Friday, November 03, 2006

Lembranças da várzea - 2


Pedro J. Bondaczuk


Os campos de várzea merecem um capítulo a parte nestas nossas memórias sobre o futebol amador de São Paulo no início da segunda metade do século passado. Posso descrever, claro, somente, aqueles em que o time do qual eu era técnico, o Flamengo da Vila Camila, jogou. E eles iam de um extremo a outro em termos de qualidade. Eram, desde pequenos, mas aconchegantes estádios, com arquibancadas, bons vestiários, gramados bem-cuidados e todos os confortos imagináveis, de fazer inveja aos pequenos clubes profissionais de qualquer parte do País, a meros pastos improvisados em campos de futebol.
Cabe, aqui, uma observação bastante importante, ou seja, uma distinção que era feita na época, e que hoje não se faz mais, entre clubes amadores e times de várzea. Os primeiros contavam com toda a estrutura necessária para seu funcionamento. Alguns, até mesmo, tinham sedes suntuosas, verdadeiros parques esportivos, com piscinas, quadras de basquete, vôlei e tênis e quadros associativos de fazer inveja a São Paulo, Corinthians, Palmeiras e outros quetais. Estes, tinham estádios, posto que de pequenas dimensões e, em alguns deles, até eram cobrados ingressos dos não-sócios para os jogos que disputavam.
Os jogadores eram recrutados, pelos olheiros, entre os melhores não-profissionais das redondezas, e corria, a boca pequena, que não eram amadores coisa nenhuma. Recebiam, senão salários mensais, altas importâncias em dinheiro por partida disputada. E não eram clubes de empresas, em especial as multinacionais, como se poderia pensar. Algumas dessas entidades, porém, eram ligadas a sindicatos de classe, como os de padeiros, de feirantes etc.
Já os legítimos times varzeanos não contavam com a mínima estrutura. A maioria não tinha sede própria e reunia-se nos barzinhos dos bairros que representavam, que faziam, também, as vezes de vestiários. Os jogadores já saiam devidamente fardados para os locais dos jogos (salvo raras exceções). Contavam com meia dúzia de gatos pingados a título de “associados” e eram mantidos mediante mensalidades pagas pelos próprios jogadores. Ou seja, as pessoas pagavam para poder jogar nesses times.
Não raro, seu “patrimônio” não passava de alguns jogos de fardamento completos (às vezes, nem isso), duas ou três bolas de couro oficiais (se tanto) e as redes para serem colocadas nas traves dos vários campos improvisados da região. Com o tempo, todos acabaram misturados no “mesmo balaio” e classificados de “times de várzea”, para distingui-los dos profissionais. Mas a disparidade era monumental. Ainda assim, entre os feitos do Flamenguinho, estão inúmeras vitórias sobre esses clubes poderosos, ricos, organizados e muito bem-estruturados, e na casa desses adversários.
O melhor campo em que o nosso time já jogou foi o Estádio do Irmãos Romano, de São Bernardo do Campo. Fizemos a preliminar do jogo válido pelo Campeonato Paulista da Segunda Divisão (hoje chamada de Série A-2), entre a equipe local (hoje desaparecida) e a Portuguesa Santista, vencido, por esta, por 3 a 0, no ano em que a Briosa das praias subiu, após vencer, na final, a Ponte Preta, em Campinas (com um gol polêmico de Samarone) por 2 a 1. Enfrentamos (e vencemos), na oportunidade, o Palestra daquela cidade, que hoje representa esse município do ABC na Série B da Federação Paulista, por 2 a 1. Outros campos excelentes em que jogamos foram: no complexo esportivo que então existia na Barra Funda; no do Lapeaninho da Lapa; no estádio do Bairro do Limão; no do quartel do exército em Santos e em outros mais, que me fogem da memória
E quais foram os piores? É mais difícil ainda de definir, tantos foram os locais inadequados em que nos apresentamos. Jogamos em descampados, em pastos, em brejos e vai por aí afora. Um dos piores campos, porém, foi o do Universal (que tinha esse nome não por causa da igreja de Edir Macedo, que sequer existia na ocasião, mas por ser patrocinado por uma retífica de motores de São Caetano do Sul que tinha essa denominação). Ele tinha uma característica única: uma inclinação de uns 30 graus (sem nenhum exagero) entre um gol e outro. Era uma imensa ladeira! Não tinha, claro, nem arquibancadas e muito menos vestiários. Ademais, não contava com um único tufo de grama e era de terra vermelha batida, cheio de pedras, que provocavam esfolamentos e escoriações nos jogadores a cada jogada mais ríspida que disputavam. E estas, claro, não faltavam. Pelo contrário!
Jogamos, ali, não apenas uma partida, mas dezenas (talvez centenas) delas. Buscávamos, invariavelmente, segurar o resultado quando defendíamos a meta da descida. Quando ocorria o contrário, ou seja, de atacarmos para esse lado, íamos com tudo para cima dos adversários e, não raro, estabelecíamos placares muito elásticos, tipo 6 a 1, 8 a 2 ou 9 a 3 a nosso favor. Aplicamos várias goleadas nos donos dessa “ladeira”, para desespero dos seus torcedores.
Outro campo muito ruim, que rivalizava com o do Universal, era o de um tal de Flor do Campo, de São Bernardo. Ficava bem afastado da cidade, em plena Serra do Mar. Era um local de difícil acesso (nem mesmo estrada tinha) e chegava-se ali através de uma picada. Também era uma ladeira, mas com inclinação muito menor do que a do campo do Universal e no sentido de uma das laterais. A única vantagem era a grama natural. Disputamos, ali, um festival, e perdemos a partida final, contra os donos da casa, por causa de uma arbitragem calamitosa (depois ficamos sabendo que o “árbitro” era o presidente do time local), que anulou um gol legítimo nosso, deu um pênalti absurdo que o nosso goleiro Jorge defendeu e expulsou o nosso melhor jogador. Futebol varzeano era assim, naqueles tempos românticos, em que o amor pelo esporte superava todo e qualquer obstáculo. E em que se pagava para jogar...

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