Lúcidas reflexões
Pedro J. Bondaczuk
A literatura da África do Sul, embora rica e profunda, raramente é levada em conta quando se analisa o panorama literário internacional, salvo com raras exceções. É como se lá não houvesse escritores dignos de menção. Todavia, há, e muitos, e excelentes. O país tem produzido, e há muitos anos, notáveis homens de letras que não ficam nada a dever aos de centros tidos como culturalmente mais avançados. É mister lembrar, sobretudo, que dois deles já conquistaram o Prêmio Nobel de Literatura (o que, convenhamos, não é pouca coisa): J. M. Coetzee e Nadine Gordimer.
O português Fernando Pessoa, que tanto admiramos (por razões óbvias), viveu sua infância na África do Sul. Foi alfabetizado em Durban. Escreveu seu primeiro livro em inglês, idioma que dominava tão bem quanto o português que, num poema célebre, louvou como sendo a sua “pátria”. Teve, portanto, fortíssima e decisiva influência da literatura sul-africana.
Outros escritores dignos de nota, oriundos da África do Sul (entre tantos e tantos) são: André Brink, Alan Patton, Breyton Breytenbroch, Wessel Ebersohn, Lewis Nkosi e, principalmente, Stuart Cloete. Vários deles já tiveram livros lançados no Brasil. São, todos eles, escritores muito bons, cujas obras literárias são dignas de figurar nas melhores bibliotecas.
Destes, porém, tenho preferência particular por Stuart Cloete. Por que? Porque fiquei fascinado com a leitura do seu romance “Balada africana”, edição da Boa Leitura Editora, com tradução de Raul Polillo, que acabo de reler pela segunda vez. Gosto de textos de ficção que, embora sejam narrativas fluentes de determinadas histórias, seus autores não se limitam a elas, mas nos induzem a fazermos reflexões sobre a vida, sobre a arte e sobre comportamentos sociais. É o caso desse livro. Com ele, diverti-me e, simultaneamente, me instruí e refleti.
O enredo desse romance de Stuart Cloete se passa não na África do Sul, como seria de se esperar. Seu cenário é o vizinho Moçambique, país que o autor conhecia muito bem. Aliás, o romancista, conhecido como escritor sul-africano, nasceu mesmo foi em Paris, embora nunca tenha se sentido francês. Viveu pouco tempo na França, e apenas na mais tenra infância.
A história em questão, basicamente, é sobre dois elefantes. Todavia – e isso se percebe, somente, com muita atenção durante a leitura – ela é só pretexto para o autor abordar, posto que com muita sutileza, o nem sempre tranqüilo (até pelo contrário) relacionamento entre negros e brancos nessa tão sofrida e explorada África.
Edward Fairly Stuart Graham Cloete, filho de mãe francesa e pai sul-africano, nasceu em Paris, em 23 de julho de 1897. Foi educado e viveu toda a vida na África do Sul, onde morreu, em 19 de março de 1976. Além de romancista, foi, também, ensaísta, contista e biógrafo. Chegou a atuar como roteirista de cinema.
No romance “Balada africana” faz reflexões como esta, por exemplo, a propósito de teorias modificadoras: “A nossa moralidade, a nossa vida de família e a nossa vida de negócios, tudo foi extremamente modificado pelas teorias que agora governam a nossa conduta – pelos inventos poupadores de trabalho que empurraram as mulheres para fora do lar – pela emancipação delas e pela subseqüente entrada delas na vida dos negócios – e até mesmo em negócios tais como a guerra”.
A propósito das categorias de homens que conseguia identificar, constatou: “No mundo, há quatro grandes classes de homens, das quais todos nós vivemos, e sem as quais morreríamos. As duas classes dos que ceifam as colheitas do solo, cultivando lavouras em sua superfície, e cavoucando-lhe as entranhas, em busca de minerais nela ocultos; os agricultores e os mineiros. A dos homens que buscam a messe do mar: o povo pescador. E, finalmente, a dos homens que desbastam as florestas: os madeireiros, os silvicultores e os caçadores que procuram carne, marfim e peles. São eles os batedores que precedem o arado”.
Outra reflexão original e pertinente é a que se refere sobre a infinidade de “vozes” que nos chamam a cada momento das nossas vidas, às quais se referiu nestes termos: “Ao redor de nós, há vozes que nos chamam. A voz do filme, a voz do rádio, da televisão, da imprensa e da propaganda – e nenhuma delas faz sentido. Não há imagem. Há apenas confusão; e, esmagado entre a pedra de moer de uma economia que se desmorona (e que fica por cima), e os mecanismos de fuga (que ficam por baixo) de uma indústria de diversões que surgiu brotando do desesperado desejo do homem no sentido de fugir de si próprio e ir para o reino da fantasia, o espírito humano está sendo reduzido a pó”.
Sobre a obsessão do homem contemporâneo, constatou o seguinte: “Nós temos medo da vida; temos medo da morte. Procuramos apenas conforto, coisa que nada mais é do que uma almofada entre o homem e a realidade. Não temos crenças. Tanto Deus, como o diabo, são agora considerados mitos. Com eles, lá se foi até a idéia do bem e do mal. Vivendo em cidades de aço e concreto, comendo alimentos industrializados, nós tentamos erguer-nos acima da natureza, e passamos a considerar-nos, de certo modo, superiores às leis que governam a vida. Um homem não é mais vivo, nem menos vivo, do que um gerânio no seu vaso, sobre o peitoril da janela; ou do que um elefante, nas florestas da África”.
Sobre a importância do fogo para a sobrevivência e a evolução humanas, tema que me suscitou, até mesmo, a redação longo ensaio, baseado em suas reflexões, fez estas observações: “É o fogo que faz o homem – separando-o dos animais. Em primeiro lugar, houve a arma – um grosso bastão, que até ao que se sabe, os grandes símios de outrora usaram. Depois, houve o fogo, que todas as feras temem. Há alguma coisa de Deus no fogo. Depois, ainda, houve os receptáculos, para que a água pudesse ser transportada. E houve cães, domesticados para caçar. Por fim, surgiu a semente, plantada ao invés de ser catada em estado selvagem; e os bandos e os rebanhos de animais domesticados. Mas o rei disto tudo é o fogo. O salvador e o destruidor”.
Como se vê, não cometo nenhum exagero ao considerar Stuart Cloete não somente ótimo romancista, mas profundo e refinado filósofo. Creio que não somente esse romance, mas toda a sua obra, merecem maior atenção dos leitores, sobretudo pela clareza de idéias e pelas profundas reflexões que suscita.
Pedro J. Bondaczuk
A literatura da África do Sul, embora rica e profunda, raramente é levada em conta quando se analisa o panorama literário internacional, salvo com raras exceções. É como se lá não houvesse escritores dignos de menção. Todavia, há, e muitos, e excelentes. O país tem produzido, e há muitos anos, notáveis homens de letras que não ficam nada a dever aos de centros tidos como culturalmente mais avançados. É mister lembrar, sobretudo, que dois deles já conquistaram o Prêmio Nobel de Literatura (o que, convenhamos, não é pouca coisa): J. M. Coetzee e Nadine Gordimer.
O português Fernando Pessoa, que tanto admiramos (por razões óbvias), viveu sua infância na África do Sul. Foi alfabetizado em Durban. Escreveu seu primeiro livro em inglês, idioma que dominava tão bem quanto o português que, num poema célebre, louvou como sendo a sua “pátria”. Teve, portanto, fortíssima e decisiva influência da literatura sul-africana.
Outros escritores dignos de nota, oriundos da África do Sul (entre tantos e tantos) são: André Brink, Alan Patton, Breyton Breytenbroch, Wessel Ebersohn, Lewis Nkosi e, principalmente, Stuart Cloete. Vários deles já tiveram livros lançados no Brasil. São, todos eles, escritores muito bons, cujas obras literárias são dignas de figurar nas melhores bibliotecas.
Destes, porém, tenho preferência particular por Stuart Cloete. Por que? Porque fiquei fascinado com a leitura do seu romance “Balada africana”, edição da Boa Leitura Editora, com tradução de Raul Polillo, que acabo de reler pela segunda vez. Gosto de textos de ficção que, embora sejam narrativas fluentes de determinadas histórias, seus autores não se limitam a elas, mas nos induzem a fazermos reflexões sobre a vida, sobre a arte e sobre comportamentos sociais. É o caso desse livro. Com ele, diverti-me e, simultaneamente, me instruí e refleti.
O enredo desse romance de Stuart Cloete se passa não na África do Sul, como seria de se esperar. Seu cenário é o vizinho Moçambique, país que o autor conhecia muito bem. Aliás, o romancista, conhecido como escritor sul-africano, nasceu mesmo foi em Paris, embora nunca tenha se sentido francês. Viveu pouco tempo na França, e apenas na mais tenra infância.
A história em questão, basicamente, é sobre dois elefantes. Todavia – e isso se percebe, somente, com muita atenção durante a leitura – ela é só pretexto para o autor abordar, posto que com muita sutileza, o nem sempre tranqüilo (até pelo contrário) relacionamento entre negros e brancos nessa tão sofrida e explorada África.
Edward Fairly Stuart Graham Cloete, filho de mãe francesa e pai sul-africano, nasceu em Paris, em 23 de julho de 1897. Foi educado e viveu toda a vida na África do Sul, onde morreu, em 19 de março de 1976. Além de romancista, foi, também, ensaísta, contista e biógrafo. Chegou a atuar como roteirista de cinema.
No romance “Balada africana” faz reflexões como esta, por exemplo, a propósito de teorias modificadoras: “A nossa moralidade, a nossa vida de família e a nossa vida de negócios, tudo foi extremamente modificado pelas teorias que agora governam a nossa conduta – pelos inventos poupadores de trabalho que empurraram as mulheres para fora do lar – pela emancipação delas e pela subseqüente entrada delas na vida dos negócios – e até mesmo em negócios tais como a guerra”.
A propósito das categorias de homens que conseguia identificar, constatou: “No mundo, há quatro grandes classes de homens, das quais todos nós vivemos, e sem as quais morreríamos. As duas classes dos que ceifam as colheitas do solo, cultivando lavouras em sua superfície, e cavoucando-lhe as entranhas, em busca de minerais nela ocultos; os agricultores e os mineiros. A dos homens que buscam a messe do mar: o povo pescador. E, finalmente, a dos homens que desbastam as florestas: os madeireiros, os silvicultores e os caçadores que procuram carne, marfim e peles. São eles os batedores que precedem o arado”.
Outra reflexão original e pertinente é a que se refere sobre a infinidade de “vozes” que nos chamam a cada momento das nossas vidas, às quais se referiu nestes termos: “Ao redor de nós, há vozes que nos chamam. A voz do filme, a voz do rádio, da televisão, da imprensa e da propaganda – e nenhuma delas faz sentido. Não há imagem. Há apenas confusão; e, esmagado entre a pedra de moer de uma economia que se desmorona (e que fica por cima), e os mecanismos de fuga (que ficam por baixo) de uma indústria de diversões que surgiu brotando do desesperado desejo do homem no sentido de fugir de si próprio e ir para o reino da fantasia, o espírito humano está sendo reduzido a pó”.
Sobre a obsessão do homem contemporâneo, constatou o seguinte: “Nós temos medo da vida; temos medo da morte. Procuramos apenas conforto, coisa que nada mais é do que uma almofada entre o homem e a realidade. Não temos crenças. Tanto Deus, como o diabo, são agora considerados mitos. Com eles, lá se foi até a idéia do bem e do mal. Vivendo em cidades de aço e concreto, comendo alimentos industrializados, nós tentamos erguer-nos acima da natureza, e passamos a considerar-nos, de certo modo, superiores às leis que governam a vida. Um homem não é mais vivo, nem menos vivo, do que um gerânio no seu vaso, sobre o peitoril da janela; ou do que um elefante, nas florestas da África”.
Sobre a importância do fogo para a sobrevivência e a evolução humanas, tema que me suscitou, até mesmo, a redação longo ensaio, baseado em suas reflexões, fez estas observações: “É o fogo que faz o homem – separando-o dos animais. Em primeiro lugar, houve a arma – um grosso bastão, que até ao que se sabe, os grandes símios de outrora usaram. Depois, houve o fogo, que todas as feras temem. Há alguma coisa de Deus no fogo. Depois, ainda, houve os receptáculos, para que a água pudesse ser transportada. E houve cães, domesticados para caçar. Por fim, surgiu a semente, plantada ao invés de ser catada em estado selvagem; e os bandos e os rebanhos de animais domesticados. Mas o rei disto tudo é o fogo. O salvador e o destruidor”.
Como se vê, não cometo nenhum exagero ao considerar Stuart Cloete não somente ótimo romancista, mas profundo e refinado filósofo. Creio que não somente esse romance, mas toda a sua obra, merecem maior atenção dos leitores, sobretudo pela clareza de idéias e pelas profundas reflexões que suscita.
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