Friday, November 17, 2006

Questão de estilo


Pedro J. Bondaczuk


"O estilo é o homem", diz o adágio popular. Caracteriza a nossa maneira de ser, de vestir, de amar, de reagir, e de trabalhar. Enfim, indica a forma de nos relacionarmos com as outras pessoas no lar, na escola, no trabalho, no lazer e na sociedade. É a expressão da nossa individualidade, a nossa característica, o nosso distintivo em relação aos demais, a nossa "personalidade". Não tem um tempo determinado para se configurar. Pode ser definido tanto na infância, quanto nos últimos dias de vida de alguém, em idade bastante provecta.
Em alguns casos, o estilo de vida sofre mudanças contínuas, de acordo com as circunstâncias e novas influências recebidas. Em outros, mantém-se virtualmente intacto por muitos anos, quando não para sempre. Essas características, posto que individuais, no entanto, são muito parecidas com as que tantos outros possuem. Diferenciam-se em nuances, muitas vezes em detalhes mínimos, quase imperceptíveis. É cada vez mais difícil sermos originais, diante da infinidade de influências que recebemos, nesta era da comunicação total.
Em literatura (e no jornalismo também), o estilo tarda ainda mais para se definir, e se cristalizar. Muitos escritores (e jornalistas) jamais conseguem estabelecer um. Outros, (raríssimos), como Fernando Pessoa, desenvolvem mais de um. No caso do poeta português, foram quatro de uma só vez, um para cada pseudônimo que adotou, como se fossem quatro pessoas distintas. O incrível é que, analisando seus textos, dependendo do heterônimo que usou, parecem ter sido produzidos por escritores diferentes. Até os temas abordados são característicos de cada um. Mas este é um caso, senão único, extremamente raro na história da literatura.

Leitura e experiência

A definição de um estilo depende tanto da experiência adquirida através de leituras quanto (e principalmente) de uma longa prática – que se obtém apenas com um alto grau de autodisciplina. É desenvolvido mediante muitas tentativas e erros. Hoje em dia, é quase impossível alguém definir uma forma de escrever absolutamente pessoal, que não guarde nenhuma semelhança com a de qualquer outro escritor. Ou seja, que seja isenta de influências alheias. Somos, afinal, produtos do nosso meio e das experiências que vivenciamos: da educação que recebemos (no lar e na escola), dos livros que lemos, dos nossos relacionamentos, das conversas que mantemos, etc. Somos, em última análise, uma "colcha de retalhos" de características das pessoas com as quais convivemos e que, de uma forma ou de outra, nos causem admiração (ou repulsa), nos influenciando.
O tema é tratado com grande maestria pelo escritor goiano Alaor Barbosa, no livro "O Ficcionista Monteiro Lobato" (Editora Brasiliense). "Estilo é cara: cada qual tem a sua e o que fazemos para modificar a nossa cara é em geral mexer nos pêlos, barba e grenha, e podemos sair um bigodudíssimo Umberto I ou cara rapada à americana. O mais do nosso rosto não se sujeita a travestis. No estilo, também há algo de imutável, de ingênito, de inalterável a despeito de tudo o que façamos para deformá-lo. Não as exterioridades, mas essa alma mater, esse eixo central é que verdadeiramente constitui o estilo", escreve Monteiro Lobato, em carta ao amigo Godofredo Rangel, em agosto de 1909, citado por Alaor Barbosa.
Em outra correspondência, com o mesmo destinatário, de 1905 (quando tinha apenas 23 anos de idade e buscava "fugir" da literatura), o criador do Sítio do Pica-pau Amarelo foi sumamente crítico a respeito do tema. Afirmou: "Estilos, estilos... Eu só conheço uma centena na literatura universal e entre nós só um, o do Machadão. E, ademais, estilo é a última coisa que nasce num literato – é o dente do siso. Quando já está quarentão e quando já cristalizou uma filosofia própria, quando possui uma luneta só dele e para ele fabricada sob medida, quando já não é suscetível de influenciação por mais ninguém, quando alcança a perfeita maturidade da inteligência, então, sim, aparece o estilo. Como a cor, o sabor e o perfume duma fruta só aparecem na plena maturação".

“Raspagem” nos textos

Monteiro Lobato manteve coerência, a esse respeito, até a morte. Foi um crítico feroz dos próprios textos. Confessou, em uma das cartas a Godofredo Rangel, que fez rigorosa "raspagem" nos primeiros contos que escreveu, "extraindo quilos" de adjetivos inúteis, que nada acrescentavam aos textos. Insurgiu-se, sobretudo, contra o tipo de literatura que se praticava na época, não somente no País, mas, sobretudo, na Europa (de onde vinha a principal influência estilística dos nossos escritores), caracterizada pela "verborragia", por floreios, comprometendo a clareza. Em uma das cartas, confessou ao amigo que foi "salvo pelas crianças. De tanto escrever para elas, simplifiquei-me, aproximei-me do certo (que é o claro, o transparente como o céu)".

Cronistas e “preenchedores de espaço”

Hoje, salvo raras exceções, é difícil de se encontrar (especialmente em jornais), textos claros, fluentes, elegantes, sem pirotecnias verbais, espontâneos como um bate-papo de fim de tarde em um botequim, mas sem perder profundidade e beleza. Os cronistas que escapam desses vícios são os mais antigos, muitos contemporâneos de Guilherme de Almeida, de Rubem Braga, de Fernando Sabino, de Carlos Drummond de Andrade, de Luís Martins, de Paulo Mendes Campos, de Henrique Pongetti ou de Vinícius de Moraes, entre outros. À exceção de Veríssimo, por exemplo, não se produzem crônicas com o humor escrachado, mas inteligente, de Sérgio Porto, que assinava como Stanislaw Ponte Preta. Ou com o toque polêmico, mas original e criativo, de Nelson Rodrigues. Isso para não falar do mestre de todos, o genial Machado de Assis que, como Pelé no futebol, ainda não encontrou substituto.
Muitos fazem, hoje, do exercício do texto, mera exibição de vaidade. Não comunicam mensagens, mas usam as colunas de que dispõem para mostrar erudição que nem sempre (ou quase nunca) têm. E mesmo que tenham, ao leitor pouco importa esse detalhe. O que ele procura nas crônicas é o aspecto eterno que há por trás dos fatos triviais, aparentemente banais, que definem o gênero. São, portanto, cronistas sem substância e sem estilo. Não passam de meros “preenchedores de espaço”...

O lead e o estilo

O texto de uma reportagem, seja qual for o estilo do repórter (se o tiver, é claro), tem que ser, antes de tudo, claro, simples, explícito e objetivo. Ressalte-se que não se de pode confundir “simplicidade” com “infantilidade”, com “pieguice”, com falta de recursos vocabulares e/ou descritivos. E, muitíssimo menos, com carência de conhecimentos, pelo menos os elementares, de gramática.
Na minha função de editor, enfrentei alguns problemas com repórteres, via de regra os mais experientes e tarimbados, no que diz respeito ao tal do lead. Não raro topei com textos até mesmo líricos, diria poéticos, mas sem que o básico, ou seja, a notícia, a informação, o que o colega pretendia “reportar”, estivesse claro e saltasse à vista. O lead, em tais casos, estava no miolo da reportagem, quando não no pé. Claro que a matéria tinha que ser refeita. Quando questionados, todavia, esses companheiros argumentavam, com a maior sem-cerimônia, que se tratava de “questão de estilo” (de “mau estilo”, evidentemente).
Com os repórteres novatos, isso era mais simples, ou menos traumático. Bastava, às vezes, uma única observação para que, na matéria seguinte, não cometessem essa impropriedade. Mas os veteranos... Claro que eu refazia os textos, já que o produto final, não só de uma reportagem, mas de uma página e de todo o teor e a forma de uma editoria, é de total responsabilidade do editor. É da sua competência desde a checagem dos dados, para que sejam rigorosamente corretos, à apresentação final da matéria, incluindo títulos, olhos, linhas-finas, fotos e respectivas legendas (e, claro, o número de toques para que ela se encaixe no espaço que lhe for destinado).
Muitos companheiros não têm paciência para acumular, às suas tarefas diárias, trabalho alheio. Não raro “derrubam”, simplesmente, a reportagem defeituosa, sob o argumento de que têm dead-line rígido a cumprir (e têm mesmo). Nestes casos, relatam a razão dessa atitude à chefia de redação, que implica em conseqüências nem sempre pequenas aos repórteres relapsos. Caso se trate de notícia exclusiva, o problema acaba contornado de maneira menos traumática, com alguma simples observação ou advertência “leve”. Mas se o jornal concorrente a publicar, e com destaque...É encrenca na certa, no dia seguinte, e das brabas.
Há quem argumente que o lead “engessa” a criatividade. Bobagem! É aí que aparece todo o talento e a competência do bom repórter, que o leva a se destacar na profissão e, não raro, a fazer história. Cito, como exemplo, um texto que a professora Iracema Torquato (Unesp/Bauru) mencionou, em comentário que fez ao meu artigo anterior, aqui no Comunique-se, intitulado “O jornalista e o escritor”. Trata-se de reportagem do mestre José Hamilton Ribeiro, um dos melhores profissionais de imprensa que já apareceram no País, publicada na excelente revista Realidade, edição de abril de 1967.
O eminente repórter escreve: “A ordem chegou no sábado para o capataz. Devia preparar o trator e contratar todos peões que pudesse para começar a arrancar 85 mil pés de café, segunda de manhãzinha. Jesuíno estava prevenido e não se espantou muito com a ordem. Mas seu Onofre, o caseiro que tinha vindo para a fazenda quando aquilo era um mato só, achou que alguma coisa estranha estava acontecendo. ‘Arrancar 85 mil pés de café ainda novos? Acho que esta história está mal contada Jesuíno’”.
Alguém, desatento, pode afirmar, de forma imprudente e irresponsável: “a matéria não tem lead”. Como não?! Vejamos as respostas às clássicas perguntas que têm que ser respondidas na apresentação de qualquer notícia bem redigida: 1.) O quê? - A ordem para arrancar 85 mil pés de café. 2.) Quando? - Foi dada no ‘sábado’ para ser cumprida a partir de ‘segunda-feira’. 3.) Quem? - O capataz Jesuíno foi o encarregado do cumprimento da determinação. 4.) Como? - Preparando o trator e contratando todos os peões que pudesse. 5.) Onde? - Na fazenda identificada em outro trecho da matéria (não reproduzido aqui) e 6.) Por que – Também tratado na seqüência da reportagem.
Aqui, sim, fica caracterizado, à perfeição, o tal do estilo (e bom estilo), sem a mínima quebra de regra de um bom texto informativo. E a matéria ficou inteligível para toda e qualquer pessoa, e ainda assim é poética, lírica, literária até. E, apesar disso, não perdeu a simplicidade, a graça, a leveza e, sobretudo, a objetividade.
O lead não tem que ser, necessariamente, chato, como alguns (erroneamente) pensam. Pelo contrário...Tem que ser atrativo para o leitor (seja qual for a sua formação, gosto ou grau cultural, absolutamente claro e inteligível tanto ao físico nuclear, ao sociólogo, ao economista ou ao professor, quanto ao pedreiro, ao faxineiro, ao engraxate ou ao gari) e tão objetivo, que o título da matéria “salte de imediato aos olhos” do mais distraído (ou incompetente) dos editores.

1 comment:

Anonymous said...

Disse bem, alías muito bem! O "estilo é o homem", disse no século XVIII o francês Buffon. Ele é intransferível, podendo ser imitado apenas como cópia servil. NEM CÓPIA SERVIL SE PRODUZ MAIS. Que tempos! Ainda bem que tempos passam.