“Recriando” o nome
Pedro J. Bondaczuk
O nome, aquele com que nossos pais nos registram em cartório, após nosso nascimento, é o que nos confere identidade, certo? Errado. Talvez nos identifique no âmbito da nossa família. Mas só talvez. Não raro, nem isso acontece. Socialmente, então... É para lá de comum o problema da homonímia, que muitas vezes traz confusões imensas aos homônimos ou a um deles pelo menos. Até crimes são imputados a inocentes, só por terem o mesmo nome dos verdadeiros criminosos.
Há casos de coincidências tão incríveis que dificultam ainda mais a verdadeira identificação. Por exemplo, além de terem sido registradas na mesma data, com o mesmo dia, mês e ano de nascimento, duas pessoas diferentes – uma criminosa, por exemplo e outra inocente – terem, também, os pais com o mesmíssimo nome. Aí... é um inferno!
Mas não são apenas esses casos extremos que geram confusões e aflições. Todos nós batalhamos por ter nossa identidade firmada e sermos reconhecidos por nossos eventuais talentos, méritos e obras, sem dúvidas ou confusões. Em literatura (e em várias outras atividades, claro, notadamente as artísticas e as esportivas), os que se destacam recorrem a pseudônimos para serem reconhecidos sem dúvidas. E estes, às vezes, se impõem de tal sorte, de tanto serem divulgados, que em muitos casos o público jamais fica conhecendo o nome de batismo de um determinado escritor (ou cantor, ou músico ou jogador de futebol, não importa).
Trago-lhes, hoje, dois casos que ilustram bem essa situação. Ambos foram poetas. Os dois consagraram-se de tal sorte na literatura de seu país (os dois nasceram numa mesma pátria) e na mundial, que conquistaram Prêmios Nobel de Literatura. As semelhanças entre eles, contudo, param por aí. Um, por exemplo, é homem e a outra mulher. Um foi sumamente politizado, ideologicamente comprometido, comunista até a medula, e fez carreira diplomática. A dama, por seu turno, tinha fervor absoluto pelo magistério. Tamanho, que começou a lecionar aos quinze anos de idade e nunca parou, mesmo depois da fama, de haver conquistado o Nobel de Literatura.
Vocês já adivinharam quais são as personagens a que me refiro? Não?! Vou dar-lhes uma dica definitiva: ambos nasceram no Chile. Agora ficou fácil, não é mesmo? Bem, para os distraídos ou os mal informados revelo quem são esses notáveis escritores. São Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Poucos sabem que seus nomes de batismo não eram sequer parecidos com estes. Quando revelei, dia desses, a um amigo, quais eram, este chegou a duvidar, achando que eu estava brincando. Não costumo, contudo, brincar com coisas sérias e muito menos quando se trata de comentar uma atividade que venero e com a qual me sinto comprometido, de corpo e alma, como é o caso da literatura.
O nome de batismo de Gabriela Mistral, por sinal bastante extenso, é Lucila de Maria Del Perpétuo Socorro Godoy Alcayaga. Como se vê, seria complicadíssimo para algum leitor (ou pelo menos para a maioria deles) memorizá-lo. Ademais, a devotada professorinha de aldeia, com um talento do tamanho do mundo, religiosíssima (católica fervorosa), adotou o pseudônimo até para distinguir as duas atividades que exercia. Dizem que escolheu o Gabriela em homenagem ao arcanjo Gabriel. E que o Mistral foi uma forma de reverenciar o poeta catalão Francisco Mistral. Se é verdade ou não, não posso garantir. Mas tem lógica.
Gabriela Mistral, amicíssima de Cecília Meirelles, com quem guardava muitas semelhanças, quer na forma de fazer poesia, quer no fervor pelo magistério, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1945, surpreendendo o mundo naquela oportunidade. Sou vidrado na sua obra, de nítida influência mística.
Já o nome de batismo de Pablo Neruda é Ricardo Eliecer Neftali Reyes Basualto. Ou seja, tão comprido quanto o de Gabriela Mistral. Foi diplomata e militante comunista, muito amigo do presidente chileno, Salvador Allende, a cujo governo serviu. Morreu (oficialmente de câncer de próstata) em 1973, doze dias depois que o general Augusto Pinochet liderou o golpe de Estado que depôs seu amigo do poder.
A causa da sua morte, porém, foi bastante contestada na época em que ocorreu e continua sendo até hoje. O Partido Comunista Chileno acusava e ainda acusa o oficial golpista de ser o responsável por ela. Pinochet teria ordenado o envenenamento de Neruda. Seria, portanto, mais um caso de assassinato da feroz ditadura chilena. A Justiça do Chile acolheu, finalmente, essa denúncia, em 2 de junho deste ano de 2011, determinando a abertura de investigação a respeito.
A poesia de Neruda é mais variada, eclética e “universal” que a de Gabriela Mistral. Seu Nobel de Literatura foi conquistado em 1971. Poucos poetas se igualaram ou se igualam a ele em criatividade e inspiração. Amo sua poesia, que não canso de reler e de me deliciar com suas metáforas, em magníficos versos. Seguindo uma prática de que nunca abri mão quando trato de poetas, pincei, em meus arquivos, uma produção de Gabriela Mistral e outra de Pablo Neruda para reproduzir neste espaço. Como as damas sempre têm preferência, transcrevo, primeiro, os versos abaixo da genial professorinha:
Pedro J. Bondaczuk
O nome, aquele com que nossos pais nos registram em cartório, após nosso nascimento, é o que nos confere identidade, certo? Errado. Talvez nos identifique no âmbito da nossa família. Mas só talvez. Não raro, nem isso acontece. Socialmente, então... É para lá de comum o problema da homonímia, que muitas vezes traz confusões imensas aos homônimos ou a um deles pelo menos. Até crimes são imputados a inocentes, só por terem o mesmo nome dos verdadeiros criminosos.
Há casos de coincidências tão incríveis que dificultam ainda mais a verdadeira identificação. Por exemplo, além de terem sido registradas na mesma data, com o mesmo dia, mês e ano de nascimento, duas pessoas diferentes – uma criminosa, por exemplo e outra inocente – terem, também, os pais com o mesmíssimo nome. Aí... é um inferno!
Mas não são apenas esses casos extremos que geram confusões e aflições. Todos nós batalhamos por ter nossa identidade firmada e sermos reconhecidos por nossos eventuais talentos, méritos e obras, sem dúvidas ou confusões. Em literatura (e em várias outras atividades, claro, notadamente as artísticas e as esportivas), os que se destacam recorrem a pseudônimos para serem reconhecidos sem dúvidas. E estes, às vezes, se impõem de tal sorte, de tanto serem divulgados, que em muitos casos o público jamais fica conhecendo o nome de batismo de um determinado escritor (ou cantor, ou músico ou jogador de futebol, não importa).
Trago-lhes, hoje, dois casos que ilustram bem essa situação. Ambos foram poetas. Os dois consagraram-se de tal sorte na literatura de seu país (os dois nasceram numa mesma pátria) e na mundial, que conquistaram Prêmios Nobel de Literatura. As semelhanças entre eles, contudo, param por aí. Um, por exemplo, é homem e a outra mulher. Um foi sumamente politizado, ideologicamente comprometido, comunista até a medula, e fez carreira diplomática. A dama, por seu turno, tinha fervor absoluto pelo magistério. Tamanho, que começou a lecionar aos quinze anos de idade e nunca parou, mesmo depois da fama, de haver conquistado o Nobel de Literatura.
Vocês já adivinharam quais são as personagens a que me refiro? Não?! Vou dar-lhes uma dica definitiva: ambos nasceram no Chile. Agora ficou fácil, não é mesmo? Bem, para os distraídos ou os mal informados revelo quem são esses notáveis escritores. São Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Poucos sabem que seus nomes de batismo não eram sequer parecidos com estes. Quando revelei, dia desses, a um amigo, quais eram, este chegou a duvidar, achando que eu estava brincando. Não costumo, contudo, brincar com coisas sérias e muito menos quando se trata de comentar uma atividade que venero e com a qual me sinto comprometido, de corpo e alma, como é o caso da literatura.
O nome de batismo de Gabriela Mistral, por sinal bastante extenso, é Lucila de Maria Del Perpétuo Socorro Godoy Alcayaga. Como se vê, seria complicadíssimo para algum leitor (ou pelo menos para a maioria deles) memorizá-lo. Ademais, a devotada professorinha de aldeia, com um talento do tamanho do mundo, religiosíssima (católica fervorosa), adotou o pseudônimo até para distinguir as duas atividades que exercia. Dizem que escolheu o Gabriela em homenagem ao arcanjo Gabriel. E que o Mistral foi uma forma de reverenciar o poeta catalão Francisco Mistral. Se é verdade ou não, não posso garantir. Mas tem lógica.
Gabriela Mistral, amicíssima de Cecília Meirelles, com quem guardava muitas semelhanças, quer na forma de fazer poesia, quer no fervor pelo magistério, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1945, surpreendendo o mundo naquela oportunidade. Sou vidrado na sua obra, de nítida influência mística.
Já o nome de batismo de Pablo Neruda é Ricardo Eliecer Neftali Reyes Basualto. Ou seja, tão comprido quanto o de Gabriela Mistral. Foi diplomata e militante comunista, muito amigo do presidente chileno, Salvador Allende, a cujo governo serviu. Morreu (oficialmente de câncer de próstata) em 1973, doze dias depois que o general Augusto Pinochet liderou o golpe de Estado que depôs seu amigo do poder.
A causa da sua morte, porém, foi bastante contestada na época em que ocorreu e continua sendo até hoje. O Partido Comunista Chileno acusava e ainda acusa o oficial golpista de ser o responsável por ela. Pinochet teria ordenado o envenenamento de Neruda. Seria, portanto, mais um caso de assassinato da feroz ditadura chilena. A Justiça do Chile acolheu, finalmente, essa denúncia, em 2 de junho deste ano de 2011, determinando a abertura de investigação a respeito.
A poesia de Neruda é mais variada, eclética e “universal” que a de Gabriela Mistral. Seu Nobel de Literatura foi conquistado em 1971. Poucos poetas se igualaram ou se igualam a ele em criatividade e inspiração. Amo sua poesia, que não canso de reler e de me deliciar com suas metáforas, em magníficos versos. Seguindo uma prática de que nunca abri mão quando trato de poetas, pincei, em meus arquivos, uma produção de Gabriela Mistral e outra de Pablo Neruda para reproduzir neste espaço. Como as damas sempre têm preferência, transcrevo, primeiro, os versos abaixo da genial professorinha:
Hino à árvore
Arvore irmã que bem cravada
por ganchos escuros ao solo
a clara fronte levantaste
numa sede intensa de céu.
Faz-me piedoso para a escória
de cujos limos me mantenho
sem que se adormeça a memória
do país azul de onde venho.
Tu que anuncia ao viandante
a graça de tua presença
com ampla sobra refrescante
e com o nimbo de tua essência;
faze com que a minha presença
revele, nos prados da vida,
dúlcida e cálida influência
por sobre as almas exercida.
Árvore criadora dez vezes:
a que tem fruto cor-de-rosa,
a de madeira construtora,
a de zéfiro perfumada,
a de folhagem protetora,
a de bálsamos suavizantes
e a de resinas milagrosas
repleta de pesados ramos
e de gargantas melodiosas;
torna-me doador opulento,
faze-me como tu fecundo:
O coração e o pensamento
me sejam vastos como o mundo.
E todas as atividades
não cheguem nunca a fatigar-me;
as magnas prodigalidades
surjam em mim sem esgotar-me.
Árvore, em que é tão sossegada
a pulsação do existir,
e vês meu alento a agitada
febre do mundo consumir;
faze-me sereno, sereno,
dessa viril serenidade
que deu aos mármores helenos
o seu sopro de divindade.
Tu que não és outra coisa
que doce entranha de mulher,
pois cada rama guarda airosa
em cada leve ninho um ser,
dá-me ramagem vasta e densa,
tanto quanto hão de precisar
os que no bosque humano imenso
não tenham lenha para o lar.
Árvore que onde se levante
teu corpo cheio de vigor
assumes invariavelmente
o mesmo gesto protetor;
faze que ao longo dos estágios
da vida, do prazer, da dor,
minha alma assuma um invariado
e universal gesto de amor.
Arvore irmã que bem cravada
por ganchos escuros ao solo
a clara fronte levantaste
numa sede intensa de céu.
Faz-me piedoso para a escória
de cujos limos me mantenho
sem que se adormeça a memória
do país azul de onde venho.
Tu que anuncia ao viandante
a graça de tua presença
com ampla sobra refrescante
e com o nimbo de tua essência;
faze com que a minha presença
revele, nos prados da vida,
dúlcida e cálida influência
por sobre as almas exercida.
Árvore criadora dez vezes:
a que tem fruto cor-de-rosa,
a de madeira construtora,
a de zéfiro perfumada,
a de folhagem protetora,
a de bálsamos suavizantes
e a de resinas milagrosas
repleta de pesados ramos
e de gargantas melodiosas;
torna-me doador opulento,
faze-me como tu fecundo:
O coração e o pensamento
me sejam vastos como o mundo.
E todas as atividades
não cheguem nunca a fatigar-me;
as magnas prodigalidades
surjam em mim sem esgotar-me.
Árvore, em que é tão sossegada
a pulsação do existir,
e vês meu alento a agitada
febre do mundo consumir;
faze-me sereno, sereno,
dessa viril serenidade
que deu aos mármores helenos
o seu sopro de divindade.
Tu que não és outra coisa
que doce entranha de mulher,
pois cada rama guarda airosa
em cada leve ninho um ser,
dá-me ramagem vasta e densa,
tanto quanto hão de precisar
os que no bosque humano imenso
não tenham lenha para o lar.
Árvore que onde se levante
teu corpo cheio de vigor
assumes invariavelmente
o mesmo gesto protetor;
faze que ao longo dos estágios
da vida, do prazer, da dor,
minha alma assuma um invariado
e universal gesto de amor.
De Pablo Neruda, selecionei o poema abaixo que, coincidentemente, também reverencia a natureza, tão judiada hoje em dia, levando o mundo à beira da catástrofe, ao risco de se tornar inabitável dadas as mudanças climáticas ora em andamento:
Nos Bosques, Perdido
Nos bosques, perdido, cortei um ramo escuro
E aos lábios, sedento, levante seu sussurro:
era talvez a voz da chuva chorando,
um sino quebrado ou um coração partido.
Algo que de tão longe me parecia
oculto gravemente, coberto pela terra,
um gruto ensurdecido por imensos outonos,
pela entreaberta e úmida treva das folhas.
Porém ali, despertando dos sonhos do bosque,
o ramo de avelã cantou sob minha boca
E seu odor errante subiu para o meu entendimento
como se, repentinamente, estivessem me procurando as raízes
que abandonei, a terra perdida com minha infância,
e parei ferido pelo aroma errante.
Não o quero, amada.
Para que nada nos prenda
para que não nos una nada.
Nem a palavra que perfumou tua boca
nem o que não disseram as palavras.
Nem a festa de amor que não tivemos
nem teus soluços junto à janela...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Nos bosques, perdido, cortei um ramo escuro
E aos lábios, sedento, levante seu sussurro:
era talvez a voz da chuva chorando,
um sino quebrado ou um coração partido.
Algo que de tão longe me parecia
oculto gravemente, coberto pela terra,
um gruto ensurdecido por imensos outonos,
pela entreaberta e úmida treva das folhas.
Porém ali, despertando dos sonhos do bosque,
o ramo de avelã cantou sob minha boca
E seu odor errante subiu para o meu entendimento
como se, repentinamente, estivessem me procurando as raízes
que abandonei, a terra perdida com minha infância,
e parei ferido pelo aroma errante.
Não o quero, amada.
Para que nada nos prenda
para que não nos una nada.
Nem a palavra que perfumou tua boca
nem o que não disseram as palavras.
Nem a festa de amor que não tivemos
nem teus soluços junto à janela...
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