Pedro J. Bondaczuk
(CONTO)
Chovia copiosamente naquele meio de tarde de meados de janeiro de 1950. Era um daqueles tantos temporais característicos do verão na Grande São Paulo, com muitos raios e trovões, precedidos de forte ventania. Certamente, nas baixadas, haveria enchentes, com perdas, parciais ou totais, dos parcos bens dos moradores dessas áreas impróprias para moradias, drama que se repetia, de ano para ano, sem que qualquer providência fosse tomada.
As ruas daquele novo bairro de São Caetano do Sul – recém-emancipado, na área conhecida como ABC paulista, por causa das letras iniciais das três cidades que a compunham, Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul –, de terra vermelha e ainda sem guias, tomadas, em vários trechos, pelo mato, lembravam, em seus traçados irregulares, mais uma trilha, uma espécie de picada natural do que, propriamente, vias públicas.
E, como seria de se esperar, estavam encharcadas, barrentas e quase intransitáveis para veículos como automóveis ou caminhões. Na verdade, poucos deles trafegavam por ali. O trânsito maior era de carroças: do sorveteiro, do verdureiro, do carvoeiro etc. E de bicicletas, que estavam virando mania no bairro.
De vez em quando, a Prefeitura mandava um trator aplainar essas ruas e alguns caminhões de pedregulho eram despejados então. Não tardava muito, porém, para o mato voltar a crescer e quase cobrir, por completo, muitas delas. Havia promessas de asfalto, a principal reivindicação dos moradores, todavia sem qualquer previsão de data para o início dos trabalhos.
O ponto de ônibus mais próximo ficava a dois quarteirões, numa das poucas vias públicas já calçadas da vila. O calçamento, coisa bastante recente, comemorado como grande melhoria pelos moradores do bairro, era de paralelepípedos que, quando molhados, ficavam mais lisos do que sabão.
A vila surgira há pouco tempo, em decorrência do sucesso de um loteamento na área. Por se tratar de um local privilegiado, no alto de uma colina, os terrenos foram todos vendidos rapidamente. Ademais, as prestações eram baratas, embora a se perder de vista, coisa de cinco anos ou mais para pagar.
Os moradores eram todos operários, procedentes de várias partes do País, atraídos pela oferta de empregos de grandes indústrias que haviam se instalado no município antes mesmo da sua emancipação, como a Matarazzo, a Colombina e principalmente a General Motors, entre outras tantas. O mercado de trabalho estava propício, também, para prestadores de serviço autônomos, como pedreiros, poceiros (cavadores de poços artesianos, já que água encanada ainda não havia na maior parte do município), carpinteiros, serralheiros etc.
São Caetano crescia a olhos vistos, expandindo-se para todos os lados. Tinha a vantagem, além das indústrias que ali se instalavam a quase todos os dias, da sua localização, vizinha que era da industrializada Santo André e, principalmente, de São Paulo que, como dizia um slogan muito em voga na ocasião, “não podia parar”. E não parava.
Da noite para o dia, no novo loteamento, começaram a “brotar” casas e mais casas por toda a parte, algumas ainda inacabadas, embora já habitadas por seus proprietários e outras, até, com padrão de razoável para bom, com acabamento bastante refinado.
Nesta altura, havia poucos terrenos ainda vazios. E, na maioria destes, já existiam pilhas de tijolos, além de montes de pedras, areias e até telhas, indicando que logo novas moradias seriam construídas. Muitas construções estavam em andamento por toda a parte. Algumas, ainda estavam nos alicerces. Outras, já tinham as paredes erguidas e estavam na fase de estuques (as lajes de concreto ainda não eram muito comuns na época), antes da construção dos telhados.
Há questão de seis meses, uma linha de ônibus fora criada, para transportar os moradores até o Centro e vice-versa. Quem quisesse ir para São Paulo, ou para Santo André, teria que caminhar dez quarteirões, até a Avenida Goiás, uma das mais extensas do município, que praticamente o cortava de fora a fora.
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Paulinho tremia de frio, mas arfava, de satisfação, com a água fria caindo-lhe sobre a cabeça, entrando-lhe pelos olhos, nariz e ouvidos e escorrendo por dentro da gola da camisa, encharcada, como a calça de flanela com elástico na cintura que vestia. Estava descalço e mergulhava os pés com satisfação no barro mole, que lhe dava uma gostosa sensação de maciez. Nunca se sentira tão livre, tão solto, tão eufórico.
A chuva lavava-lhe o corpo franzino e a alma entristecida. As ruas estavam vazias naquela hora. Nenhuma criança se aventurara a brincar na enxurrada. Os pais, certamente, não deixavam. Só Paulinho estava ali, fazendo o que sempre tivera vontade, mas que nunca antes teve coragem de fazer. Sentia-se, pois, mais corajoso do que os outros meninos, que não ousavam desafiar as ordens paternas.
Não pensava em nada. Só gozava a satisfação da água caindo sobre o seu corpo mirrado e deslizando pelo rosto, como que numa suave carícia, dessas que raramente recebia de quem quer que fosse. Gostaria que esse momento de euforia e liberdade nunca terminasse, que fosse eterno, que durasse dias, semanas, meses, anos, a vida toda até.
O engraçado é que Paulinho morria de medo de chuva. Isto, quando tinha que ficar dentro de casa. Sentindo-a cair, porém, no corpo, era diferente. Sentia-se invulnerável, forte e poderoso. Não gostava, especialmente, de vento. Quando ventava bastante, às vezes, se escondia dentro do guarda-roupa. Temia que a casa desmoronasse e que, dessa forma, ficasse soterrado.
Fechava os olhos sempre que algum raio riscava os céus, traçando caprichosos zigues-zagues de luz. O som dos trovões apavorava-o. Tapava os ouvidos para não ouvir seu barulho. Às vezes, porém, eles eram tão fortes, que chegavam a fazer tremer o caixilho da janela do seu quarto, com os vidros fazendo um tilintar que lhe parecia sinistro e ameaçador.
Ifigênia lhe dissera, certa vez, que os trovões eram o barulho de móveis sendo arrastados por São Pedro quando lavava o céu. Não acreditara muito nisso. Mas, às vezes, ficava em dúvida. Até poderia ser. Afinal, Ifigênia era seu anjo da guarda e não iria mentir para ele. Ponderava, porém: “se há tantos móveis no céu, como eles não caíam? O espaço não era firme. Era fofo, como as nuvens de algodão”. Sim, como as que via em certos dias de sol, parcialmente nublados.
Se temia a chuva, quando dentro de casa, no meio dela não sentia qualquer temor. Olhava a sucessão de raios no céu e se divertia com eles. Pareciam, em tamanho bastante ampliado, aquelas luzes que vira na árvore de Natal na casa do primo Roberto. Os trovões lembravam os bumbos das fanfarras do desfile de Primeiro de Maio que havia visto no centro da cidade no ano passado. E a água? Que delícia, embora um pouco fria!.
Para tornar a brincadeira ainda melhor, subiu a rua, ao lado da sua casa, uma ladeira, contudo não muito íngreme, e se deixou levar pela enxurrada. Parecia um rio, com corredeiras velozes, embora bastante raso. Era miniatura daquele da sua terra natal. Só que aquele era muito, mas muito mais largo. Quase não dava para enxergar a outra margem. E, certamente, era fundo. Ouvira seu pai contar aos amigos que, certa ocasião, um grupo de argentinos havia se afogado nesse rio, quando seu barco virou, bem no meio. E nenhum deles sabia nadar.
Mas ali não havia perigo de afogamento. Desceu uma vez pela enxurrada e achou uma delícia. Sentiu, todavia, uma dorzinha na parte inferior da perna, uma espécie de ardência. Não iria chorar. “Homem não chora”, costumava dizer o pai. E tio Francisco havia dito a mesma coisa quando Paulinho caiu de uma cadeira, quando brincava de incliná-la para trás.
Desta vez, fora arranhado por algum caco de vidro ou pedaço de telha, não deu para perceber exatamente o que foi. Nada sério. Sequer chegou a sangrar. Repetiu a dose de descer pela enxurrada mais uma, duas, três, oito vezes. Cada vez que chegava lá embaixo, se arrastava, de novo, para o alto da rua, vencendo a força das águas barrentas, de uma coloração entre o vermelho escuro e o marrom.
Numa das subidas, escorregou e desceu rua abaixo, meio que descontrolado, quando ainda estava na metade dela. Chegou a se engasgar. Tossiu bastante e cuspiu aquela água suja e barrenta que lhe havia entrado na boca. A brincadeira só parou com a chegada de Ifigênia que, sem nenhuma censura ou reprimenda, com o carinho de quem compreende tudo, até as peraltices de um menino levado, tomou-o no colo, sem se importar em sujar a roupa de barro, e levou-o para dentro de casa.
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Paulinho era uma criança de notável beleza. Não havia quem, ao vê-lo, não reparasse nos seus traços suaves, em seu olhar inteligente, em seu queixo bem torneado e que sugeria uma pessoa determinada, senão teimosa, e em seu nariz bem-proporcionado, como o dos nobres romanos, que apareciam nas estátuas da Roma antiga.
Parecia um anjo, desses estilizados, de gravura, embora não tivesse asas e não fosse rechonchudo, como os anjinhos de Michelangelo, de Rafael ou mesmo dos mostrados nos desenhos de Gustave Doré. Era loirinho, loirinho, com os cabelos, rapados, mas com uma franjinha na testa, até brilhantes, como se emitissem luz principalmente após o banho.
Paulinho tinha os olhos azuis, de uma coloração clara, uniforme, profunda, que pareciam sorrir. Não havia quem não os admirasse e não expressasse, espontaneamente, essa admiração. Denotavam inteligência. Eram brilhantes, vivos, sagazes e inquiridores. Quando o menino sorria, o mundo ao redor, parecia se iluminar. Formavam-se duas suaves covinhas, em cada lado dos lábios, que eram um encanto. A pele era clarinha, sem nenhuma mancha ou senão, como pêssegos maduros e sedosos.
Quando recebia visitas, vivia sendo apertado e, às vezes, até mordido, pelas tias, que cobriam seu rosto de beijos, não resistindo aos seus encantos. Paulinho reclamava disso, pois às vezes esses afagos chegavam a doer. E ficava com o rosto babado, melado de saliva, o que lhe produzia sensação desagradável, de que não gostava.
Quem sabia, de fato, fazer-lhe carinho – e dela nunca os dispensava, mas sempre queria mais, e mais e mais – era Ifigênia. Seus beijos eram suaves, macios, secos e davam arrepios de prazer no garotinho. Suas mãos, quando corriam-lhe pelo rosto, pelos ombros, pelas costas, eram mornas, como se feitas de veludo, e lhe transmitiam sensação de segurança, de afeto, de cumplicidade e de amor.
Sentadinho, quieto (o que era muito raro), Paulinho era a figura perfeita de um anjo. Mas havia um senão. O menino era paralítico. Não podia andar. Fora acometido de poliomielite há coisa de três anos e, dessa forma, metade da sua infância fora uma romaria por consultórios médicos, hospitais, mesas de cirurgia, salas de fisioterapia etc.
Pequenino, ainda, tivera que conviver com a dor. E não só com ela – com a qual, até, já estava habituado – mas, principalmente, com a insegurança e com a frustração de não ser como as outras crianças, de não poder andar, correr, passear de bicicleta, jogar futebol e, enfim, fazer tudo o que um gurizinho normal, da sua idade, gosta, pode e até deve.
Sentia-se culpado pela sua doença, por ver os pais sempre tão tristes e amargos, lamentando seu destino. Era forte, poderoso, agudo, avassalador seu sentimento de rejeição. Testemunhara, certa noite, a mãe, desesperada, chorando, dizer ao seu pai:
- Cadê meu filho?! Quero meu filho! Meu menininho morreu!
Embora pequeno, essas palavras calaram fundo em sua mente. Compreendeu perfeitamente seu sentido, embora nunca confessasse isso a ninguém, nem mesmo a Ifigênia. Não era dele que os pais gostavam. Era daquele garotinho de antes da febre, da qual acordou, semanas depois, completamente paralisado. Só que não havia morrido, como a mãe dissera. Tinha certeza que não. Pois lá estava ele, consciente de tudo, com as lembranças intactas, embora com o corpo ferido, dilacerado, inerte, sem responder às vontades do cérebro.
Paulinho locomovia-se se arrastando pelo chão. Parecia não uma cobra, como já lhe haviam dito, mas um lagarto, ágil e matreiro. Cruzava as perninhas – que se atrofiavam, mais e mais, à medida que o tempo passava – e, apoiando-se nas duas mãos, impulsionava o corpo e se deslocava com velocidade espantosa. Chegava a apostar corrida com os outros meninos e, às vezes, até ganhava.
Não havia, claro, calça que chegasse. Mal sua mãe costurava uma nova, não tardava para que logo ficasse toda puída no traseiro, por causa do atrito causado pelo freqüente contato com o chão. Vivia apanhando por isso. Mas o pai só lhe batera uma única vez. Foi quando havia ido a uns dois quarteirões de distância de casa, com o risco de ser atropelado ou algo assim. Paulinho não somente parecia, mas era, como se vê, de fato, um anjo... ferido.
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No esplendor dos seus dezenove anos, recém-completados, Ifigênia era belíssima, dessa beleza irradiante, digna de ser imortalizada, por exemplo, por um Leonardo da Vinci, um Michelangelo ou outro mestre qualquer. Ou, quem sabe, em uma escultura, que lhe caberia ainda melhor, dada a perfeição das suas formas. Quando passava, não havia quem não voltasse a cabeça para olhar aquela mulher de traços marcantes, cujo rosto denotava serenidade e bondade.
Pele clara, cabelos castanhos, sedosos e brilhantes, com comprimento que ia até os ombros, seu rosto chamava a atenção em especial pelos olhos: verdes, profundos, que irradiavam intensa luz interior e pareciam sorrir quando se fixavam no interlocutor. Tinha lábios grossos, carnudos, posto que delicados e sensuais, vermelhos, que prescindiam de batom para se destacarem.
Seu rosto redondo, com orelhas bem desenhadas e proporcionais, completava um conjunto em que o mais exigente esteta não conseguiria ver o menor defeito. Dispensava maquiagem, embora fizesse uso discreto dela, o que realçava, ainda mais, sua aparência de tirar o fôlego. Era impossível vê-la sem, de imediato, se apaixonar por ela.
Ifigênia tinha estatura mediana, de 1,65 m e pesava 59 quilos, sem nenhuma gordura. Busto, cintura, quadris, braços e pernas eram rigorosamente proporcionais. Venceria, com os pés nas costas, qualquer concurso de beleza.
Os seios eram daquele formato que os poetas consideram ideal e perfeito: como duas taças de cristal. Por freqüentar o clube da General Motors, empresa em que trabalhava como secretária bilingue, notadamente as piscinas, tinha a pele bronzeada, com coloração uniforme e natural.
Ifigênia namorava, há já dois anos, um promissor estudante de Engenharia, com o qual pretendia se casar, tão logo se formasse. Propusera-se a subir ao altar virgem, já que era muito religiosa e recatada. O namoro era, digamos, bastante comportado, nunca passando de um ou outro beijo um pouco mais ardente que, a bem da verdade, era coisa rara. Houve ocasião em que o namorado tentara carícias mais ousadas (pudera!), mas, invariavelmente, era contido nessas investidas pela moça que, embora tentada a permitir e até a estimular avanços, sabia se controlar. “Depois de casados, haveria tempo de sobra para o sexo”, raciocinava.
Mas a grande paixão de Ifigênia não era o namorado, nem o trabalho e nem o que quer que fosse. Era Paulinho. Desde que conhecera o menino, não o tirava da cabeça. Ia, duas vezes ao dia – pela manhã, antes de ir para a GM e à tarde, quando saía do serviço – à sua casa, para saber como estava, se havia comido, se não fizera bagunça, se não tinha se machucado etc. Isto, durante a semana. Aos sábados e domingos passava o dia todo com o seu xodó e não trocava esses momentos por nada no mundo.
Claro que esse apego de Ifigênia por Paulinho não era compreendido por ninguém. A moça vivia ouvindo críticas e mais críticas: dos seus pais, dos do menino, do namorado, de todos que a conheciam, enfim. “Por que essa gente não se mete com a própria vida”, desabafava, às vezes. Contudo, pouco se importava com as opiniões alheias, pelo menos neste assunto, que lhe era tabu.
A companhia do “seu” garotinho mais do que compensava estas e outras chateações. Os pais de Paulinho eram muito orgulhosos e não admitiam caridade de ninguém. Ifigênia teve que usar todo seu poder de argumentação para convencê-los que não fazia o que fazia por piedade, mas por gosto pessoal. Ainda assim, estes lhe disseram que pagariam “por seu trabalho”. A moça ficou irritada com isso, mas guardou para si a irritação. Desconversou, deu um sorriso amarelo e mudou de assunto. Não queria correr o risco de ser proibida de ver o seu menino. “Deus me livre!”, pensou, apavorada por essa perspectiva.
Seus pais, depois que tiveram certeza de onde ela ia aos sábados e domingos, quando se convenceram que não fazia nada de errado, mas apenas satisfazia o que entendiam como mero “capricho”, nunca mais tocaram no assunto.
Quanto ao namorado... Quase romperam o namoro. Ifigênia achava incrível que ele tivesse ciúmes de Paulinho. Em vez de se sentir lisonjeada com isso, como qualquer moça se sentiria, ficou foi furiosa. “Onde já se viu!”, esbravejou quando este fez uma observação a respeito, que considerou ofensiva e desrespeitosa.
Desde essa ocasião, o namoro esfriou e já beirava à ruptura. O incidente ocorreu numa noite de domingo – único dia da semana em que agora os dois ficavam juntos – e começou com uma observação de passagem, feita por André (este era o nome do namorado).
- Compreendo o que está se passando com você. É seu instinto materno que aflora. Quando nos casarmos, teremos um filho melhor do que Paulinho – disse, achando que convenceria Ifigênia.
- Melhor?! Melhor?! Cala essa boca! – respondeu a moça, furiosa, com olhar hostil, ameaçando, até mesmo, avançar sobre o rapaz.
Sem atinar para o fato, André, inadvertidamente, havia tocado num ponto sensível da namorada.
- Está bom, está bom, não melhor, mas igual ao Paulinho! Está bem assim?! – tentou remediar.
- Cala a boca! Nunca mais toque nesse assunto! Se voltar a falar disso, estará tudo acabado! Acabado, ouviu bem?! – respondeu, trêmula, pálida e ofegante, pondo fim, abruptamente, à conversa.
Ifigênia não queria filho “melhor” do que seu menino. Ademais, considerava isso impossível. Não desejava nem mesmo alguém que fosse “igual” a ele. Queria Paulinho, só ele, do jeitinho que era, com seu defeito físico, sua vulnerabilidade e seu olhar triste e carente! Ninguém mais e nem menos.
Claro que sabia que isso era impossível. Mas no fundo, bem no fundo do seu coração, nutria essa esperança louca. Chegou, até, a pensar bobagem, como, por exemplo, em seqüestrar seu menino e levá-lo para bem longe dali, para dar-lhe todo o carinho e afeto de que precisava e que não tinha, por parte dos pais. Ifigênia não somente parecia, mas era, como se vê, um anjo... ferido pela impossibilidade de realizar seu maior desejo.
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Ifigênia, sem nenhuma censura ou reprimenda, com o carinho de quem compreende tudo, até as peraltices de um menino levado, tomou Paulinho no colo, sem se importar em sujar a roupa de barro, e tirou-o da chuva, levando-o para dentro de casa.
O menino apenas abraçou-a com força e deu vários beijinhos em seu rosto. Não disse nada do porque daquela aventura e nem precisava. Ambos entendiam-se só pelo olhar. Era um caso raro, raríssimo, de amor entre duas pessoas, com diferença de idade tão grande. Que o pequeno não soubesse explicar o que e por que sentia, era compreensível. Difícil de entender, todavia, era o sentimento da moça, total, absoluto, irrestrito e avassalador. Era um caso que nem o mais imaginativo dos ficcionistas conseguiria pensar. Como se vê, mais uma vez a realidade dava um banho de criatividade na imaginação.
A primeira providência de Ifigênia foi buscar a bacia em que Paulinho tomava banho, que estava no quintal. Depois, aqueceu um latão de cinco litros, de água, no tosco fogão a carvão da casa. Com paciência infinita, despiu, delicadamente, o menino e lavou meticulosamente seu corpinho franzino e frágil, para tirar toda aquela lama que havia se impregnado na pele e que lhe dava uma aparência engraçada, mas insolitamente bela, de uma coloração vermelho-amarronzada.
- Feche os olhos, Paulinho – disse Ifigênia, ao ensaboar-lhe a cabeça.
O menino obedeceu. A moça ensaboou-lhe, delicadamente, os cabelos, massageando-os com infinito carinho. Depois, com um canecão de água quentinha, enxaguou-os meticulosamente. Nesse momento, foi surpreendida por uma declaração que a comoveu e abalou:
- Ifi, gostaria que você fosse minha mãe!
Ifigênia quase caiu de costas. Foram as palavras mais bonitas que ouviu em toda a vida. Sabia do apego do menino, mas não julgava que chegasse a esse ponto. Lágrimas de felicidade brotaram-lhe dos olhos verdes e expressivos, que ficaram ainda mais belos, face a essa expressão de emoção.
- Já sou sua mãe, bobinho. Mãe postiça.
- Postiça não vale. Queria que fosse de verdade. Ih, Ifi, você está chorando?
- Não, não estou. Quando ensaboei sua cabeça, espirrou sabão nos meus olhos. E se estivesse? Você se esquece que sou mulher? Mulher chora, fique sabendo.
- Eu sei! Eu não choro.
- Pudera! Só faltava essa! Não fica bem um marmanjo, desse tamanho, chorar!
Ifigênia sabia o quanto o seu menino era estóico. Nos últimos três anos, passara por sofrimentos que abateriam qualquer adulto por mais forte e resistente que fosse. Fora uma sucessão de internações na Santa Casa de São Paulo, de dolorosas cirurgias, de muita fisioterapia e massagens, numa tentativa, inútil, de fazê-lo voltar a andar. E Paulinho passara por tudo isso como se fossem coisas normais, sem manhas, sem queixas, com uma coragem de fazer inveja a endurecidos e brutais lutadores de boxe, acostumados à dor, dada a natureza da sua atividade. Apenas seus olhinhos azuis, como o céu em dia de sol e luz, refletiam tamanho sofrimento. E, assim mesmo, somente um bom observador seria capaz de perceber.
- Nossa, que arranhão feio é este na sua coxa direita?! Vamos já fazer um curativo!
- Arranhão?! Gozado, não senti nada! – mentiu Paulinho, com um sorriso maroto.
Ifigênia enrolou-o numa toalha felpuda e levou-o para o quarto, para vestir-lhe o pijama limpo e bem passado. Esse era o momento de intimidade que mais gostava. Era pretexto para abraçar seu menino, com delicadeza infinita e pleno amor e sentir seu corpinho frágil e já tão judiado junto ao seu. Antes de voltar para a cozinha, deu um beijinho na bochecha do garoto, piscando-lhe, com cumplicidade.
A seguir, a moça preparou suculenta canja para Paulinho, arrematada com generoso copo de Toddy, bem quente. O garoto comeu e bebeu com gosto e já não sentia mais o frio, que fizera todo seu corpo tremer e seu queixo sacudir-se como se feito de gelatina, depois que Ifigênia o tirara da chuva. A sensação que tinha, agora, era de conforto, carinho e segurança, que só sua “mãe postiça” sabia lhe proporcionar, e na medida exata que necessitava, nem mais e nem menos.
- Ifi, conta uma história – pediu com aquele seu irresistível jeitinho meigo, capaz de amolecer o mais empedernido coração.
- Claro! Qual você quer ouvir?
- A de Joãozinho e Mariazinha.
- Outra vez?!
Ifigênia, sempre que contava alguma história, modificava detalhes e, não raro, até mesmo o desfecho. De sorte que a mesma narrativa nunca era, de fato, a mesma. O menino se divertia com essa criatividade e observava isso, rindo. E os dois se divertiam a valer, cúmplices que eram, capazes de se entender sem que sequer fosse preciso falar nada, somente por gestos, olhares, toques de mão e enfáticos sorrisos.
Não tardou para Paulinho dormir. Ifigênia deu-lhe um beijo suave e amoroso na testa, apenas um leve roçar de lábios, como se passasse uma pétala de rosa no menino e foi lavar sua roupa enlameada, para apagar todos os vestígios da sua traquinagem e assim evitar que levasse uma surra quando os pais voltassem do trabalho. Só iria embora depois que esta estivesse seca e bem passada.
Outra pessoa qualquer teria censurado Paulinho (“para o seu bem”, argumentaria) pelo que fizera. Dir-lhe-ia, provavelmente em tom de ameaça, que nunca mais deveria repetir aquilo. Talvez até lhe desse uma ou duas palmadas “corretivas”. Qualquer pessoa, com certeza, agiria assim. Não Ifigênia.
Ela conhecia seu menino muito bem e sabia da sua ânsia de liberdade. Tinha certeza que nunca mais Paulinho sairia na chuva e nem se arriscaria a sei lá o quê. O menino era inteligente, sagaz e, sobretudo, teimoso. “Marca de uma personalidade forte”, pensava. Ademais, aquela aventura, com certeza, o acompanharia vida afora, como uma lembrança valiosa, dessas que nos consolam na velhice.
Seca e passada a roupa, Ifigênia foi, pé ante pé, até a cama do garotinho e ficou um tempão contemplando-o, a dormir. O menino sorria. Certamente estava tendo um sonho agradável, diferente da vida real, em que sofria com a perversa doença que lhe deixara marcas tão severas, que o acompanhariam para sempre, e com o abandono a que era relegado, por causa das circunstâncias.
A moça beijou, novamente, seu menino e foi embora. Teria que percorrer, a pé, na noite escura e chuvosa, um longo trecho, até o ponto de ônibus, que a levaria ao seu bairro. Apesar da nova vila ser relativamente segura – nunca ninguém ouvira falar de assaltos, estupros ou outro tipo de violência – não era muito prudente uma moça andar sozinha, naqueles ermos e àquela hora.
Os pais de Paulinho eram pessoas boníssimas, mas pobres, inexperientes (eram muito jovens) e, sobretudo, orgulhosas. Não admitiam ajuda de ninguém, que interpretavam (quem tentasse ajudar) como intrometidos, que os queriam humilhar com “caridade”, o que lhes era a suprema ofensa. Precisavam garantir o sustento e trabalhavam longe, em São Paulo. Tinham que tomar três conduções para ir e outras três para voltar do trabalho. O tempo que poderiam dedicar ao menino, portanto, gastavam nesses deslocamentos.
Ademais, tinham planos bastante ambiciosos para o futuro, como o de construir a nova casa, no vasto terreno que haviam adquirido com prestações a se perderem de vista, rigorosamente em dia, em cujos fundos estavam os três cômodos em que moravam atualmente. Além disso, planejavam prover a melhor assistência médica e educação que o dinheiro pudesse comprar ao filho e, se possível, até financiar sua cura. Enfim... queriam vencer na grande cidade.
Tudo isso, porém, eram planos para o futuro. No presente... a realidade do garoto era sombria e até perigosa. Era de solidão e abandono. O dinheiro que ganhavam não dava para contratar alguém que cuidasse dele. Ifigênia, porém, fazia isso – com a disponibilidade de tempo que tinha, sacrificando namoro, descanso, lazer – como ninguém faria igual. Mas não considerava isso nenhum sacrifício, mas privilégio, oportunidade que a vida lhe dava de amar alguém de verdade. E fazia tudo de graça! Não, minto: tinha por pagamento o afeto de Paulinho, o que valia mais, muito mais, infinitamente mais do que qualquer dinheiro, por maior que fosse a quantia.
Tratava-se da associação ideal de dois anjos... feridos. Um, na própria carne, com as marcas de uma doença incurável que o acompanhariam pela vida afora, o tornando alvo de disfarçado preconceito e de fingida piedade alheia. Outro, ferido na alma, por saber que, mais dia menos dia, teria que se separar de alguém a quem amava sem restrições e nem reservas, com amor espontâneo e absoluto que raros têm a oportunidade de sentir algum dia.
(CONTO)
Chovia copiosamente naquele meio de tarde de meados de janeiro de 1950. Era um daqueles tantos temporais característicos do verão na Grande São Paulo, com muitos raios e trovões, precedidos de forte ventania. Certamente, nas baixadas, haveria enchentes, com perdas, parciais ou totais, dos parcos bens dos moradores dessas áreas impróprias para moradias, drama que se repetia, de ano para ano, sem que qualquer providência fosse tomada.
As ruas daquele novo bairro de São Caetano do Sul – recém-emancipado, na área conhecida como ABC paulista, por causa das letras iniciais das três cidades que a compunham, Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul –, de terra vermelha e ainda sem guias, tomadas, em vários trechos, pelo mato, lembravam, em seus traçados irregulares, mais uma trilha, uma espécie de picada natural do que, propriamente, vias públicas.
E, como seria de se esperar, estavam encharcadas, barrentas e quase intransitáveis para veículos como automóveis ou caminhões. Na verdade, poucos deles trafegavam por ali. O trânsito maior era de carroças: do sorveteiro, do verdureiro, do carvoeiro etc. E de bicicletas, que estavam virando mania no bairro.
De vez em quando, a Prefeitura mandava um trator aplainar essas ruas e alguns caminhões de pedregulho eram despejados então. Não tardava muito, porém, para o mato voltar a crescer e quase cobrir, por completo, muitas delas. Havia promessas de asfalto, a principal reivindicação dos moradores, todavia sem qualquer previsão de data para o início dos trabalhos.
O ponto de ônibus mais próximo ficava a dois quarteirões, numa das poucas vias públicas já calçadas da vila. O calçamento, coisa bastante recente, comemorado como grande melhoria pelos moradores do bairro, era de paralelepípedos que, quando molhados, ficavam mais lisos do que sabão.
A vila surgira há pouco tempo, em decorrência do sucesso de um loteamento na área. Por se tratar de um local privilegiado, no alto de uma colina, os terrenos foram todos vendidos rapidamente. Ademais, as prestações eram baratas, embora a se perder de vista, coisa de cinco anos ou mais para pagar.
Os moradores eram todos operários, procedentes de várias partes do País, atraídos pela oferta de empregos de grandes indústrias que haviam se instalado no município antes mesmo da sua emancipação, como a Matarazzo, a Colombina e principalmente a General Motors, entre outras tantas. O mercado de trabalho estava propício, também, para prestadores de serviço autônomos, como pedreiros, poceiros (cavadores de poços artesianos, já que água encanada ainda não havia na maior parte do município), carpinteiros, serralheiros etc.
São Caetano crescia a olhos vistos, expandindo-se para todos os lados. Tinha a vantagem, além das indústrias que ali se instalavam a quase todos os dias, da sua localização, vizinha que era da industrializada Santo André e, principalmente, de São Paulo que, como dizia um slogan muito em voga na ocasião, “não podia parar”. E não parava.
Da noite para o dia, no novo loteamento, começaram a “brotar” casas e mais casas por toda a parte, algumas ainda inacabadas, embora já habitadas por seus proprietários e outras, até, com padrão de razoável para bom, com acabamento bastante refinado.
Nesta altura, havia poucos terrenos ainda vazios. E, na maioria destes, já existiam pilhas de tijolos, além de montes de pedras, areias e até telhas, indicando que logo novas moradias seriam construídas. Muitas construções estavam em andamento por toda a parte. Algumas, ainda estavam nos alicerces. Outras, já tinham as paredes erguidas e estavam na fase de estuques (as lajes de concreto ainda não eram muito comuns na época), antes da construção dos telhados.
Há questão de seis meses, uma linha de ônibus fora criada, para transportar os moradores até o Centro e vice-versa. Quem quisesse ir para São Paulo, ou para Santo André, teria que caminhar dez quarteirões, até a Avenida Goiás, uma das mais extensas do município, que praticamente o cortava de fora a fora.
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Paulinho tremia de frio, mas arfava, de satisfação, com a água fria caindo-lhe sobre a cabeça, entrando-lhe pelos olhos, nariz e ouvidos e escorrendo por dentro da gola da camisa, encharcada, como a calça de flanela com elástico na cintura que vestia. Estava descalço e mergulhava os pés com satisfação no barro mole, que lhe dava uma gostosa sensação de maciez. Nunca se sentira tão livre, tão solto, tão eufórico.
A chuva lavava-lhe o corpo franzino e a alma entristecida. As ruas estavam vazias naquela hora. Nenhuma criança se aventurara a brincar na enxurrada. Os pais, certamente, não deixavam. Só Paulinho estava ali, fazendo o que sempre tivera vontade, mas que nunca antes teve coragem de fazer. Sentia-se, pois, mais corajoso do que os outros meninos, que não ousavam desafiar as ordens paternas.
Não pensava em nada. Só gozava a satisfação da água caindo sobre o seu corpo mirrado e deslizando pelo rosto, como que numa suave carícia, dessas que raramente recebia de quem quer que fosse. Gostaria que esse momento de euforia e liberdade nunca terminasse, que fosse eterno, que durasse dias, semanas, meses, anos, a vida toda até.
O engraçado é que Paulinho morria de medo de chuva. Isto, quando tinha que ficar dentro de casa. Sentindo-a cair, porém, no corpo, era diferente. Sentia-se invulnerável, forte e poderoso. Não gostava, especialmente, de vento. Quando ventava bastante, às vezes, se escondia dentro do guarda-roupa. Temia que a casa desmoronasse e que, dessa forma, ficasse soterrado.
Fechava os olhos sempre que algum raio riscava os céus, traçando caprichosos zigues-zagues de luz. O som dos trovões apavorava-o. Tapava os ouvidos para não ouvir seu barulho. Às vezes, porém, eles eram tão fortes, que chegavam a fazer tremer o caixilho da janela do seu quarto, com os vidros fazendo um tilintar que lhe parecia sinistro e ameaçador.
Ifigênia lhe dissera, certa vez, que os trovões eram o barulho de móveis sendo arrastados por São Pedro quando lavava o céu. Não acreditara muito nisso. Mas, às vezes, ficava em dúvida. Até poderia ser. Afinal, Ifigênia era seu anjo da guarda e não iria mentir para ele. Ponderava, porém: “se há tantos móveis no céu, como eles não caíam? O espaço não era firme. Era fofo, como as nuvens de algodão”. Sim, como as que via em certos dias de sol, parcialmente nublados.
Se temia a chuva, quando dentro de casa, no meio dela não sentia qualquer temor. Olhava a sucessão de raios no céu e se divertia com eles. Pareciam, em tamanho bastante ampliado, aquelas luzes que vira na árvore de Natal na casa do primo Roberto. Os trovões lembravam os bumbos das fanfarras do desfile de Primeiro de Maio que havia visto no centro da cidade no ano passado. E a água? Que delícia, embora um pouco fria!.
Para tornar a brincadeira ainda melhor, subiu a rua, ao lado da sua casa, uma ladeira, contudo não muito íngreme, e se deixou levar pela enxurrada. Parecia um rio, com corredeiras velozes, embora bastante raso. Era miniatura daquele da sua terra natal. Só que aquele era muito, mas muito mais largo. Quase não dava para enxergar a outra margem. E, certamente, era fundo. Ouvira seu pai contar aos amigos que, certa ocasião, um grupo de argentinos havia se afogado nesse rio, quando seu barco virou, bem no meio. E nenhum deles sabia nadar.
Mas ali não havia perigo de afogamento. Desceu uma vez pela enxurrada e achou uma delícia. Sentiu, todavia, uma dorzinha na parte inferior da perna, uma espécie de ardência. Não iria chorar. “Homem não chora”, costumava dizer o pai. E tio Francisco havia dito a mesma coisa quando Paulinho caiu de uma cadeira, quando brincava de incliná-la para trás.
Desta vez, fora arranhado por algum caco de vidro ou pedaço de telha, não deu para perceber exatamente o que foi. Nada sério. Sequer chegou a sangrar. Repetiu a dose de descer pela enxurrada mais uma, duas, três, oito vezes. Cada vez que chegava lá embaixo, se arrastava, de novo, para o alto da rua, vencendo a força das águas barrentas, de uma coloração entre o vermelho escuro e o marrom.
Numa das subidas, escorregou e desceu rua abaixo, meio que descontrolado, quando ainda estava na metade dela. Chegou a se engasgar. Tossiu bastante e cuspiu aquela água suja e barrenta que lhe havia entrado na boca. A brincadeira só parou com a chegada de Ifigênia que, sem nenhuma censura ou reprimenda, com o carinho de quem compreende tudo, até as peraltices de um menino levado, tomou-o no colo, sem se importar em sujar a roupa de barro, e levou-o para dentro de casa.
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Paulinho era uma criança de notável beleza. Não havia quem, ao vê-lo, não reparasse nos seus traços suaves, em seu olhar inteligente, em seu queixo bem torneado e que sugeria uma pessoa determinada, senão teimosa, e em seu nariz bem-proporcionado, como o dos nobres romanos, que apareciam nas estátuas da Roma antiga.
Parecia um anjo, desses estilizados, de gravura, embora não tivesse asas e não fosse rechonchudo, como os anjinhos de Michelangelo, de Rafael ou mesmo dos mostrados nos desenhos de Gustave Doré. Era loirinho, loirinho, com os cabelos, rapados, mas com uma franjinha na testa, até brilhantes, como se emitissem luz principalmente após o banho.
Paulinho tinha os olhos azuis, de uma coloração clara, uniforme, profunda, que pareciam sorrir. Não havia quem não os admirasse e não expressasse, espontaneamente, essa admiração. Denotavam inteligência. Eram brilhantes, vivos, sagazes e inquiridores. Quando o menino sorria, o mundo ao redor, parecia se iluminar. Formavam-se duas suaves covinhas, em cada lado dos lábios, que eram um encanto. A pele era clarinha, sem nenhuma mancha ou senão, como pêssegos maduros e sedosos.
Quando recebia visitas, vivia sendo apertado e, às vezes, até mordido, pelas tias, que cobriam seu rosto de beijos, não resistindo aos seus encantos. Paulinho reclamava disso, pois às vezes esses afagos chegavam a doer. E ficava com o rosto babado, melado de saliva, o que lhe produzia sensação desagradável, de que não gostava.
Quem sabia, de fato, fazer-lhe carinho – e dela nunca os dispensava, mas sempre queria mais, e mais e mais – era Ifigênia. Seus beijos eram suaves, macios, secos e davam arrepios de prazer no garotinho. Suas mãos, quando corriam-lhe pelo rosto, pelos ombros, pelas costas, eram mornas, como se feitas de veludo, e lhe transmitiam sensação de segurança, de afeto, de cumplicidade e de amor.
Sentadinho, quieto (o que era muito raro), Paulinho era a figura perfeita de um anjo. Mas havia um senão. O menino era paralítico. Não podia andar. Fora acometido de poliomielite há coisa de três anos e, dessa forma, metade da sua infância fora uma romaria por consultórios médicos, hospitais, mesas de cirurgia, salas de fisioterapia etc.
Pequenino, ainda, tivera que conviver com a dor. E não só com ela – com a qual, até, já estava habituado – mas, principalmente, com a insegurança e com a frustração de não ser como as outras crianças, de não poder andar, correr, passear de bicicleta, jogar futebol e, enfim, fazer tudo o que um gurizinho normal, da sua idade, gosta, pode e até deve.
Sentia-se culpado pela sua doença, por ver os pais sempre tão tristes e amargos, lamentando seu destino. Era forte, poderoso, agudo, avassalador seu sentimento de rejeição. Testemunhara, certa noite, a mãe, desesperada, chorando, dizer ao seu pai:
- Cadê meu filho?! Quero meu filho! Meu menininho morreu!
Embora pequeno, essas palavras calaram fundo em sua mente. Compreendeu perfeitamente seu sentido, embora nunca confessasse isso a ninguém, nem mesmo a Ifigênia. Não era dele que os pais gostavam. Era daquele garotinho de antes da febre, da qual acordou, semanas depois, completamente paralisado. Só que não havia morrido, como a mãe dissera. Tinha certeza que não. Pois lá estava ele, consciente de tudo, com as lembranças intactas, embora com o corpo ferido, dilacerado, inerte, sem responder às vontades do cérebro.
Paulinho locomovia-se se arrastando pelo chão. Parecia não uma cobra, como já lhe haviam dito, mas um lagarto, ágil e matreiro. Cruzava as perninhas – que se atrofiavam, mais e mais, à medida que o tempo passava – e, apoiando-se nas duas mãos, impulsionava o corpo e se deslocava com velocidade espantosa. Chegava a apostar corrida com os outros meninos e, às vezes, até ganhava.
Não havia, claro, calça que chegasse. Mal sua mãe costurava uma nova, não tardava para que logo ficasse toda puída no traseiro, por causa do atrito causado pelo freqüente contato com o chão. Vivia apanhando por isso. Mas o pai só lhe batera uma única vez. Foi quando havia ido a uns dois quarteirões de distância de casa, com o risco de ser atropelado ou algo assim. Paulinho não somente parecia, mas era, como se vê, de fato, um anjo... ferido.
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No esplendor dos seus dezenove anos, recém-completados, Ifigênia era belíssima, dessa beleza irradiante, digna de ser imortalizada, por exemplo, por um Leonardo da Vinci, um Michelangelo ou outro mestre qualquer. Ou, quem sabe, em uma escultura, que lhe caberia ainda melhor, dada a perfeição das suas formas. Quando passava, não havia quem não voltasse a cabeça para olhar aquela mulher de traços marcantes, cujo rosto denotava serenidade e bondade.
Pele clara, cabelos castanhos, sedosos e brilhantes, com comprimento que ia até os ombros, seu rosto chamava a atenção em especial pelos olhos: verdes, profundos, que irradiavam intensa luz interior e pareciam sorrir quando se fixavam no interlocutor. Tinha lábios grossos, carnudos, posto que delicados e sensuais, vermelhos, que prescindiam de batom para se destacarem.
Seu rosto redondo, com orelhas bem desenhadas e proporcionais, completava um conjunto em que o mais exigente esteta não conseguiria ver o menor defeito. Dispensava maquiagem, embora fizesse uso discreto dela, o que realçava, ainda mais, sua aparência de tirar o fôlego. Era impossível vê-la sem, de imediato, se apaixonar por ela.
Ifigênia tinha estatura mediana, de 1,65 m e pesava 59 quilos, sem nenhuma gordura. Busto, cintura, quadris, braços e pernas eram rigorosamente proporcionais. Venceria, com os pés nas costas, qualquer concurso de beleza.
Os seios eram daquele formato que os poetas consideram ideal e perfeito: como duas taças de cristal. Por freqüentar o clube da General Motors, empresa em que trabalhava como secretária bilingue, notadamente as piscinas, tinha a pele bronzeada, com coloração uniforme e natural.
Ifigênia namorava, há já dois anos, um promissor estudante de Engenharia, com o qual pretendia se casar, tão logo se formasse. Propusera-se a subir ao altar virgem, já que era muito religiosa e recatada. O namoro era, digamos, bastante comportado, nunca passando de um ou outro beijo um pouco mais ardente que, a bem da verdade, era coisa rara. Houve ocasião em que o namorado tentara carícias mais ousadas (pudera!), mas, invariavelmente, era contido nessas investidas pela moça que, embora tentada a permitir e até a estimular avanços, sabia se controlar. “Depois de casados, haveria tempo de sobra para o sexo”, raciocinava.
Mas a grande paixão de Ifigênia não era o namorado, nem o trabalho e nem o que quer que fosse. Era Paulinho. Desde que conhecera o menino, não o tirava da cabeça. Ia, duas vezes ao dia – pela manhã, antes de ir para a GM e à tarde, quando saía do serviço – à sua casa, para saber como estava, se havia comido, se não fizera bagunça, se não tinha se machucado etc. Isto, durante a semana. Aos sábados e domingos passava o dia todo com o seu xodó e não trocava esses momentos por nada no mundo.
Claro que esse apego de Ifigênia por Paulinho não era compreendido por ninguém. A moça vivia ouvindo críticas e mais críticas: dos seus pais, dos do menino, do namorado, de todos que a conheciam, enfim. “Por que essa gente não se mete com a própria vida”, desabafava, às vezes. Contudo, pouco se importava com as opiniões alheias, pelo menos neste assunto, que lhe era tabu.
A companhia do “seu” garotinho mais do que compensava estas e outras chateações. Os pais de Paulinho eram muito orgulhosos e não admitiam caridade de ninguém. Ifigênia teve que usar todo seu poder de argumentação para convencê-los que não fazia o que fazia por piedade, mas por gosto pessoal. Ainda assim, estes lhe disseram que pagariam “por seu trabalho”. A moça ficou irritada com isso, mas guardou para si a irritação. Desconversou, deu um sorriso amarelo e mudou de assunto. Não queria correr o risco de ser proibida de ver o seu menino. “Deus me livre!”, pensou, apavorada por essa perspectiva.
Seus pais, depois que tiveram certeza de onde ela ia aos sábados e domingos, quando se convenceram que não fazia nada de errado, mas apenas satisfazia o que entendiam como mero “capricho”, nunca mais tocaram no assunto.
Quanto ao namorado... Quase romperam o namoro. Ifigênia achava incrível que ele tivesse ciúmes de Paulinho. Em vez de se sentir lisonjeada com isso, como qualquer moça se sentiria, ficou foi furiosa. “Onde já se viu!”, esbravejou quando este fez uma observação a respeito, que considerou ofensiva e desrespeitosa.
Desde essa ocasião, o namoro esfriou e já beirava à ruptura. O incidente ocorreu numa noite de domingo – único dia da semana em que agora os dois ficavam juntos – e começou com uma observação de passagem, feita por André (este era o nome do namorado).
- Compreendo o que está se passando com você. É seu instinto materno que aflora. Quando nos casarmos, teremos um filho melhor do que Paulinho – disse, achando que convenceria Ifigênia.
- Melhor?! Melhor?! Cala essa boca! – respondeu a moça, furiosa, com olhar hostil, ameaçando, até mesmo, avançar sobre o rapaz.
Sem atinar para o fato, André, inadvertidamente, havia tocado num ponto sensível da namorada.
- Está bom, está bom, não melhor, mas igual ao Paulinho! Está bem assim?! – tentou remediar.
- Cala a boca! Nunca mais toque nesse assunto! Se voltar a falar disso, estará tudo acabado! Acabado, ouviu bem?! – respondeu, trêmula, pálida e ofegante, pondo fim, abruptamente, à conversa.
Ifigênia não queria filho “melhor” do que seu menino. Ademais, considerava isso impossível. Não desejava nem mesmo alguém que fosse “igual” a ele. Queria Paulinho, só ele, do jeitinho que era, com seu defeito físico, sua vulnerabilidade e seu olhar triste e carente! Ninguém mais e nem menos.
Claro que sabia que isso era impossível. Mas no fundo, bem no fundo do seu coração, nutria essa esperança louca. Chegou, até, a pensar bobagem, como, por exemplo, em seqüestrar seu menino e levá-lo para bem longe dali, para dar-lhe todo o carinho e afeto de que precisava e que não tinha, por parte dos pais. Ifigênia não somente parecia, mas era, como se vê, um anjo... ferido pela impossibilidade de realizar seu maior desejo.
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Ifigênia, sem nenhuma censura ou reprimenda, com o carinho de quem compreende tudo, até as peraltices de um menino levado, tomou Paulinho no colo, sem se importar em sujar a roupa de barro, e tirou-o da chuva, levando-o para dentro de casa.
O menino apenas abraçou-a com força e deu vários beijinhos em seu rosto. Não disse nada do porque daquela aventura e nem precisava. Ambos entendiam-se só pelo olhar. Era um caso raro, raríssimo, de amor entre duas pessoas, com diferença de idade tão grande. Que o pequeno não soubesse explicar o que e por que sentia, era compreensível. Difícil de entender, todavia, era o sentimento da moça, total, absoluto, irrestrito e avassalador. Era um caso que nem o mais imaginativo dos ficcionistas conseguiria pensar. Como se vê, mais uma vez a realidade dava um banho de criatividade na imaginação.
A primeira providência de Ifigênia foi buscar a bacia em que Paulinho tomava banho, que estava no quintal. Depois, aqueceu um latão de cinco litros, de água, no tosco fogão a carvão da casa. Com paciência infinita, despiu, delicadamente, o menino e lavou meticulosamente seu corpinho franzino e frágil, para tirar toda aquela lama que havia se impregnado na pele e que lhe dava uma aparência engraçada, mas insolitamente bela, de uma coloração vermelho-amarronzada.
- Feche os olhos, Paulinho – disse Ifigênia, ao ensaboar-lhe a cabeça.
O menino obedeceu. A moça ensaboou-lhe, delicadamente, os cabelos, massageando-os com infinito carinho. Depois, com um canecão de água quentinha, enxaguou-os meticulosamente. Nesse momento, foi surpreendida por uma declaração que a comoveu e abalou:
- Ifi, gostaria que você fosse minha mãe!
Ifigênia quase caiu de costas. Foram as palavras mais bonitas que ouviu em toda a vida. Sabia do apego do menino, mas não julgava que chegasse a esse ponto. Lágrimas de felicidade brotaram-lhe dos olhos verdes e expressivos, que ficaram ainda mais belos, face a essa expressão de emoção.
- Já sou sua mãe, bobinho. Mãe postiça.
- Postiça não vale. Queria que fosse de verdade. Ih, Ifi, você está chorando?
- Não, não estou. Quando ensaboei sua cabeça, espirrou sabão nos meus olhos. E se estivesse? Você se esquece que sou mulher? Mulher chora, fique sabendo.
- Eu sei! Eu não choro.
- Pudera! Só faltava essa! Não fica bem um marmanjo, desse tamanho, chorar!
Ifigênia sabia o quanto o seu menino era estóico. Nos últimos três anos, passara por sofrimentos que abateriam qualquer adulto por mais forte e resistente que fosse. Fora uma sucessão de internações na Santa Casa de São Paulo, de dolorosas cirurgias, de muita fisioterapia e massagens, numa tentativa, inútil, de fazê-lo voltar a andar. E Paulinho passara por tudo isso como se fossem coisas normais, sem manhas, sem queixas, com uma coragem de fazer inveja a endurecidos e brutais lutadores de boxe, acostumados à dor, dada a natureza da sua atividade. Apenas seus olhinhos azuis, como o céu em dia de sol e luz, refletiam tamanho sofrimento. E, assim mesmo, somente um bom observador seria capaz de perceber.
- Nossa, que arranhão feio é este na sua coxa direita?! Vamos já fazer um curativo!
- Arranhão?! Gozado, não senti nada! – mentiu Paulinho, com um sorriso maroto.
Ifigênia enrolou-o numa toalha felpuda e levou-o para o quarto, para vestir-lhe o pijama limpo e bem passado. Esse era o momento de intimidade que mais gostava. Era pretexto para abraçar seu menino, com delicadeza infinita e pleno amor e sentir seu corpinho frágil e já tão judiado junto ao seu. Antes de voltar para a cozinha, deu um beijinho na bochecha do garoto, piscando-lhe, com cumplicidade.
A seguir, a moça preparou suculenta canja para Paulinho, arrematada com generoso copo de Toddy, bem quente. O garoto comeu e bebeu com gosto e já não sentia mais o frio, que fizera todo seu corpo tremer e seu queixo sacudir-se como se feito de gelatina, depois que Ifigênia o tirara da chuva. A sensação que tinha, agora, era de conforto, carinho e segurança, que só sua “mãe postiça” sabia lhe proporcionar, e na medida exata que necessitava, nem mais e nem menos.
- Ifi, conta uma história – pediu com aquele seu irresistível jeitinho meigo, capaz de amolecer o mais empedernido coração.
- Claro! Qual você quer ouvir?
- A de Joãozinho e Mariazinha.
- Outra vez?!
Ifigênia, sempre que contava alguma história, modificava detalhes e, não raro, até mesmo o desfecho. De sorte que a mesma narrativa nunca era, de fato, a mesma. O menino se divertia com essa criatividade e observava isso, rindo. E os dois se divertiam a valer, cúmplices que eram, capazes de se entender sem que sequer fosse preciso falar nada, somente por gestos, olhares, toques de mão e enfáticos sorrisos.
Não tardou para Paulinho dormir. Ifigênia deu-lhe um beijo suave e amoroso na testa, apenas um leve roçar de lábios, como se passasse uma pétala de rosa no menino e foi lavar sua roupa enlameada, para apagar todos os vestígios da sua traquinagem e assim evitar que levasse uma surra quando os pais voltassem do trabalho. Só iria embora depois que esta estivesse seca e bem passada.
Outra pessoa qualquer teria censurado Paulinho (“para o seu bem”, argumentaria) pelo que fizera. Dir-lhe-ia, provavelmente em tom de ameaça, que nunca mais deveria repetir aquilo. Talvez até lhe desse uma ou duas palmadas “corretivas”. Qualquer pessoa, com certeza, agiria assim. Não Ifigênia.
Ela conhecia seu menino muito bem e sabia da sua ânsia de liberdade. Tinha certeza que nunca mais Paulinho sairia na chuva e nem se arriscaria a sei lá o quê. O menino era inteligente, sagaz e, sobretudo, teimoso. “Marca de uma personalidade forte”, pensava. Ademais, aquela aventura, com certeza, o acompanharia vida afora, como uma lembrança valiosa, dessas que nos consolam na velhice.
Seca e passada a roupa, Ifigênia foi, pé ante pé, até a cama do garotinho e ficou um tempão contemplando-o, a dormir. O menino sorria. Certamente estava tendo um sonho agradável, diferente da vida real, em que sofria com a perversa doença que lhe deixara marcas tão severas, que o acompanhariam para sempre, e com o abandono a que era relegado, por causa das circunstâncias.
A moça beijou, novamente, seu menino e foi embora. Teria que percorrer, a pé, na noite escura e chuvosa, um longo trecho, até o ponto de ônibus, que a levaria ao seu bairro. Apesar da nova vila ser relativamente segura – nunca ninguém ouvira falar de assaltos, estupros ou outro tipo de violência – não era muito prudente uma moça andar sozinha, naqueles ermos e àquela hora.
Os pais de Paulinho eram pessoas boníssimas, mas pobres, inexperientes (eram muito jovens) e, sobretudo, orgulhosas. Não admitiam ajuda de ninguém, que interpretavam (quem tentasse ajudar) como intrometidos, que os queriam humilhar com “caridade”, o que lhes era a suprema ofensa. Precisavam garantir o sustento e trabalhavam longe, em São Paulo. Tinham que tomar três conduções para ir e outras três para voltar do trabalho. O tempo que poderiam dedicar ao menino, portanto, gastavam nesses deslocamentos.
Ademais, tinham planos bastante ambiciosos para o futuro, como o de construir a nova casa, no vasto terreno que haviam adquirido com prestações a se perderem de vista, rigorosamente em dia, em cujos fundos estavam os três cômodos em que moravam atualmente. Além disso, planejavam prover a melhor assistência médica e educação que o dinheiro pudesse comprar ao filho e, se possível, até financiar sua cura. Enfim... queriam vencer na grande cidade.
Tudo isso, porém, eram planos para o futuro. No presente... a realidade do garoto era sombria e até perigosa. Era de solidão e abandono. O dinheiro que ganhavam não dava para contratar alguém que cuidasse dele. Ifigênia, porém, fazia isso – com a disponibilidade de tempo que tinha, sacrificando namoro, descanso, lazer – como ninguém faria igual. Mas não considerava isso nenhum sacrifício, mas privilégio, oportunidade que a vida lhe dava de amar alguém de verdade. E fazia tudo de graça! Não, minto: tinha por pagamento o afeto de Paulinho, o que valia mais, muito mais, infinitamente mais do que qualquer dinheiro, por maior que fosse a quantia.
Tratava-se da associação ideal de dois anjos... feridos. Um, na própria carne, com as marcas de uma doença incurável que o acompanhariam pela vida afora, o tornando alvo de disfarçado preconceito e de fingida piedade alheia. Outro, ferido na alma, por saber que, mais dia menos dia, teria que se separar de alguém a quem amava sem restrições e nem reservas, com amor espontâneo e absoluto que raros têm a oportunidade de sentir algum dia.
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