Wednesday, December 17, 2008

Paixão de Narciso


Pedro J. Bondaczuk

A paixão e, mais do que isso, a veneração que algumas pessoas têm por si próprias, sempre me causaram pasmo, mas também enorme fascínio. Como escritor e atento estudioso do comportamento, os extremos despertam-me especial interesse, bem como, estou certo, igualmente ao leitor. Esse sentimento exacerbado pela própria figura é o que os psicólogos e psicanalistas denominam de “Narcisismo”. E é muito mais comum do que a maioria está disposta a admitir.
Antes que alguém me questione, acentuo que não há nada de errado no amor próprio. Pelo contrário, Jesus Cristo, o mestre dos mestres, colocou-o como parâmetro do sentimento sadio que devemos nutrir pelos semelhantes. Ensinou-nos a “amar o próximo como amamos a nós mesmos”. O erro em que algumas pessoas incorrem é o da exclusividade. É o de colocarem uma palavrinha de apenas duas letras, “só”, nessa proposição. Elas “só amam” a si mesmas, e com veneração, e a mais ninguém.
Foi esse fascínio por essa atitude extrema de auto-veneração que me levou a batizar um dos meus livros com o título de “Cronos & Narciso”. Sobre o primeiro, dos dois personagens míticos, tratei recentemente em outra crônica, intitulada “Idade de Ouro”. Utilizo-o como uma espécie de metáfora do tempo. O segundo, simboliza, claro, a vaidade. Reitero que esta, se não levada a extremos (característica, aliás, tão comum a nós todos) é saudável e, mais do que isso, desejável. O problema está no exagero.
Tempo e vaidade são dois adversários inconciliáveis. E, como o leitor certamente já desconfiava, a vitória, invariavelmente, é sempre, e exclusivamente, do primeiro. Ele humilha, rebaixa, aniquila e depois devora a segunda, como ademais a tudo e a todos. Cronos finda por engolir Narciso, sempre e sempre. O resultado desse duelo bem que poderia ser ilustrado com um ancião, com uma ampulheta em uma das mãos e uma caveira na outra, com a legenda: “sic transit gloriam mundi”. De fato, “assim termina a glória do mundo”.
A exemplo do que fiz, na crônica “Idade de Ouro”, em que resumi o mito de Cronos, é mister fazer o mesmo com relação a Narciso. Há várias versões desse mito, embora todas com o mesmo desfecho. Uma delas, é a imortalizada por Ovídio, em seu “Metamorfoses”. Outra é a legada por Pausânias, no “Guia para a Grécia”. Uma terceira foi encontrada entre os papiros achados em Nag Hammadi, ou Chenoboskion, cuja autoria se desconhece, como nos informa a enciclopédia virtual Wikipédia, que utilizei para esta pesquisa.
Minha opção recai sobre a narrativa de Ovídio, a mais popular. Vamos, pois, a ela. Narciso, ou o “Auto-Admirador”, era um herói de Téspias, na Beócia (que a região não se perca pelo nome). Filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope, era famoso por sua incomparável beleza e orgulho. No dia do seu nascimento, o adivinho Tirésias profetizou que o menino teria vida longa, desde que jamais viesse a contemplar a própria imagem.
Um dia, como era previsível de acontecer, a belíssima e graciosa ninfa Eco apaixonou-se, perdidamente, por Narciso. Este, que tinha beleza tão incomparável que se julgava semelhante a um deus – a Dionísio e a Apolo, por exemplo – não correspondeu à paixão da moça. Pelo contrário, ignorou-a e até chegou a zombar dela.
Eco ficou desesperada. Não tirava Narciso do pensamento. Parou de se alimentar, não conseguia mais dormir e foi definhando, definhando, definhando até desaparecer, deixando, de si, apenas um débil e melancólico sussurro.
Para dar uma lição ao orgulhoso rapaz, a deusa Nêmesis resolveu intervir. Condenou-o a apaixonar-se pelo próprio reflexo nas águas do lago de Eco. E assim aconteceu. Embevecido com a própria beleza, Narciso deitou-se na margem de um regato e também definhou. Passava o tempo todo olhando-se na água e se embelezando, mais e mais, permanente e compulsivamente, sem pensar mais em coisa alguma, a não ser na própria figura. E, como havia ocorrido com Eco, também morreu.
As ninfas construíram uma pira para incinerar seu corpo, como era costume na ocasião. Mas, quando foram buscá-lo, cadê? Não havia nenhum! Encontraram, somente, no seu lugar, uma simples flor: o narciso.
Este é o destino da vaidade, ou seja, ser engolida pelo tempo. Este é o destino de Narciso: ser engolido por Cronos, a exemplo do que o titã fizera com cinco dos seus filhos. O sexto, porém, Zeus, escapou ileso, fez o pai vomitar seus cinco irmãos, destronou-o e exilou-o na inóspita e desolada região do Tártaro. Sic transit gloriam mundi...

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