Sunday, September 18, 2011







O que poderia ter sido?

Pedro J. Bondaczuk

O talento literário – como ademais o de qualquer outra natureza – às vezes manifesta-se com extrema precocidade. Em muitos casos, amadurece, desenvolve-se e brilha, glorioso, ao sol. Em outros, murcha, ou por falta de exercício, ou por não receber estímulos e nem incentivos, ou por outras tantas circunstâncias. Há alguns casos em que, muito cedo, chega ao auge, beira a excelência, mas... é abruptamente interrompido, ceifado pela morte.
O Brasil perdeu, notadamente no século XIX (mas não só nele), magníficos talentos literários, mormente na poesia, como os casos de Álvares de Azevedo, Castro Alves e tantos outros, que morreram jovens, muito jovens, alguns mal completando os vinte e um anos e outros com um pouco mais. E, mesmo deixando tão cedo o palco da vida, legaram à posteridade pérolas literárias, obras-primas que se imortalizaram e se tornaram clássicas.
Fico imaginando o que não poderiam produzir caso vivessem pelo menos a média brasileira de vida, atualmente de pouco mais de 72 anos. Ou se tivessem longevidade ainda maior. É verdade que viver muito não é garantia de muito produzir. E grande produção nem sempre (ou quase nunca) implica em alta qualidade. Não, pelo menos, de tudo o que se produz.
Se Álvares de Azevedo vivesse, digamos, 80 anos, e se mantivesse a mesma garra e criatividade, poderia revolucionar a arte da poesia. Não se pode excluir, porém, a hipótese que talvez não produzisse nada além e nada melhor do que produziu. O “se”, todavia, nunca conta. É incógnita. É o que não aconteceu e poderia (ou não) acontecer.
Há muito artista talentoso deixando, prematuramente, o palco da vida, todos os dias, mundo afora. Alguns têm tempo de expor suas obras que, de tão boas, deixam-nos a sensação de “quero mais”. A maioria, porém, jamais tem a chance de expor seu talento ao grande público. Sua produção fica restrita à família, que a guarda como relíquia do ente querido que parte tão cedo.
O dia 2 de junho de 2011 marcou o aniversário de um desses talentos precoces que se foram, igualmente, precocemente demais. Aliás, não se trata de “um”, mas de “uma”, já que me refiro a uma poetisa, Ana Cristina Cruz César. Quem já leu seus poemas concorda, sem titubear, que foi um baita talento literário. Essa mulher sensível e genial, que nasceu em 2 de junho de 1952, foi tão precoce que, aos seis anos de idade, bem antes de ser alfabetizada, já ditava poemas à mãe, para que esta os escrevesse.
Nascida numa família culta, evangélica, a garota teve a oportunidade de estudar na Inglaterra. Começou a compor ainda menininha e só parou de fazer isso quando morreu, de forma trágica, em 26 de outubro de 1983, aos 31 anos de idade. Na ocasião, noticiei, chocado, sua morte no jornal em que então trabalhava. Só omiti a causa da morte, por causa de uma norma da empresa com a qual, aliás, sempre concordei.
Explico: Ana Cristina cometeu suicídio, saltando da janela do apartamento dos pais, no oitavo andar de um edifício residencial localizado na Rua Toneleros, em Copacabana. E o jornal tinha por norma nunca noticiar suicídios, por se tratar de terrível drama íntimo das vítimas e simultaneamente algozes, posto que de si próprias e das respectivas famílias.
O que Ana Cristina poderia ter feito, mais do que fez, caso estivesse viva (estaria completando 59 anos, com muita lenha ainda para queimar)? Pressinto que muito, embora nem eu nem ninguém possamos ter certeza disso. Mesmo assim, ela foi importante para a literatura nacional. Tem seu nome inscrito na história como expoente da chamada “geração mimeógrafo” , também conhecida como produtora de “poesia marginal”, da década de 1970.
Não é de bom tom escrever sobre poetas sem reproduzir pelo menos uma amostra de sua produção poética. Separei, pois, do meu arquivo, não apenas um, mas três poemas de Ana Cristina César para partilhar com vocês. O primeiro é este:

A ponto de partir

A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância,
lentes escuríssimas sob os pilotis.

O segundo poema é este:

Ulysses

E ele e os outros me vêem.
Quem escolheu este rosto para mim?

Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo
estilete da minha arte tanto quanto
eu temo o dele.

Segredos cansados de sua tirania,
tiranos que desejam ser destronados.

Segredos, silenciosos, de pedra,
sentados nos palácios escuros
de nossos dois corações:
segredos cansados de sua tirania,
tiranos que desejam ser destronados.

O mesmo quarto e a mesma hora.

Toca um tango
uma formiga na pele
da barriga
rápida e ruiva.

Uma sentinela: ilha de terrível sede.
Uma concha humana.

Finalmente, trago-lhes mais este poema de Ana Cristina César:

Toda Mulher

A coisa que mais o preocupava
naquele momento
era estudo de mulher

toda mulher
dos quinze aos dezoito

Não sou mais mulher.
Ela quer o sujeito.
Coleciona histórias de amor.



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