Friday, December 12, 2008

Liberdade "para"


Pedro J. Bondaczuk

O meu vizinho do lado direito de quem desce a rua em que moro, curtinha, de apenas quatro quarteirões, em um bairro considerado “nobre” de Campinas, é apreciador de passarinhos. Responsável, como é, tem apenas aqueles nascidos e criados em cativeiro, como determina a lei. Não tem, portanto, problemas com o Ibama. Entre os inúmeros exemplares que possui, se destaca um curió, que, certamente, venceria qualquer concurso de canto. É um “artista” sem igual, de fazer inveja a Luciano Pavarotti, Plácido Domingo, José Carreras, Enrico Caruso ou Mário Lanza!
Todas as manhãs ele me desperta com seus gorjeios vibrantes, que me parecem entusiasmados (talvez sejam apenas lamurientos, sei lá) e, invariavelmente, no mesmíssimo diapasão. É sempre a mesma “música”, sem tirar e nem pôr que, no entanto, como ato de magia, me parece, a cada dia, nova, embora não o seja. Esse passarinho já me suscitou inúmeras reflexões, notadamente sobre liberdade.
Trata-se, óbvio, de tema polêmico, debatido desde que, provavelmente, o homem tomou consciência de si e do mundo em que vivia, sem que nunca se esgotasse. Jamais irá se esgotar. É daqueles assuntos que nunca obtêm consenso. Em nome desse conceito, diga-se de passagem, já foram cometidas incontáveis atrocidades, que seguem, na verdade, sendo praticadas, cotidianamente, por verdugos, caudilhos, ditadores e demagogos de toda a sorte, poderosos ou não.
O canto do curió, hoje, que me despertou, como sempre, para a aventura de um novo dia, me levou a pensar, aqui com meus botões: “É verdade que este pássaro nasceu em cativeiro. Jamais conheceu a sensação de voar livre pelos céus. Até para se acasalar, foi-lhe determinada uma parceira, não a da sua escolha, mas a que seu dono decidiu que seria a ideal. Não seria melhor, para esta ave, a liberdade da natureza, de uma floresta com muitas árvores, cortada, aqui e ali, por suaves regatos, como ocorre com tantos outros espécimes da sua espécie?”.
Em princípio, esta me pareceu ser a lógica. Daí veio-me à mente a questão da segurança. “Esse curió, pelo qual já me afeiçoei tanto, pelo seu canto tão inspirador, seria mais feliz, de fato, no mundo exterior à sua gaiola, que nunca conheceu, já que nasceu em cativeiro? Saberia, apenas por instinto, sem que ninguém o ensinasse, a encontrar o alimento para sobreviver, ele, que agora não precisa se preocupar com isso, já que tem alguém que o alimente? Teria condições de se livrar dos predadores? Saberia se defender? Sobreviveria por muito tempo? A liberdade lhe seria um bem ou um mal?”.
Claro que a esse propósito as opiniões se dividem e todos, defendam a posição que defenderem, certamente terão fortes argumentos para fundamentar o que pensam. Raros, raríssimos de nós somos, de fato, livres. Nascemos, fomos criados e permanecemos até a nossa morte, a exemplo do curió do meu vizinho, numa “gaiola”: a dos compromissos. Somos (salvo raras exceções), não o que, no fundo da alma, queremos, mas o que nossas famílias planejaram para nós. Agimos de acordo com as convicções que nos foram incutidas pela educação que nos foi dada e não com os ditames do nosso coração.
Gozamos da segurança de um emprego, o qual, mesmo manietando nossas verdadeiras potencialidades, nos dá a segurança de um razoável (para alguns, claro) salário no final do mês para manter nossas famílias com razoável conforto e tranqüilidade. Temos, pois, liberdade “de”, não “para”.
O poeta indiano, Rabindranath Tagore (de etnia “sikh”), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1918 (que devolveu, em protesto pela política da Grã-Bretanha em relação à Índia), escreveu o seguinte a respeito: “Tenho sobre minha mesa uma corda de violino. Ela é livre. Torço uma de suas pontas e ela rege. É livre. Mas não é livre para fazer aquilo que uma corda de violino deve fazer – produzir música. Pego-a, pois, prendo-a no meu violino e aperto-a até ficar tesa. Só então ela é livre para ser uma corda de violino. Do mesmo modo nós somos livres quando nossas vidas não têm compromissos, mas não para ser o que fomos destinados a ser. A verdadeira liberdade não é liberdade ‘de’, mas liberdade ‘para’”.
Não temos, pois, que nos condoer da sorte do curió do meu vizinho. Guardadas as devidas proporções, somos iguaizinhos a ele. Talvez o pássaro (se tiver raciocínio e consciência) não se contente com a segurança da sua gaiola e prefira se arriscar na natureza. Talvez... Nós, todavia, conformamo-nos com ela. E, até certo ponto, nos sentimos felizes (ou achamos que somos) com essa situação. Mas será que somos?
Talvez nos sintamos assim por não conhecermos outro tipo de vida. Pode ser que o curió também se sinta dessa maneira. Ninguém poderá, óbvio, afirmar, com absoluta certeza, que a ave seja ou não seja feliz. Raros, raríssimos de nós gozamos da verdadeira liberdade. Não a “de” que nos seja outorgada, mas a “para”, que não tenha a interferência de nada e ninguém.
A esse propósito, aliás, vem a calhar o poema da poetisa Fabiana Bórgia, intitulado “Gargalhada sem censura”, que consta do seu recém-lançado novo livro intitulado “Desconexos”, que tenho em mãos neste momento e que diz: “Liberdade é/verdade sobre a mesa,/prato principal.//Sinceridade de amigos,/amor não de bicho, /mas de homem.//Liberdade é o que não tem preço:/é apreço.//Liberdade/não tem prazo de validade./É gargalhada sem censura.//Liberdade é escolher/estar preso”.
A cada dia que passa, sinto-me mais e mais ligado ao curió, até pela identidade de situações e destinos (guardadas, claro, as devidas proporções). Ambos cantamos, posto que cada qual à sua maneira. Ele, talvez exaltando a floresta que sequer conhece. E eu... falando de uma vida que poderia ser mais breve, é fato, mas, no entanto, mais feliz e digna de ser vivida. Somos livres? Quem sabe?

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