Monday, December 01, 2008

Estagnação espiritual


Pedro J. Bondaczuk

O meu historiador predileto – a quem sempre tive na conta de uma espécie de guru, principalmente pela lucidez das suas observações – o britânico Arnold Joseph Toynbee, disse, certa feita, que a despeito das miraculosas conquistas tecnológicas, e do extraordinário desenvolvimento material do homem – notadamente a partir de meados da década de 50 do século passado – a humanidade não obteve nenhuma conquista espiritual ou moral que fosse expressiva, eficaz e duradoura.
Muitos tentaram ridicularizá-lo (em vão) na oportunidade, sem apontar, contudo, falhas no seu raciocínio. Não havia. Ele foi incisivo, convincente e direto. Toynbee atribuiu, principalmente, a esse fato, a interminável crise que o mundo enfrentava (e ainda enfrenta logicamente) ininterruptamente, do século XVIII para cá, e que está cada vez mais grave, por falta de alternativas, sem que, no entanto, os pseudo-intelectuais e os supostos estadistas (na minha opinião, não há nenhum deles, e há muito tempo) sequer admitam, quanto mais busquem resolver.
As declarações de Toynbee foram feitas especialmente para um memorável “Globo Repórter”, da Rede Globo, exibido em 1° de janeiro de 1974, que fiz questão de gravar em áudio (na época, nem sei se já existia a possibilidade de gravação em vídeo e, se houvesse, eu, pelo menos, não tinha acesso a esse tipo de aparelhagem) e de transcrever, em texto, as opiniões de todas as personalidades ouvidas na ocasião, que fizeram uma espécie de balanço dos problemas do século XX.
O historiador britânico disse, na oportunidade (conforme tradução da emissora): “As conquistas tecnológicas e o desenvolvimento material do homem foram imensos. Mas da maneira que vejo, e isto é muito controvertido, nós não obtivemos qualquer conquista espiritual ou moral. O homem pode passar sem tecnologia, mas não pode passar sem sociabilidade, porque ou é um animal social ou não é nada. Ele deixa de ser humano. E é por isso, acho eu, que nós estamos nesta grave crise, pelo que eu chamo de esforço moral. Por força das conquistas tecnológicas, que trazem poder para o bem ou para o mal. E pela nossa regressão moral, causa de todos os nossos problemas atuais”.
Notem que Toynbe não disse, sequer sugeriu, que não haja “ninguém” que não tenha evoluído moral e espiritualmente. Afirmou, isso sim, que “a humanidade” não teve essa fundamental evolução. E não teve mesmo. Essa afirmação, convenhamos, até dispensa qualquer comentário, tão óbvia que é. Qualquer indivíduo, por mais bronco e desinformado que seja, chega, sem qualquer esforço, a essa conclusão. Os fatos que comprovam isso estão aí, afetando a todos, para qualquer um ver.
A questão, pois, não é apenas qualitativa, mas, sobretudo, quantitativa. Se progressos houve nesse aspecto (e acredito que sim), foi de parca minoria de pessoas. E as idéias inovadoras delas não ganharam a repercussão que mereceriam (diria, não ganharam repercussão alguma). A maioria retrocedeu, e bastante, em termos espirituais e morais. Por isso a humanidade está nesta encruzilhada, com riscos iminentes de auto-destruição, sem que sequer se dê conta dessa trágica proximidade do abismo.
Ademais, as conquistas tecnológicas, inegáveis e até miraculosas, beneficiam, apenas, a pouquíssimas pessoas, em termos proporcionais, mundo afora. Ou seja, só às que podem pagar por elas. Diria que se trata de parcela irrisória, se comparada aos quase sete bilhões de habitantes do Planeta.
A maioria esmagadora da humanidade não tem acesso algum às conquistas da ciência e da tecnologia. Na verdade, não conta, sequer, com a garantia de que terá pelo menos o “pão nosso de cada dia” para não morrer de inanição. Por causa da decadência do altruísmo, da solidariedade e da sociabilidade, o homem, de fato, e cada vez mais, está deixando de ser humano.
É oportuna, a esta altura, a citação – que comentei, recentemente, numa outra reflexão – de Jorge Luís Borges, sobre essa questão de conquistas espirituais e morais: “Não há geração sem quatro homens retos, que secretamente sustentam o universo e o justificam diante do Senhor. Um desses varões teria sido o juiz mais idôneo. Mas, onde encontrá-los, se andam perdidos e anônimos pelo mundo, e não se reconhecem quando se vêem, e nem eles mesmos sabem do alto ministério que cumprem?”, escreveu o escritor argentino.
Cabe, aqui, uma ressalva. Essa possibilidade, levantada por Borges, da existência de homens justos em cada geração não foi, na verdade, criação dele. Integra, há séculos, a tradição judaica (se não me engano, hassídica). Só que na versão original, os varões retos e probos não seriam, apenas, quatro, mas trinta e seis (o que seria mais verossímil). Borges, como se vê, foi mais parcimonioso e pessimista do que os criadores dessa alegoria, em cuja fonte, certamente, o escritor argentino bebeu.
No mais, é tudo igual. Ou seja, os trinta e seis (ou quatro, como queiram) varões retos “andam perdidos e anônimos pelo mundo, não se reconhecem quando se vêem, e nem eles mesmos sabem do alto ministério que cumprem”. E a humanidade, enquanto isso, sofre profunda e contundente estagnação espiritual e moral e retrocede, em dias (quando não em horas), milhares e milhares de passos, que gerações anteriores levaram milênios para avançar.

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