Thursday, June 25, 2009

Preço do egoísmo


Pedro J. Bondaczuk

O egoísmo é, provavelmente, o mais arraigado sentimento humano e, quando levado ao extremo, leva as pessoas a profundas decepções e mágoas, que não se apagam jamais. E ainda assim, os egoístas não se emendam e seguem achando que são o centro do mundo, quiçá de todo o universo. Evidentemente, não são.
Há quem ache que egoísmo seja sinônimo de amor próprio. Em certa medida, é mesmo. Só que é esse sentimento, mas levado ao extremo. É uma imensa distorção, uma aberrante falta de senso de proporção. É mais, muito mais do que amor próprio. É autopaixão, autoveneração, quase deificação de si próprio.
Estas reflexões vêm a propósito de uma experiência (amaríssima) que tive dia desses e que me tornou mais descrente do que já estava da minha espécie: a humana. Senti vontade de “pedir demissão” dela e ser outro animal qualquer, movido exclusivamente por instinto, caso isso fosse possível.
Numa sexta-feira dessas, saí do trabalho, como sempre faço, por volta das 22 horas (exerço a atividade de coordenador da edição do Diário Oficial do Município de Campinas), cansado da lide da semana, com muito frio e, sobretudo, faminto. Trafegava – tendo minha mulher ao volante (ela que é a motorista da casa) – por uma das principais e mais movimentadas avenidas da cidade, quando me deparei com uma cena que me chocou e envergonhou e que, creio, jamais irei esquecer enquanto viver.
Ao passar em frente a um famoso restaurante desta grande metrópole interiorana em que resido, a essa altura repleto de pessoas saboreando seus sofisticados pratos – que faz divisa com uma padaria, também com quantidade enorme de fregueses – observei, na calçada ao lado, um homem, aparentando uns 40 anos de idade (deveria ter bem menos), maltrapilho, sujo e magérrimo, revirando um enorme latão de lixo de um dos estabelecimentos.
O tal indigente retirava não plásticos e papéis para vender, como se poderia supor, mas restos de comida, que devorava como se fossem o manjar dos deuses. Ordenei, imediatamente, à mulher que parasse o veículo. Queria comprar alguma coisa decente e dá-la ao infeliz para comer. A esposa até que tentou. Mas... os motoristas que vinham atrás, mesmo sendo noite, fizeram questão de promover um buzinaço histórico, um alarido infernal, acompanhado de um coro de impropérios contra nós dois. Não pudemos parar. Ninguém parou.
Apesar do adiantado da hora, milhares de pessoas transitavam por aquela calçada. Não vi nenhuma se deter sequer para olhar em direção ao indigente. Passavam por ele como se fosse invisível, ou se tratasse de um poste, de uma pedra ou de outro objeto qualquer. Certamente, não agiriam assim nem diante de um cão. Segui para casa, acabrunhado, triste, enojado e envergonhado, de mim, e do mundo.
Como se pode admitir que um ser humano, dotado de espírito e de razão, certamente com sonhos e vontades como eu, como você e como todos, tenha que se submeter àquele vexame? E ele não procurava, no lixo, nenhuma garrafa de cachaça ou de uísque, que certamente não encontraria, para se embriagar, mas comida, mesmo que estragada, contaminada sabe-se lá por quantas e quais bactérias, para saciar a fome!
Muitos poderiam dizer, para aplacar as consciências (se é que as têm): “Deve ser um vagabundo. Por que não vai trabalhar?”. É fácil, e cômodo, chegar a esse tipo de conclusão quando se está bem-alimentado, não raro superalimentado, bem agasalhado (estava um frio de rachar nessa noite) e a bordo de um carrão do ano. O que essas pessoas sabiam a respeito daquele infeliz? Quantas portas, certamente, não lhe foram fechadas na cara, ao procurar ganhar honestamente seu pão? Por quanta humilhação não teve que passar? Quanto preconceito não esteve envolvido na forma com que o trataram?
Ademais, mesmo que se tratasse de algum vagabundo (não creio que fosse), este é motivo suficiente para se ver obrigado a esse ato de suprema carência, que é o de procurar comida no lixo? Esse pobre infeliz não estava roubando (e ademais, se o fizesse, naquele momento, sequer seria crime, pois teria a atenuante da “extrema necessidade”, embora algum imbecil certamente o encarcerasse e jogasse a chave fora como se fosse o mais perigoso bandido) e sequer estava ameaçando ou constrangendo quem quer que fosse. Estava se limitando a exercer, no seu máximo limite, o instinto de sobrevivência.
Que vergonha senti, naquele momento, e sinto ainda hoje!. Que nojo desse sistema, desse arremedo de civilização, desse engodo denominado humanidade, que permite que cenas como essa aconteçam e se repitam em profusão em tantas e tantas partes do mundo. Em essência, no que somos melhores do que aquele maltrapilho indigente? Somos imortais? Claro que não! Levaremos para além-túmulo estas bobagens a que damos tão grande valor e que não passam de quinquilharias, a que chamamos de “riqueza”? Também não!
Não me admiro, pois, que haja tanta gente solitária, amarga e entendiada no mundo. Não me admiro mais do fato de haver tanta tristeza planeta afora. Esse é o preço que os egoístas têm, e sempre terão, que pagar por sua autoveneração, que chega a descambar para a autodeificação. Chego a esta conclusão baseado nisto que Anatole France um dia escreveu: “Estar triste é, quase sempre, pensar em si mesmo”. Bem feito, pois, por esta tristeza que, certamente, é muitíssimo menor do que a do indigente que saciou a fome com os restos que colheu numa lata de lixo!

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