Friday, January 23, 2009

Vocábulos e seixos


Pedro J. Bondaczuk

As palavras são caprichosas e volúveis e transformam-se com o tempo. Não todas, claro, mas boa parte delas passa por esse processo de transformação (não me cabe julgar se para melhor ou para pior). Muitas caem em desuso, outras se modificam, outras tantas surgem como que do nada e outras, ainda, “sofrem erosão da corrente do pensamento”, conforme afirmou Antonio Candido, na magnífica crônica intitulada “Língua, pensamento e Literatura”, publicada no jornal Folha da Manhã em 25 de junho de 1944 (ocasião em que eu tinha, apenas, um ano e meio de idade).
Fascinam-me essas metamorfoses vocabulares, semânticas e/ou gramaticais. Quando cursei, no início da década de 60, o então Curso Científico, estudei Gramática Histórica na primeira série, na disciplina Português. Hoje, infelizmente, esse importante estudo foi suprimido. Daí as pessoas terem tanta dificuldade em aprender (como devem) o nosso rico idioma. Sinceramente, gostaria de saber quem (e por que) suprimiu esta matéria do currículo. Com todo o respeito: deve ser uma macro, mega ou hipercavalgadura, ou qualquer outro superlativo mais forte (se é que existe algum) que se queira usar.
Esse estudo da evolução do modo lusitano de se expressar ao longo do tempo era facilitado pelo fato de havermos estudado, no antigo ginásio, o idioma-matriz da Língua Portuguesa (e do espanhol, francês, italiano, romeno etc.): o latim. Algum “gênio” (provavelmente um asponi desocupado, ávido por mostrar serviço aos seus superiores hierárquicos do Ministério da Educação) achou que isso não era importante. Sugeriu (e outras cavalgaduras acataram, de bom-grado, essa “brilhante” sugestão), que fosse suprimido, pura e simplesmente, do currículo. Uma pena!
Desta forma, os estudantes de hoje estão privados, entre tantas e tantas e tantas outras coisas interessantes, do conhecimento, por exemplo, de como o “ene”, de determinadas palavras, se transformou no til. Ou de como o “sc” de outras virou o cedilha. Ou como ocorreu a simplificação do tratamento “vossa mercê” primeiro para “vassuncê” e, finalmente, para “você”.
Gosto de literatura. Gosto de fazê-la e de comentá-la, ambas com a mesmíssima satisfação. Aviso, de antemão, aos que não me conhecem: não me considero crítico literário, embora comente, a todo instante, livros e mais livros, ou trechos esparsos deles. Faço-o, porém, à minha maneira, sem método e sem compromisso.
O leitor paciente e fiel, que me acompanha há anos nestas descompromissadas reflexões diárias, sabe, de sobejo, que sou antes de tudo um provocador. Não fujo de temas polêmicos. Ao contrário, busco-os com obsessão. Faço isso, porém, não para contrariar quem quer que seja (embora muitos se sintam contrariados). Ajo dessa maneira para suscitar debates que, quando em alto nível, tendem a nos conduzir ao esclarecimento de assuntos obscuros.
Apesar de ser provocador, contudo, não critico, por exemplo, textos de que não gosto. Não me sinto no direito de acabar com os sonhos de ninguém que aspire o estrelato no complicado, frustrante e pantanoso campo da Literatura. Outro que os arruíne. Recuso-me a esse papel. Comento, somente, as obras e autores que aprecio. Considero esses escritores amigos do peito, mesmo não conhecendo (pessoalmente) nenhum deles. A maioria, é verdade, viveu séculos (quando não milênios) antes de eu nascer. Não haveria, pois, como se estabelecer esse conhecimento mútuo, não é fato?
A alguns artífices do idioma, são facultadas licenças, interditas aos mortais comuns. Atentem, por exemplo, ao início deste maravilhoso soneto: “Alma minha gentil que te partiste/tão cedo desta vida descontente...”. Fossem estes versos escritos por Pedro J. Bondaczuk (que pretensão!), os críticos investiriam, de imediato, apontando, dedo em riste, o cacófato “alma minha”. Como foram escritos por ninguém menos do que Camões... quem ousaria se dar a esse atrevimento?!
Nada, todavia, me fascina mais do que estudar a transformação das palavras, quer na maneira de serem escritas, quer (e principalmente) em seu significado. E também, por que não, em sua pronúncia. Em geral, elas perdem asperezas originais e se amaciam, atenuam, alisam com o passar do tempo e com a sucessão das gerações. Fossem pedras, se tornariam agradáveis ao tato.
Antonio Candido escreveu a esse respeito, na crônica citada acima: “Ora, os vocábulos são como os seixos dos rios. A princípio, duros e ásperos calhaus cheios de pontas e arestas. A água, todavia, passa longa e pacientemente sobre eles. Os anos sucedem aos anos, e os seixos vão se arredondando, as suas anfractuosidades se atenuam, toda a pedrinha como que amacia e se torna um pequeno bloco polido, doce ao contato e à vista. Também as palavras sofrem esta erosão; no seu caso, da corrente do pensamento”. Não foi o que escrevi no início destas descompromissadas reflexões?!!!

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