduzi-las em nossas histórias. Trata-se de gírias, ainda não absorvidas pelos dicionários, mas que, mais cedo ou mais tarde, serão. Queiram ou não os eruditos, é o chamado povão que faz a língua. Mais uma vez, por hoje, sou levado a dar razão a Anatole France quando opina: “O povo faz bem às línguas. Fá-las imaginosas e claras, vivas e expressivas. Se fossem os sábios a fazê-las, elas seriam baças e pesadas”. E não é?
Muitos escritores têm enorme dificuldade de descrição. São peritos em diálogos, cada vez mais ágeis e verossímeis, criativos na exposição de idéias, exímios construtores de personagens interessantes e pitorescos, verdadeiros psicanalistas ao virar a alma pelo avesso, mas no momento de descreverem um aposento, uma rua, um jardim etc., de sorte que se transformem, quase, numa fotografia por palavras, tentam, tentam, tentam e.. não conseguem. Falta-lhes traquejo, hábito e, sobretudo, treino.
Recordo-me que na infância, nos meus tempos de primário, os professores concentravam sua atenção nesse aspecto. No terceiro ano, tínhamos aulas semanais de descrição. Lembro-me que minha querida profe3ssorinha Dona Helena tinha um cadernão, do tamanho de um cartaz, com vinte ou trinta páginas só de gravuras em tamanho ampliado.
Escolhia uma imagem qualquer, geralmente de paisagem, a esmo, pendurava-a na lousa e nos mandava descrevê-la. Os mais detalhistas e observadores tiravam as notas mais altas. Os menos, com o tempo, por causa do contínuo treinamento, logo se tornavam peritos também em descrever o que quer que fosse. Hoje, não há esse tipo de exercício nas escolas. Por que? Sabe-se lá!
Também tive o privilégio de ser escoteiro. E uma das provas, para se conseguir promoção, era a do “Kim” (referência ao célebre personagem de Rudyard Kipling). Consistia no seguinte: o chefe levava-o a um lugar onde você não havia estado antes. Dava-lhe dois minutos para observar tudo o que havia ao seu redor. Findo este tempo, vendava seus olhos e você tinha que descrever o que havia observado. Quanto mais rica e detalhada fosse sua descrição, mais pontos você somava.
Essa prova tinha, também, a versão de mesa. Nela, eram colocadas dezenas de objetos, os mais diversos e heterogêneos, e você tinha os mesmos dois minutos para observá-los. A seguir, era, igualmente, vendado e tinha que descrever tudo o que havia visto sobre a mesa. O critério era igual ao da versão em local aberto. Ou seja, quanto mais rica e detalhada fosse sua descrição, mais pontos você somava.
Sei que, a esta altura, muita gente está torcendo o nariz, face ao que escrevi, dizendo: “Tudo isso é bobagem!”. Outros devem estar achando essas recomendações ridículas, imensa insanidade, coisas de louco. Pois bem, como iniciei estas reflexões citando Anatole France, concluo-as de igual maneira. E o consagrado ganhador de um Nobel de Literatura lembrou, com muita propriedade, a esse propósito: “As grandes obras deste mundo foram sempre realizadas por doidos”. Creio estar em bom caminho.
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