Monday, April 07, 2008

Várias realidades


Pedro J. Bondaczuk

Os que apregoam que são “realistas” na maioria das vezes sequer sabem definir o que seja realidade e muito menos fazer distinção entre esta e sonhos e idealizações. Trata-se de mera máscara para disfarçar o pessimismo com que encaram a vida. E o pessimista, mesmo que não se dê conta, é um doente. Encara tudo e todos sob um prisma negativo, sofre sem necessidade e parece se comprazer com o sofrimento.
O que é o real? O nascimento? Alguém é capaz de determinar por que, entre tantos espermatozóides potencialmente geradores de vida, justamente o que lhe originou foi o que fecundou um óvulo específico?
“Ah, a realidade está na morte”, dirão alguns. Por que, então, algumas pessoas morrem, às vezes sem completar um reles dia de vida (ou nem mesmo uma hora sequer), e outras, com doenças incuráveis, chegam a sobreviver por cem anos? Não há “uma realidade”, mas “múltiplas realidades”, dependendo de quem seja o observador..
Há um trecho do romance “Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi, ao qual pouca gente atentou, e que serve a caráter para ilustrar a minha tese. Analisemo-lo por partes. O romancista russo escreve: “Uma abelha pousada em uma flor picou uma criança. E a criança tem medo das abelhas e diz que o objetivo delas é picar os homens”. Não lhe passa, claro, pela cabeça que esse é, certamente, o inseto mais útil ao homem que há em toda a natureza. Muito menos sua incrível “organização social”, de nos causar pasmo e inveja. A criança julga a “realidade” pela experiência, única, que teve em relação a esse bichinho: a da ferroada.
Tolstoi prossegue: “O poeta admira a abelha que trabalha no cálice da flor e diz que o objetivo da abelha é recolher o aroma das flores”. Para ele, é. Ninguém o convencerá do contrário. Comprometido com a beleza, o poeta faz dela a sua realidade. Não se dá conta da agressividade do inseto (pois não foi picado por ele) e nem da sua utilidade, já que o mundo em que vive é outro, com valores diversos dos das pessoas tidas como práticas..
E o escritor russo acrescenta: “Um apicultor, notando que a abelha recolhe o pólen e o néctar e os leva para a sua colméia, diz que o objetivo da abelha é recolher o mel”. Afinal, essa é a sua atividade. Aprendeu a direcionar o trabalho instintivo do inseto em seu próprio benefício. Mas não há consenso nem mesmo entre essa categoria, conforme Tolstoi destaca: “Outro apicultor, tendo estudado de mais perto a vida do enxame, diz que a abelha recolhe o pólen e o néctar para alimentar a larva e criar a rainha, que o seu objetivo é a continuação da espécie”.
Claro que não fez nenhuma descoberta bombástica e transcendental. Limitou-se a constatar o óbvio. Todo ser vivente, animal ou vegetal, objetiva, antes e acima de tudo, por instinto, a sua continuidade (entre os quais, claro, inclui-se o homem). Tolstoi, porém, não pára por aí. Afirma: “O botânico nota que ao passar com o pólen da flor dióica para a flor fêmea, a abelha fecunda-a, e vê nisso seu objetivo”. E não está errado, evidentemente.
Mas esta não é a única finalidade da abelha e sequer a principal. Para o pesquisador, porém, é. Como no caso do apicultor, contudo, não há consenso também entre os especialistas desta área. É o que Tolstoi afirma: “Um outro observando a migração das plantas, verifica que a abelha contribui para ela, e pode dizer que tal é o objetivo da abelha”.
Instigante, no entanto, é a conclusão do escritor, com a qual concordo plenamente (daí tomar este trecho do seu célebre romance para ilustrar estas considerações). Tolstoi observa: “Mas o fim último da abelha não se reduz ao primeiro, nem ao segundo, nem ao terceiro dos objetivos que o espírito humano é capaz de descobrir. Quanto mais o espírito humano se eleva na descoberta desses objetivos, mais evidente se torna que o fim último lhe é inacessível”.
Nossos sentidos, notadamente o da visão, nos iludem e, com muita freqüência, nos induzem ao erro. Nem tudo o que vemos é, de fato, o que aparenta. E, não raro, cometemos enormes injustiças ao julgar uma pessoa apenas pela aparência, sem atentar para a sua essência. Se não me falha a memória, foi Saint’Éxupery que afirmou que “só se vê bem com o coração”. Não com o órgão físico em si, é evidente, mas com sentimento, com compreensão e com interesse.
O essencial para a nossa vida – como a fé, a esperança, a bondade e a solidariedade entre outros – é invisível aos olhos. Só identificamos esses valores, que nos caracterizam como pessoas inteligentes, com o nobre instrumento da razão. A mesma realidade é vista de formas diferentes pelas pessoas, dependendo da sua formação, curiosidade, imaginação e criatividade. Constitui-se, portanto, em “várias realidades”. Multiplica-se em progressão geométrica.
Umas pessoas, dão asas à fantasia, vivem nas nuvens e raramente, ou quase nunca têm os pés no chão. Outras, não sabem enxergar além das aparências, do concreto, do cimento e do asfalto e não usufruem do delicioso dom de sonhar. O ideal é a mistura, bem dosada, do real e do ideal.
Idel Becker escreveu: “Duas pessoas olham para fora através da mesma janela: uma vê o pântano e a outra as estrelas”. Uma terceira, porém, a mais sábia, posto que criativa, tem uma visão mais ampla: vislumbra, simultaneamente, tanto o pântano, de águas podres e estagnadas, quanto as estrelas que brilham além, no firmamento. Como, pois, falar de “realidade” e não de “realidades”?!

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