Thursday, August 24, 2006
A maldição de Midas
Pedro J. Bondaczuk
Os apólogos, fábulas e parábolas são formas didáticas (e poéticas) que os grandes mestres do passado desenvolveram para transmitir lições de comportamento e de vida, sobretudo às pessoas incultas e com dificuldades de entendimento. Alguns são tão antigos, que se torna impossível determinar seus autores. Atravessaram séculos, milênios até, transmitidos que foram oralmente, geração após geração.
Uma dessas histórias exemplares é a que trata da maldição de Midas, aquele rei que transformava em ouro tudo o que tocava. Ela foi lembrada, dia desses, por um leitor, que me enviou e-mail a propósito da minha crônica “Self-made man”, em que faço algumas considerações sobre os detentores de grandes fortunas.
Para quem não conhece essa lenda (ou mito, ou apólogo, ou fábula, ou parábola, sei lá como caracterizar essa narrativa), recomendo a leitura do livro “A Grécia. Mitos e lendas”, de Alain Quesnel (com tradução de Ana Maria Machado), da Editora Ática. Mas não vou frustrá-lo, caro e paciente leitor. Para sua comodidade, resumo, abaixo (embora de forma um tanto canhestra), quer para o seu conhecimento, quer para sua lembrança, a referida história.
Em Bromionte, na Macedônia, norte da Grécia, vivia um rei muito ganancioso e, sobretudo avaro, chamado Midas. Seu grande sonho na vida era possuir toda a riqueza do mundo, mesmo que não usufruísse dela. Sua cobiça era enorme, imensa, desmedida, sem limites. Em certo dia, passeando pelos suntuosos jardins do seu palácio, deu de cara com o fauno Sileno, escondido atrás de um arbusto, que se havia extraviado da morada de Dionísio.
Querendo fazer uma gentileza ao deus da alegria e do prazer, conduziu o trânsfuga à sua presença. A seu favor, deve-se dizer que Midas não pensou, nesse momento, em nenhuma recompensa pelo seu gesto. A iniciativa de premiar o monarca partiu de Dionísio, que estava grato por sua atitude, já que tinha grande consideração por Sileno. Para premiá-lo, o deus concedeu-lhe o atendimento de um, um único desejo, qualquer que fosse. E o rei não titubeou. Indagado sobre o que queria, pediu: “Quero que tudo aquilo que eu tocar, se transforme em ouro!”. “Concedido”– respondeu-lhe Dionísio, embora ciente da insensatez de Midas.
E assim foi. O rei voltou ao seu palácio radiante. Tocou no trinco da porta, e este, imediatamente, se transformou em ouro. Segurou seu cetro real, e o fato se repetiu. Para se divertir, começou a tocar tudo o que havia ao seu redor. E tudo ficava, num piscar de olhos, reluzente e dourado. Midas não cabia em si de contentamento.
Não tardou, porém, em perceber as inconveniências desse dom. Foi quando precisou realizar algumas tarefas básicas da vida, como comer, beber etc. Ao tocar um pedaço de pão, por exemplo, este imediatamente se transformou num rígido pedaço do precioso metal. O mesmo aconteceu com o copo de vinho. O rei começou a se apavorar. Mas o auge do seu desespero se verificou ao tentar acariciar sua filha caçula, uma bela criança de nove anos de idade, a quem tanto amava. Ao seu simples toque no rosto da princesinha, incontinenti, esta se transformou numa estátua de ouro.
Fora de si, Midas correu para a morada de Dionísio, que, às gargalhadas se divertia com as desventuras do rei, que, aos prantos, implorou que o deus desfizesse o encanto, que na verdade era maldição. Depois de rir muito da situação, este resolveu atender aos rogos aflitos do monarca. Recomendou-lhe que tomasse banho na nascente do Páctolo, próximo ao Monte Tmolo, para voltar à condição normal. Desde então, as águas desse rio carregam uma porção de pepitas de ouro, para alegria dos cobiçosos e dos avarentos.
Há pessoas que parecem ter esse mesmo encanto de Midas, mas ao contrário deste, não admitem se tratar de grande maldição. Tudo o que tocam parece virar ouro, que juntam, juntam e juntam, sem saber o que fazer com ele. Não sabem usufruir a fortuna que têm. Desconhecem que os verdadeiros bens da vida são imateriais. Esses insensatos, cuja ambição desmedida se concentra exclusivamente na fortuna, nunca têm certeza, por exemplo, de serem, de fato, amados. Não sabem se o “amor” que lhe juram devotar é genuíno ou se é mero fruto de interesses. O mesmo vale para as amizades, na verdade quase todas interesseiras mesmo.
Ressalte-se que nem todos os milionários são dotados da extrema insensibilidade de Midas. Há (posto que raros) os que fazem da sua fortuna fontes de amparo a artistas, a desportistas, a instituições voltadas ao socorro social (que fundam e mantêm) e a tantas outras obras de benemerência. Os que não agem assim, convivem com o intenso desespero do insensato rei da fábula. Mas, ao contrário deste, não têm como desfazer o encanto que, na verdade, é maldição. Como se vê, tudo no mundo é relativo...
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