Monday, December 22, 2008

Numa noite de Natal


Pedro J. Bondaczuk

O escritor Antônio Arnault escreveu, no livro “As noites afluentes”: “Breve é a vida e o seu rasto. A posteridade é apenas a memória acesa de uma vela efêmera. Para que a memória não se apague, temos que nos dar uns aos outros, como elos de uma corrente ou pedras de uma catedral”. Ou seja, tudo e todos passam e só restam (quando restam) as memórias e nada mais.
Na véspera do Natal de 2006, escrevi um texto – que sequer sei como caracterizar, se como crônica, se como poesia ou como sei lá o quê – homenageando pessoas que foram muito importantes em minha vida, mas que já morreram, embora permaneçam vivíssimas na minha lembrança e na minha estima e que assim ficarão, pelo menos enquanto eu viver.
Imaginei uma ceia, em que todas estivessem presentes, com suas características e personalidades, trazendo os presentes que certamente me dariam e ganhando, em troca, o que gostariam de receber de mim. Entre elas destacavam-se meus avós – os paternos, Hilarion e Matrena e os maternos, Simeão e Rosa – meus tios, irmãos da minha mãe, Pedro e João (em homenagem dos quais fui batizado com o nome de Pedro João) e os amigos inesquecíveis, Maurício de Moraes, Célia Búrigo e Mauro Sampaio.
Os dois primeiros foram eminentes jornalistas em Campinas. Trabalharam comigo, por vários anos, no Correio Popular, formando laços de amizade e apreço que nem o tempo e nem mesmo a morte conseguiram (e nem conseguirão) romper. Qualquer homenagem que lhes prestar, por maior que seja, ainda será pouca, pelo tanto que representaram para mim. Já Mauro, um dos mais sensíveis poetas que conheci, presidiu, por muitos anos, a Academia Campinense de Letras, instituição que tenho orgulho de integrar e foi dos amigos mais leais, abnegados e sinceros que já tive na vida.
Na ocasião em que escrevi esse texto, eu ainda não havia sofrido a perda mais dolorosa e irreparável de todas (felizmente poucas) que tive: a do meu pai. É verdade que ele continua vivo, vivíssimo, em mim, em cada célula do meu corpo, em cada sensação, idéia e emoção que eu tenho ou venha a ter. Sinto, porém, uma falta imensa dos seus conselhos, do seu bom-senso, da sua confortadora presença e, sobretudo, da sua incomparável amizade.
É com prazer, pois, que partilho com o amigo leitor este texto que, reitero, sequer sei como caracterizar, se como crônica, se como poesia ou como sei lá o quê:
“A casa está toda arrumada para um evento insólito e especial. Até as paredes parecem sentir, expectantes, a antecipação de um momento ímpar, inesquecível.
A mesa está posta para receber tantos e ilustres convidados. Néctares inestimáveis, inacessíveis aos mortais, enchem terrinas de porcelana. Aos que optarem pelo exótico, há generosas porções de ambrosia, procedente, direta, do Olimpo. Os comedidos, de postura espartana, poderão apreciar o milagroso maná que alimentou Israel no Sinai. E o vinho?Especial para a ocasião! É da safra original, que embriagou o patriarca Noé, após deixar a arca, tão logo baixaram as águas do dilúvio.
Ao canto, um pinheirinho, garboso, enfeitado com bolas coloridas de vidro elaboradas por artesãos de Sidon. Dezenas de estrelinhas douradas pisca-piscam mistérios insondáveis, ao comando da estrela de Belém, que encima a árvore (símbolo da vida).
E os convidados chegam, em silêncio, um a um, posto que radiantes, com sorrisos avassaladores e estranhos embrulhos sob o braço... Meus avós... Tio Pedro e tio João... O Maurício de Moraes, com olhar brejeiro... O Mauro Sampaio, com sua lira dourada, com sete cordas de crina... A Célia Búrigo, recitando versos e beijando, carinhosa, os convidados...
E eles chegam e se acomodam ao redor da magnífica mesa posta. Antes, trocam presentes comigo. O avô Hilarion brinda-me com um álbum dos seus feitos mais notáveis, o que me comove, às lágrimas. O avô Simão, com seu gorro de astracã, e um pesado casaco, vermelho e branco, que o faz parecer Papai Noel, me entrega rico samovar de vidro e uma insólita pomba de cristal.
Tio Pedro, compenetrado, me dá um caderno amarfanhado, com poemas, ricos versos, que compôs na juventude. As avós, Rosa e Matrena, dão flores, suaves e imperecíveis flores: um lírio branco e a rosa de Sharon.
E recebo presentes... Outros presentes... Tio João oferta-me uma antologia rara com poesias de Wladimir Mayakowski. Maurício traz-me raras crônicas da sua infância em Minas Gerais, emolduradas num quadro, com molduras de ouro.
Mauro presenteia-me com os originais do seu livro “No silêncio do espelho”. E Célia? Célia oferta, generosa, seu último verso (o que não escreveu). Retribuo, a todos, com presente-padrão: a fidelidade da perpétua lembrança.
A noite avança. Lá fora, a lua cheia ilumina a casa, o bairro, o mundo, enquanto meu pensamento vagueia numa estrada, luminosa, de estrelas. Ao longe, o som sereno de um sino embala sonhos e as nossas conversas, num ritmo de recordação e saudades.
Finda a ceia, os convidados se vão, um a um, Mas com solenes promessas de voltar... Meus avós... Tio Pedro... Tio João... O Maurício de Moraes, com olhar brejeiro... O Mauro Sampaio, com sua lira... A Célia Búrigo, recitando versos...
Seguem, alegres, pisando estrelas, com seus pés incorruptíveis, para o seu novo mundo: o das lembranças... O relógio marca duas da madrugada... Estou só... A casa? Vazia! E a noite? É de Natal!”

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