Thursday, May 15, 2008

Aparências que satisfazem - II


Pedro J. Bondaczuk

(CONTINUAÇÃO)

I -DELITO E REGENERAÇÃO

Um dos melhores livros que já li, sobre a iniqüidade de algumas leis e o excessivo rigor do aparato de justiça, por estranho que pareça, não foi nenhum tratado jurídico, ou antropológico ou filosófico. Foi, pelo contrário, um romance, uma obra de ficção. Seu autor, portanto, não é nenhum jurista de renome, nem sociólogo com invejável currículo e nem filósofo fundador de alguma escola qualquer: é, apenas, um escritor, posto que dos mais reconhecidos e laureados da literatura mundial. Portanto, está despido de dogmas e axiomas que não raro intoxicam o espírito e impedem um raciocínio lógico, humano e, sobretudo, generoso, complacente com as deficiências e contradições humanas.
O livro é “Os Miseráveis”. O autor, Victor Hugo. Na obra em questão, o autor passa a sua mensagem através da conturbada trajetória do personagem central, Jean Valjean. É mediante suas peripécias que o escritor nos traça a conturbada situação política e social do seu país, a França, num determinado período de sua história, o século XIX, mais especificamente no que se convencionou chamar de Insurreição Democrática, que começou com o levante popular de 5 e 6 de junho de 1832.
Esse movimento foi uma tentativa dos “legitimistas” (os que eram favoráveis à volta dos Bourbons ao trono francês) e dos republicanos, inclusive bonapartistas, liderados pelo futuro Napoleão III, de depor Luís Felipe I (apelidado de “Rei Burguês” ou “Rei Cidadão”, por governar o país sob os princípios da Revolução Francesa). A revolta foi facilmente sufocada, sem maiores conseqüências. Mas o ambiente era de turbulência, o que se manteve até o fim do seu reinado, em 1848.
O enredo, em seu todo, soa um tanto inverossímil, mas o talento de Hugo finda por nos convencer que o tipo de história que narra é possível de acontecer na vida real. O que vale, porém, são suas reflexões sobre a preponderância das leis, sobre a possibilidade ou não de regeneração de quem delinqüe e sobre a tragédia que é o rigor excessivo de uma sentença, a ponto de transformar qualquer homem em uma fera insensível e desesperada.
Jean Valjean pratica um pequeno furto por causa do absoluto estado de necessidade em que estava. Isto é, desempregado, não tinha sequer o que comer e com o que alimentar a família. Entra, em determinado dia, em uma casa e lá furta pão para se alimentar. Mas é preso pelas autoridades.
Levado ao Tribunal de Faverolles, é julgado e condenado a uma duríssima pena: dez anos nas galés. Cumpre, integralmente, a pesada sentença e é posto em liberdade, mas com a condição de se apresentar, regularmente, às autoridades policiais. Se não cumprir essas determinações, voltará à cadeia, para nunca mais sair. Valjean é obrigado, por isso, a portar o “passaporte amarelo”, que o identifica como ex-presidiário, e a exibir esse documento, sempre que solicitado.
Claro que isso faz com que se sinta marginalizado e, sobretudo, abandonado por todos. Ninguém o ajuda, a não ser o Bispo de Digne, Charles-François-Bienvenu Myriel. Todavia, Valjean, em vez de mostrar gratidão ao seu único benfeitor, torna a delinqüir. Rouba toda a prataria da casa do sacerdote. Não tarda, porém, a ser preso.
Como se vê, mete-se, outra vez, em apuros e corre o risco de nunca mais ser um homem livre. Levado, contudo, por policiais à presença do Bispo, este não só não o acusa do crime praticado, como, ainda, depõe a seu favor. Myriel assegura às autoridades que “deu” a prataria a Valjean. E acrescenta que este “esqueceu de levar os castiçais”.
Este gesto de bondade muda, pelo menos por algum tempo, a vida do marginal. Com a venda dos objetos, ele reúne um capital e estabelece-se como empresário. Volta, sobretudo, a acreditar nas pessoas. Trabalha, prospera e, com o passar dos anos, torna-se respeitável homem de negócios. Vai até mais longe: elege-se prefeito de Digne. Torna-se pessoa admirada e respeitada pela bondade. Quando solicitado, nunca se nega a ajudar a quem precisa.

(CONTINUA)

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