Thursday, November 09, 2006
Tradição e contestação andam juntas
Pedro J. Bondaczuk
A falência do comunismo no Leste europeu e, mais especificamente, no primeiro lugar em que ele fincou raízes, a União Soviética, é um tema que ainda por muito tempo irá merecer análises de toda a sorte e interpretações as mais diversas.
Há os que atribuem a sua queda à oposição que lhe foi feita pelo sistema oposto, o capitalismo. Isto está longe da verdade. A ideologia ruiu por seus próprios defeitos. Porque não soube se reciclar, se renovar para manter seu papel de contestação. Pelo contrário, em pouco tempo tornou-se tradição, o que no jargão de ciência política é chamado de "conservadorismo".
Paul Starr observou muito bem esse fenômeno ao constatar: "O comunismo soviético soçobrou vítima de suas próprias fraquezas endêmicas e não por obra de forças externas". E o escritor John Le Carré acrescentou: "No final das contas, não foram os espiões ocidentais que derrubaram o comunismo, mas Mikhail Gorbachev e as pessoas comuns do Leste europeu". Ou seja, foi a contestação que minou e findou por derrubar o que passou a ser a "tradição" e no seu aspecto menos saudável.
Toda sociedade precisa dessas duas forças. Uma, representa a estrutura. A outra, é o desenvolvimento. A primeira é denominada conservadora. A segunda é a liberal, ou seja, libertadora das amarras que impedem ou tentam impedir toda e qualquer renovação.
Em 1917, o comunismo era encarado, até mesmo no mundo capitalista, como o processo de mudanças levado ao extremo, a ponto do golpe que o colocou no poder ser classificado de "Revolução". Em 1919, o jornalista norte-americano, Lincoln Steffens, de regresso da União Soviética, declarou: "Vi o futuro, e ele funciona".
Hoje, certamente, diria o mesmo. O motivo é que seria diametralmente oposto. No início do século, a ascensão do comunismo despertou seu entusiasmo. Hoje, se estivesse vivo, com certeza ficaria entusiasmado com a sua derrocada.
Todavia, enquanto o homem existir, as duas forças coexistirão. Ninguém é absolutamente conservador ou liberal. Todos temos um pouco das duas tendências dentro de nós, dependendo das circunstâncias. Ocorre que muitos não têm o equilíbrio necessário para que as duas formas de pensar coexistam harmoniosamente.
O psicólogo Konrad Lorenz, um dos maiores estudiosos do comportamento de nossos tempos, escreveu, num de seus trabalhos: "Pensar é uma característica biológica da espécie humana. O pensamento serve para transmitir o conhecimento e para inová-lo. Por isso contestação (liberalismo) e tradição (conservadorismo) precisam existir sempre. E quem pretender partir do ponto zero será provavelmente um cretino".
A linha dura do Partido Comunista Soviético, que tentou o ridículo golpe de Estado de 19 de agosto passado, foi cretina. Não porque pretendesse começar do nada. Sua ação, aliás, foi o contrário disso.
A corrente conservadora do PCUS aferrou-se a um conservadorismo caolho, àquilo que o sistema possuía de mais ineficiente, perverso, corrupto e apodrecido. Mikhail Gorbachev bem que tentou salvar o partido da ruína. Acreditou na possibilidade de sua mudança até o fim. Tanto que colocou o PC como principal pilar da perestroika, sem perceber que ao invés de contar com um aliado, dispunha, na verdade, de uma "quinta coluna".
O presidente soviético precisou passar pela amarga experiência de ver de perto a traição de gente que só tinha lealdade com dogmas caducos, quando não com a defesa intransigente de privilégios indevidos e da busca do poder pelo poder.
A tradição, naquilo que o homem tem de mais nobre, é indispensável. Leszek Kolakowski observou a esse propósito: "A questão é, antes de tudo, saber como a sociedade humana pode sobreviver sem a presença de forças conservadoras, isto é, sem a tensão perpétua entre a estrutura e o desenvolvimento. Essa tensão é pura e simplesmente própria à vida..."
(Artigo publicado na página 14, Internacional, do Correio Popular, em 14 de setembro de 1991).
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