Sunday, March 06, 2011




Abusos do Estado

Pedro J. Bondaczuk

O relatório anual da Anistia Internacional, divulgado ontem, denunciou a existência de abusos contra o mais sagrado dos direitos do homem, o da vida, em 40 países da comunidade mundial. Entre eles estão incluídos todos os tipos de regimes e de ideologias, que de uma maneira ou de outra, cometeram abusos intoleráveis contra a integridade física de cidadãos, a quem lhes competia proteger. Afinal, o Estado existe em função do indivíduo e não o inverso. O primeiro é uma entidade abstrata, composta por pessoas tais como nós, com as mesmas necessidades e fraquezas que temos. O segundo, teoricamente, é o seu grande beneficiário. A sociedade, que delegou poder, aos que exorbitam dessa forma tão degradante de suas funções, tem o dever de cobrar deles.

Ainda nos tempos antigos, Cícero, em "De Legibus", já concluía, com rara lucidez: "Se da reta razão resulta a lei e desta o Direito, este deve ser igual para todos, assim como comum a todos é a fonte originária da razão natural". Segundo Jellinek, as leis são ditadas pelo interesse geral. E à maioria não interessam, em absoluto, torturas, degradações morais e execuções arbitrárias. Ainda mais quando esses crimes são cometidos pelos que receberam delegação popular exatamente para coibi-los.

É doloroso constatar-se que países com grande tradição de respeito às leis também lançam mão de expedientes que eles tanto condenam nos outros, nos grandes fóruns internacionais. Esse foi o caso da Grã-Bretanha, por exemplo, denunciada no relatório da Anistia por torturas a meros suspeitos de atividades políticas na Irlanda do Norte. E por exorbitar da força na repressão a mineiros de carvão quando estes se encontravam em greve. Ou seja, excessos acabaram sendo coibidos mediante destemperos.

Mas não foi apenas este país o acusado de práticas tão tortuosas. Praticamente nenhum escapou dessa espécie de denúncia. Nessas 123 sociedades nacionais violadoras de direitos do ser humano, citadas no relatório, pelo menos em alguns casos, retornou-se à perversa "pena de Talião". A do "olho por olho, dente por dente", posta em prática, repetimos, à revelia dos que delegaram poder a "servidores do bem comum" tão infiéis.

É claro que a maior parte das violações dos direitos humanos veio de regimes ditatoriais, onde a vida de qualquer cidadão vale menos do que um vintém. Ocorreram onde existem ditaduras cínicas e cruéis, que sob o pretexto de protegerem suas infelizes nações de ideologias consideradas nocivas, impõem, à maioria (a poder de assassinatos, prisões arbitrárias em masmorras infectas e insalubres, dignas das piores da Idade Média, torturas inomináveis, que fariam o Marquês de Sade se sentir complexado e confiscos de bens pessoais, com aspecto da mais explícita rapinagem) um reinado de pavor e de ódio reprimido. Em tais sociedades, quando as paixões acabam por vir à tona, registram-se, mais cedo ou mais tarde, os deprimentes banhos de sangue com os quais a opinião pública mundial até já se acostumou, em ferozes guerras civis.

É dever, portanto, dos cidadãos que vivem sob democracias estáveis, a cobrança de explicações desses desvios de conduta de seus governantes. Que tais mazelas sejam exemplarmente punidas, ao amparo da lei, acima da qual ninguém pode estar (e rigorosamente sob a sua égide) para que o exemplo de respeito à dignidade humana frutifique e atinja às comunidades mais atrasadas e carentes. Para que haja um parâmetro factível, que possibilite uma contínua evolução no campo do Direito. Para que seja lançada a semente, pelo menos uma, que conduza toda a humanidade (mesmo que isso venha a demorar um milênio ou mais) a uma era de compreensão e de fraternidade, tendo a justiça por corolário.

(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular em 10 de outubro de 1985)

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