Thursday, November 16, 2006

Reinvenção do universo


Pedro J. Bondaczuk

O Jornalismo Científico é uma das mais complexas especialidades da nossa profissão e, seguramente, a área mais carente de profissionais que, de fato, dominem o assunto. Requer, dos que encaram esse desafio, muito estudo, muito preparo e, sobretudo, fundamento e bom-senso. Não admite, portanto, os meros curiosos, aqueles que são chamados nas redações de “pára-quedistas”, que se julgam ecléticos, capazes de escrever sobre todos os assuntos com a mesma desenvoltura, mas que, salvo raras exceções, não escrevem bem sobre nada.
Exige-se, de quem se especializa nesse tema, além das técnicas de uma boa redação (exigidas, aliás, de todo jornalista que se preze) um conhecimento pelo menos elementar das várias disciplinas científicas com que irá lidar, como Astronomia, Física, Química e Biologia, entre outras. Seu principal desafio é o de tornar inteligível a qualquer leitor (desde o engraxate, por exemplo, ao físico nuclear) teorias de extrema complexidade até para os que as elaboram. Terá, sobretudo, que “decodificar” o jargão científico e o transformar numa linguagem que todos entendam, sem contradizer nenhum aspecto que o autor original do estudo abordado apresente.
Em artigo que publiquei no início de outubro deste ano, aqui mesmo, neste espaço nobre do Comunique-se, intitulado “A poesia da ciência”, apresentei as considerações de uma das maiores especialistas em Jornalismo Científico da atualidade, a norte-americana Karen Christine Cole (que assina seus textos e seus muitos livros como K. C. Cole) – que prestou, durante anos, relevantes serviços na sua especialização ao jornal “Los Angeles Time” e que leciona essa disciplina na University of Southern Califórnia.
Abro, aqui, um parêntese, para agradecer à preciosa colaboração do colega Nei Duclós. No referido artigo, assinalei desconhecer o significado da abreviação K. C. no nome da referida jornalista norte-americana, que tem fortes ligações com o Brasil, já que viveu alguns anos da sua infância na cidade do Rio de Janeiro. Enfatizei que fiz várias pesquisas na internet, em vão, para descobrir o que essas iniciais queriam dizer. Nei, porém, mostrando que é um jornalista com muitas e preciosas fontes e preocupado (como todos deveriam ser sempre) com a exatidão, entrou em contato com a renomada companheira de profissão, que não se fez de rogada e respondeu de imediato. E esclareceu que K. era abreviação de “Karen” e C., de Christine. Pode parecer detalhe sem importância, mas jornalismo que se preze é (ou deveria ser sempre, reitero) detalhista.
Voltando ao artigo anterior, citei, na oportunidade, dois trechos de um dos tantos ensaios de Cole. Num deles, a jornalista afirma: “A ciência, com efeito, envolve, na maior parte dos casos, olhar para coisas que nunca poderemos ver. Não apenas quarks (subpartículas atômicas) e quasares (formações quase-estelares), mas também ‘ondas’ de luz e ‘partículas’ carregadas, ‘campos magnéticos’ e ‘forças gravitacionais, saltos quânticos’ e ‘órbitas’ de elétrons”. No outro trecho citado, ela justifica e complementa essa observação: “De fato, nenhum destes fenômenos é, literalmente, o que dizemos ser. As ondas de luz não ondulam através do espaço vazio da mesma forma que as ondas de água se propagam num lago calmo; um campo não é como um prado, mas antes uma descrição matemática da intensidade e do sentido de uma força; um átomo não salta, literalmente, de um estado quântico para outro; os elétrons não viajam, literalmente, em torno do núcleo atômico em círculos, tal como o amor não produz, literalmente, dor de cabeça”.
Hoje, trago ao paciente leitor as considerações de um renomado editor norte-americano, John Brockman, articulador do Reality Club – um clube informal de Nova York que reúne consagrados cientistas de várias disciplinas, cujos pontos de vista sejam divergentes, para confrontá-los. A partir dos acalorados debates ocorridos nesse cenáculo de notáveis, surgiu o seu livro, instigante e insólito desde o título, “Einstein, Gertrude Stein, Wittgenstein e Frankenstein – Reinventando o universo”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras (tradução de Valter Ponte, 1ª edição, 1989).
Logo na introdução, de cara, já no primeiro parágrafo, o autor lança sua polêmica tese, que desenvolve, meticulosamente, na seqüência da obra: “O homem cria instrumentos e depois molda-se à imagem deles. A realidade é fabricada pelo homem. O universo é uma invenção, uma metáfora”.
Mais abaixo, coloca mais lenha da fogueira, ao afirmar: “Seja qual for a linguagem descritiva a que tenhamos chegado, o compreender a realidade torna-se a realidade. Não dizemos que o coração parece uma bomba. Ele é uma bomba. A idéia de que a realidade não é mais que a rede imaterial e transitória de nossa linguagem descritiva já foi formulada de vários modos por vários pensadores importantes. Um dos mais eminentes dentre eles foi o físico alemão Werner Heisenberg que, em seu agora famoso princípio da incerteza, demonstrou que a realidade em seu nível mais fundamental, ou subatômico, é mais ‘criada’ do que ‘observada’ pelos físicos”.
Como se vê, é um livro fundamental não apenas para os especialistas em Jornalismo Científico (mas principalmente a eles), como para todos os jornalistas que se prezem, já que a nossa matéria-prima é o que chamamos de “realidade” que, na verdade, é mero fruto da imaginação humana, conforme Brockman demonstra, sem muita possibilidade de contestação (provavelmente, nenhuma). E a personagem central da sua obra, embora não pareça aos desavisados, é a nossa ferramenta de trabalho, ou seja, a linguagem, certamente a maior criação do homem em todos os tempos.
Encerro estas considerações com o seguinte trecho de um dos livros de Gertrude Stein, citado pelo autor, para a nossa reflexão: “A linguagem como coisa real não é imitação nem de sons nem de cores nem de emoções: ela é uma recriação intelectual e não pode existir nenhuma dúvida sobre isto, e continuará a ser assim enquanto a humanidade existir”. Todo o tempo, portanto, dedicado ao seu estudo e aperfeiçoamento, é, e sempre será, muito bem aproveitado, por se tratar de um salto evolutivo.

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