Cordiais inimigos
Pedro J. Bondaczuk
As suspeitas, e até evidências, da responsabilidade da África do Sul no acidente aéreo que causou a morte do presidente moçambicano, Samora Machel, aumentaram nas últimas horas. Tornaram-se mais plausíveis, principalmente, depois dos depoimentos de dois sobreviventes do até aqui mal-explicado desastre.
O piloto soviético do Tupolev 134-A que caiu disse, no hospital em que está internado, estar completamente convencido de que a aeronave foi derrubada. Pena que, logo a seguir, se fechou, num inexplicável mutismo, deixando de fundamentar, com fatos, as razões de sua suspeita.
Outro passageiro que se salvou foi mais incisivo. Garantiu ter ouvido, quase no instante da queda do aparelho, um zunido semelhante ao disparo de uma arma de fogo de grosso calibre, seguida de uma forte explosão.
As autoridades sul-africanas, como seria de se esperar, desmentem, de todas as maneiras, essas acusações. De qualquer forma, em virtude das circunstâncias, fica a suspeita de um ato criminoso que, se confirmado, caracterizaria uma flagrante ação de guerra, que poderia ter desdobramentos muito maiores para a já nada simpática imagem da África do Sul entre a esmagadora maioria dos países da comunidade internacional.
Não se compreende como um piloto experiente, acostumado a esse tipo de aparelho (por sinal, fabricado em seu país), pudesse perder o controle da aeronave da maneira que perdeu, a ponto de confundir um vilarejo de Suazilândia com o aeroporto de Maputo, a capital moçambicana.
É verdade que o tempo estava ruim e que não era propício ao vôo. Mas a tripulação mantinha-se em contato permanente com torres de controle aéreo quer em Moçambique, quer na África do Sul. Algo despistou o piloto, fazendo com que saísse da rota a seguir. O que, de fato, aconteceu, possivelmente, jamais se venha a saber. Principalmente se a imprensa internacional não tiver acesso às investigações ou, se tiver, não se dispuser a divulgar. Mas que a suspeita contra o governo sul-africano vai permanecer (talvez para sempre), isso é inegável.
Aliás, baseados nessa possibilidade, ou seja, de que o Tupolev tenha sido abatido, é que milhares de zimbabweanos se descontrolaram, ontem, em Harare e promoveram um enorme distúrbio nas ruas da cidade, o maior e mais grave desde que o Zimbabwe conquistou a sua independência, em 1980.
Os ânimos das populações negras que cercam a África do Sul não têm sido dos mais pacíficos, ultimamente, em relação ao regime racista sul-africano. É certo que esses países nada podem fazer contra Pretória, muita mais forte, do ponto-de-vista militar, do que eles e, por mais estranho que isso possa parecer, sua única base de sustentação econômica, a despeito do antagonismo e da inimizade que os separam.
Zâmbia, Zimbabwe, Botswana e Moçambique, Estados da chamada “linha de frente” no combate ao apartheid de seu poderoso vizinho, dependem, vitalmente, dele para sobreviver. Os melhores salários que seus trabalhadores recebem vêm de empresas sul-africanas. A totalidade de suas exportações vai ou diretamente para a África do Sul, ou utiliza os portos desse país para ser escoada.
Há, portanto, um relacionamento bastante singular entre estes cinco “cordiais inimigos”. O regime de Pretória usa, aliás, essa ajuda que presta como trunfo para melhorar sua desgastadíssima imagem perante a comunidade internacional. Ameaça, com grande freqüência, retaliar economicamente os vizinhos hostis caso seus produtos sofram qualquer embargo nos mercados da Europa e dos Estados Unidos. E agir dessa forma não será nada difícil.
Bastará, por exemplo, à África do Sul impedir que os trens procedentes de Zâmbia ou do Zimbabwe circulem em seu território. Ou que seus portos não recebam e não despachem os produtos desses países. Ou que não liberem o que eles importaram. Como se vê, o governo sul-africano tem em suas mãos a irresistível arma da chantagem.
Com uma simples decisão burocrática, pode pôr em risco até a sobrevivência de imensos contingentes populacionais, que vivem em intensa pobreza, se não na indigência, sem que seja necessário disparar um único tiro. Como se vê, é um relacionamento surrealista, mas rigorosamente é o que acontece nessa região da África austral.
Claro que se trata de uma panela de pressão, que tende a explodir um dia, se nada for feito para modificar essa situação. As conseqüências desses ódios recíprocos acumulados são imprevisíveis e ficam por conta de cada um imaginar quais possam ser. Por isso, anotem: a morte de Samora Machel não vai demorar para ser convenientemente abafada. Ou algum ingênuo acredita que não?.
(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 22 de outubro de 1986).
Pedro J. Bondaczuk
As suspeitas, e até evidências, da responsabilidade da África do Sul no acidente aéreo que causou a morte do presidente moçambicano, Samora Machel, aumentaram nas últimas horas. Tornaram-se mais plausíveis, principalmente, depois dos depoimentos de dois sobreviventes do até aqui mal-explicado desastre.
O piloto soviético do Tupolev 134-A que caiu disse, no hospital em que está internado, estar completamente convencido de que a aeronave foi derrubada. Pena que, logo a seguir, se fechou, num inexplicável mutismo, deixando de fundamentar, com fatos, as razões de sua suspeita.
Outro passageiro que se salvou foi mais incisivo. Garantiu ter ouvido, quase no instante da queda do aparelho, um zunido semelhante ao disparo de uma arma de fogo de grosso calibre, seguida de uma forte explosão.
As autoridades sul-africanas, como seria de se esperar, desmentem, de todas as maneiras, essas acusações. De qualquer forma, em virtude das circunstâncias, fica a suspeita de um ato criminoso que, se confirmado, caracterizaria uma flagrante ação de guerra, que poderia ter desdobramentos muito maiores para a já nada simpática imagem da África do Sul entre a esmagadora maioria dos países da comunidade internacional.
Não se compreende como um piloto experiente, acostumado a esse tipo de aparelho (por sinal, fabricado em seu país), pudesse perder o controle da aeronave da maneira que perdeu, a ponto de confundir um vilarejo de Suazilândia com o aeroporto de Maputo, a capital moçambicana.
É verdade que o tempo estava ruim e que não era propício ao vôo. Mas a tripulação mantinha-se em contato permanente com torres de controle aéreo quer em Moçambique, quer na África do Sul. Algo despistou o piloto, fazendo com que saísse da rota a seguir. O que, de fato, aconteceu, possivelmente, jamais se venha a saber. Principalmente se a imprensa internacional não tiver acesso às investigações ou, se tiver, não se dispuser a divulgar. Mas que a suspeita contra o governo sul-africano vai permanecer (talvez para sempre), isso é inegável.
Aliás, baseados nessa possibilidade, ou seja, de que o Tupolev tenha sido abatido, é que milhares de zimbabweanos se descontrolaram, ontem, em Harare e promoveram um enorme distúrbio nas ruas da cidade, o maior e mais grave desde que o Zimbabwe conquistou a sua independência, em 1980.
Os ânimos das populações negras que cercam a África do Sul não têm sido dos mais pacíficos, ultimamente, em relação ao regime racista sul-africano. É certo que esses países nada podem fazer contra Pretória, muita mais forte, do ponto-de-vista militar, do que eles e, por mais estranho que isso possa parecer, sua única base de sustentação econômica, a despeito do antagonismo e da inimizade que os separam.
Zâmbia, Zimbabwe, Botswana e Moçambique, Estados da chamada “linha de frente” no combate ao apartheid de seu poderoso vizinho, dependem, vitalmente, dele para sobreviver. Os melhores salários que seus trabalhadores recebem vêm de empresas sul-africanas. A totalidade de suas exportações vai ou diretamente para a África do Sul, ou utiliza os portos desse país para ser escoada.
Há, portanto, um relacionamento bastante singular entre estes cinco “cordiais inimigos”. O regime de Pretória usa, aliás, essa ajuda que presta como trunfo para melhorar sua desgastadíssima imagem perante a comunidade internacional. Ameaça, com grande freqüência, retaliar economicamente os vizinhos hostis caso seus produtos sofram qualquer embargo nos mercados da Europa e dos Estados Unidos. E agir dessa forma não será nada difícil.
Bastará, por exemplo, à África do Sul impedir que os trens procedentes de Zâmbia ou do Zimbabwe circulem em seu território. Ou que seus portos não recebam e não despachem os produtos desses países. Ou que não liberem o que eles importaram. Como se vê, o governo sul-africano tem em suas mãos a irresistível arma da chantagem.
Com uma simples decisão burocrática, pode pôr em risco até a sobrevivência de imensos contingentes populacionais, que vivem em intensa pobreza, se não na indigência, sem que seja necessário disparar um único tiro. Como se vê, é um relacionamento surrealista, mas rigorosamente é o que acontece nessa região da África austral.
Claro que se trata de uma panela de pressão, que tende a explodir um dia, se nada for feito para modificar essa situação. As conseqüências desses ódios recíprocos acumulados são imprevisíveis e ficam por conta de cada um imaginar quais possam ser. Por isso, anotem: a morte de Samora Machel não vai demorar para ser convenientemente abafada. Ou algum ingênuo acredita que não?.
(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 22 de outubro de 1986).
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