Sunday, December 30, 2007

DIRETO DO ARQUIVO


Onze anos de omissão


Pedro J. Bondaczuk


A fome que assola o continente africano, colocando em sério risco a vida de 21 milhões de seres humanos (que podem morrer de inanição em seis meses, caso não ocorra uma mobilização internacional de grande porte em seu favor) tinha condições de ser evitada.
Afinal, são onze anos de seca prolongada, que afeta vastas regiões da África e apenas agora, quando a situação dos famintos é desesperadora, a opinião pública internacional acordou para o problema. E não foi por falta de alerta que isso ocorreu.
Em 1980, quando o papa João Paulo II visitou pela primeira vez o continente, alertou, em Uagadugu, a capital de um dos três países mais indigentes do mundo, o Alto Volta, que a população da área subsaariana do Sahel (pouco abaixo do deserto do Saara), estava morrendo. Que a alimentação da maioria das pessoas consistia de uma rala papa de farinha de mandioca com água, e que mesmo quem “tapeava o estômago” com esta indigesta mistura, poderia se considerar privilegiada. As palavras do Sumo Pontífice caíram no vazio. Bateram em ouvidos moucos.
Durante sua segunda excursão à África, o Papa, nos seis países pelos quais passou, voltou a alertar as sociedades ricas do consumismo e do desperdício para o quadro desolador, dantesco, da miséria que testemunhou. E notem que a Etiópia, na oportunidade, não estava sendo sequer lembrada.
Esse país está localizado no lado oposto do continente onde o problema vinha sendo constatado na ocasião, ou seja, no chamado “Chifre da África”. Se hoje sete milhões de etíopes estão na iminência da morte pela fome, imaginem quantos, da região do Sahel, não estarão passando por idêntico dilema, e cujas condições materiais são tão precárias, ao ponto de nem mesmo poderem alertar o mundo para o seu drama! Quantos não devem ter morrido, anônimos, esquecidos, como bichos, desassistidos e ignorados completamente por seus irmãos de espécie!
A FAO adverte que serão necessárias quatro milhões de toneladas de alimentos, durante um ano, para impedir a ocorrência da maior tragédia que o mundo já teve notícia, sob os olhares, muitas vezes complacentes e omissos, de povos que em passado não muito remoto enriqueceram às custas destas vítimas indefesas.
E pensar que enquanto crianças da Etiópia, Alto Volta, Níger, Mali, Chade, Nigéria e Somália, para citar alguns dos países ameaçados, têm suas vidas precocemente suprimidas por absoluta inanição, milhões de litros de leite são dados aos porcos. Toneladas de aveia alimentam cavalos, galinhas e bois; milhões de sacas de grãos são queimadas para subirem de cotação.
É revoltante! Não que os animais não mereçam atenção, até porque esse tratamento lhes é proporcionado com um sentido exclusivamente utilitário. Para que se tornem gordos e forneçam mais carne para as pessoas que os empanturram também se empanturrarem.
Mas, francamente, por mais insensível que alguém possa ser, ninguém haverá de contestar que uma criança, seja ela de que povo, raça, cor ou nacionalidade for, vale mais do que o mais precioso e útil dos animais. Contradizer isso, equivale a negar a própria condição racional do homem.

(Artigo publicado na página 23, Internacional, do Correio Popular, em 25 de novembro de 1984).

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