Sunday, September 11, 2011







Atualidade e perenidade


Pedro J. Bondaczuk


Os bons romances, os que se eternizam e prendem a atenção dos leitores décadas após terem sido escritos, pela atualidade dos temas que tratam no enredo e pela captação da essência do comportamento humano, aquele “que” que permanece intacto, geração após geração, refletidos em seus personagens, são raros. Todavia, mesmo que não se constituam em sucessos de vendas, em best-sellers, destes que enriquecem subitamente o autor e o façam candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, transformam-se no que consideramos “clássicos”, tanto de algum país específico (o da origem do escritor), quanto, por extensão, mundiais. Adquirem, dada a atualidade, a desejável perenidade.

Um dos livros que podem (e devem, em nome da inteligência e do bom gosto) ser classificados dessa maneira é “Olhai os lírios do campo”, de Érico Veríssimo. É possível que o leitor até estranhe essa peremptória afirmação, já que esta não é, sequer, a obra mais conhecida, famosa e citada do romancista gaúcho (por sinal, muito bem sucedido no mundo das letras). Quem discordar, todavia, da classificação que lhe empresto, ou não leu esse romance, ou se o fez não lhe dedicou a devida atenção. Isso para não pensar coisas piores de um leitor tão distraído (ou alienado? Ou insensível?). Explicarei por que.

Publicado há 73 anos, em 1938, o romance guarda uma atualidade rara até em livros recém-lançados, boa parte dos quais não tarda a se tornar ultrapassada, embora tenham lá sua importância como testemunhos de uma época (isso, quando de fato têm). Uma boa obra de ficção satisfaz múltiplas funções. Entre estas, as mais desejáveis são: divertir ao mesmo tempo que instruir e suscitar reflexões. Ter personagens complexos e através deles o autor expor opiniões sobre os temas mais candentes do seu tempo, mas sem se tornar discursivo ou dogmático. O leitor sequer se dará conta desse aspecto, tamanha a naturalidade dos diálogos e descrições. E esta é a principal virtude de “Olhai os lírios do campo”.

Trata-se de uma crítica sutil e inteligente à futilidade e vazio de uma sociedade hipócrita e alienada, ferozmente materialista, que caracterizava a década de 30. E a de hoje, é muito diferente? Melhorou, em termos de consciência? Claro que não! Na verdade, piorou, e muito. Aliás, posto que melhor informada, é muito mais individualista, imediatista e perdulária. Ademais, atingiu picos inusitados (e crescentes) de alienação, apesar do fabuloso aparato tecnológico de comunicação ao seu dispor.

A história de Érico Veríssimo se passa numa Porto Alegre que, na essência, pouco mudou nos dias atuais. Claro, multiplicou sua urbanização, população, vantagens e problemas por pelo menos dez, ou mais. Cresceu, mas não perdeu suas características urbanas peculiares. A cidade em que os personagens transitam e representam seus dramas, comédias e tragédias, é dinâmica e agitada, caracterizada, já naquela época tão remota, por tráfego intenso de automóveis nas ruas, telefones, cinemas, teatros, prédios altos e gente rica, na zona central e nos bairros mais abastados e uma periferia crescente, com problemas recorrentes que, por falta de solução apropriada, apenas se multiplicaram, de hordas de miseráveis, doentes e de vidas problemáticas.

O romance tem como personagem central Eugênio Fontes, com seus conflitos, contradições e, sobretudo, transformações. Trata-se de um médico, profundamente pessimista, infeliz e complexado, com múltiplos e complexos conflitos, dilemas interiores, contatos sociais e vicissitudes. Ele é casado com Eunice, mulher rica, mas fútil (e inútil), com a qual vive um arremedo de casamento. Tem uma filha, Anamaria, na qual deposita imensas esperanças, mas teme que se torne cópia fiel da esposa.

O grande amor de Eugênio, todavia, não é a pessoa com que se casou. É Olívia, colega de trabalho, jovem estudante da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, que sustenta enorme batalha para custear os estudos. O romance pode ser dividido em duas partes, antes e depois da transformação interior de Eugênio que, de um sujeito desanimado e vazio, ferozmente materialista, muda sua postura e se transforma (posto que lentamente) como água e vinho, num idealista. Não vou, óbvio, resumir o enredo, até para não tirar o prazer da descoberta de quem ainda não leu o romance, mas que se dispuser a fazê-lo.

Peço, apenas, licença para reproduzir este trecho de “Olhai os lírios do campo”, do capítulo 19, página 223 (da edição que tenho em mãos), parágrafo 5, em que o autor, através de Eugênio Fontes, trata de como deveria ser uma congregação de pacifistas (na época, a Segunda Guerra Mundial ainda não havia começado, mas já se esboçava, com acontecimentos que findariam por desembocar no conflito.

Érico escreve, a propósito: “Congregar os homens de boa vontade partidários do pacifismo e determinar a cada um a sua tarefa, tendo em vista que todos, desde o artesão mais humilde até o intelectual mais reputado, podem prestar serviços à causa dentro do raio da sua atividade. Devem-se usar as armas do amor e da persuasão. Fugir sempre a toda e qualquer violência, mas saber opor à violência uma coragem serena. Mobilizar todas as forças morais e utilizá-las na guerra à guerra e aos outros males sociais. Fazer que homens de espírito são, desinteressados e lúcidos subam aos postos de governo e fiquem senhores da situação. Educar as crianças, procurando dar-lhes desde o jardim da infância uma consciência social. Procurar influir em todos os meios de publicidade moderna: literatura, cinema, teatro, imprensa, rádio, fazendo o boicote de tudo quanto é mau e vicioso. Não esquecer que o exemplo individual é uma poderosa arma de propaganda. Estar disposto ao sacrifício e nunca fugir à luta. Encher o país de escolas, hospitais e dispensários. Conseguir aos poucos a socialização da medicina”.

Querem anseios e necessidades mais atuais do que esses? É como se estas palavras houvessem sido escritas ontem, ou até mesmo hoje pela manhã, voltadas, portanto, para os nossos tempos, tão sombrios e incertos, tão pertinentes e atuais que elas soam.

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