Tuesday, January 20, 2009

Reencontro diário


Pedro J. Bondaczuk

A auto-aceitação é um dos fatores fundamentais para que nos sintamos felizes (embora, claro, não seja o único). Devemos nos aceitar como somos e, para que isso se torne possível, temos que levar uma vida simples e ordenada, sem excessivas ambições e nem culpas, conhecendo os nossos limites e somente nutrindo sonhos e desejos que sejam factíveis e estejam ao nosso alcance. Difícil? Sem dúvida.
Temos duas tendências antagônicas, ambas fontes de profunda insatisfação pessoal. Uma é a da supervalorização das nossas supostas virtudes e talentos. Achamos que somos mais, muito mais do que aparentamos ou do que os outros achem e que não somos devidamente valorizados pelas pessoas do nosso convívio. Convivemos, por isso, com permanente sensação de sermos injustiçados (quando, na maioria das vezes, não somos).
A segunda tendência – no meu entender ainda pior do que a primeira – é a da subvalorização. É o que os psicólogos chamam de “complexo de inferioridade”. Julgamo-nos inferiores a todos e sofremos muito por isso. Tornamo-nos tímidos, retraídos, arredios, vacilantes e profundamente antissociais.
Damos excessiva importância às opiniões alheias ao nosso respeito e não nos aceitamos como somos, o que, claro, é um grande erro. Por fim, acabamos por adquirir o vício da infelicidade e sequer atinamos com a mais remota possibilidade de mudança de comportamento para melhor.
Outro fator, diretamente ligado à auto-aceitação, é a convivência com culpas (reais ou imaginárias, não importa). Quem age dessa forma, vive em perpétuo sobressalto, temendo punições e/ou retaliações. O melhor exemplo, deste tipo de pessoa, é o estudante Rodion Romanovitch Raskolnikov, personagem criado pelo escritor russo Fedor Dostoievsky, em seu clássico “Crime e Castigo”.
O referido indivíduo, apesar de ser professor de línguas, vivia em estado de profunda miséria. Achava-se, claro, injustiçado, ainda mais quando observava uma velha agiota, cuja obsessão era a de juntar valores (dinheiro, jóias etc.), sem usufruir dos benefícios de sua riqueza. Ponderou e concluiu que esta era uma pessoa inútil e até nociva à sociedade e que ninguém se importaria se a matasse e subtraísse seus bens.
Da cogitação, à efetiva ação, foi um passo. Em determinado dia, Raskolnikov assassina a velha agiota a machadas. Contudo, as circunstâncias forçaram-no a não se limitar a esse crime. Teve, também, que matar Lisavieta, irmã da anciã, que havia visto o cadáver no chão e, certamente, o denunciaria.
A partir de então, o estudante vive no inferno. Sequer aproveita o resultado do roubo que praticara, no caso algumas jóias de relativo valor. Arrependido do que havia feito, mesmo sabendo que não poderia voltar atrás no crime, enterra, sob uma pedra, o que havia roubado. Mas a consciência de Raskolnikov não lhe dá tréguas. Com todas as pessoas que cruzava, não importa se estranhas ou conhecidas, tinha a sensação de que elas sabiam o que havia feito. E o olhar – por mais inocente e casual que fosse – que estas lhe dirigissem, era, em sua mente atormentada, enfáticos libelo de acusação.
Mesmo depois que a polícia prendeu um suposto culpado, que inexplicavelmente havia confessado o crime que não tinha cometido, o remorso e a sensação de que todos sabiam que era o verdadeiro assassino persistia na mente do estudante. A consciência não lhe dava tréguas. Até que um dia, estimulado por Sônia, a mulher que amava, confessou às autoridades seu delito.
São muitas as vezes em que convivemos com essa mesma sensação de culpa, devendo ou não. E sofremos inutilmente, quando a atitude mais sábia seria a de nos livrarmos desse inútil peso na consciência. Como? Muito simples. Se realmente prejudicamos alguém, o caminho mais sábio, sem dúvida, é o da reparação da falta. Caso não seja possível repará-la, o melhor que se faz é ter a humildade de pedir perdão ao ofendido.
O irônico é que os verdadeiros culpados, aqueles que de fato se esmeram em fazer o que não devem, nunca se julgam maus. Têm a consciência embotada. Quando eu era estudante de Direito, fui, um dia, com meu professor, visitar uma cadeia pública da minha cidade, para conversar com os presos. Nas entrevistas (foram umas dez), nenhum, absolutamente nenhum deles admitiu o delito de que era acusado. Eram todos uns “anjinhos”, totalmente inocentes, injustiçados pela família e pela sociedade.
Um deles era acusado de haver chacinado, de forma bárbara e brutal, toda uma família, apenas para roubar alguns míseros trocados, crime que causara profunda revolta popular na época. Mas, a despeito das provas contundentes contra ele, teimava em se declarar (e jurava por todas as juras) inocente. Insistia em afirmar que fora preso por engano. Não fora, é claro. Um sujeito assim jamais terá dor de consciência. Não mais a possui.
O escritor francês, Paul Valéry, constatou, em um de seus textos, a propósito da relação que há entre auto-aceitação e felicidade: “O homem feliz é aquele que ao despertar se reencontra com prazer e se reconhece como aquele que gosta de ser”. Como se vê, é uma receita simples, simplérrima, ao alcance de todos, que não implica em nenhuma complexidade e independe da ação alheia. Que tal experimentarmos agir assim?

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