Friday, April 25, 2008

Textos piegas


Pedro J. Bondaczuk

Os que lidam com textos, e fazem deles seu meio de vida, têm que atentar aos mínimos detalhes naquilo que escrevem. Precisam evitar, a todo custo, que o que colocarem no papel (ou na telinha do computador, como queiram) enseje múltiplas interpretações, diferentes das que quis expressar. Não se pode ser ambíguo, obscuro e nem pedante, sob pena daquilo que o redator escreveu vir a depor contra ele em algum tempo qualquer. Clareza, concisão e precisão são, portanto, fundamentais em todo e qualquer texto.
Nunca sabemos quem irá ler uma crônica ou um artigo nossos, por exemplo. Tanto pode ser um sujeito inteligente e esclarecido, quanto algum infeliz analfabeto funcional, incapaz de assimilar, e de entender, o que lê, embora ache que saiba fazer isso. Curiosamente, é justamente esse tipo que mais se arroga, invariavelmente, ao papel de crítico, tentando ridicularizar quem escreve, embora descambando (ele sim) para o ridículo.
Quando decidi abrir mão da minha condição de comentarista político – função que exerci, diariamente, por longos quinze anos, em vários jornais que trabalhei – para assumir o papel de cronista, uma das minhas preocupações sempre foi a de evitar a elaboração (e a publicação, claro) de textos que pudessem soar “piegas”.
Quem lida com esse gênero, caracterizado pela informalidade, muitas vezes corre esse risco, principalmente ao abordar episódios pessoais, íntimos, que lhe são caros e que talvez não os sejam para os leitores. Se não tomar cuidado com certos temas – verdadeiras armadilhas para os redatores – pode, de fato, descambar para a pieguice.
Tive, há algum tempo, um incidente desagradável, a esse propósito, no Comunique-se. Foi em relação a uma crônica que publiquei em minha coluna das quintas-feiras, neste espaço Literário, em que abordei um episódio que me marcou profundamente na infância. Tratava-se de um texto sóbrio, leve, sem adjetivos ou tentativas banais de fazer literatura. Nem se tratava de algo inédito ou escrito às pressas, como somos, às vezes, obrigados a fazer, para honrar compromissos (o que, convenhamos, é um risco imenso).
A crônica em questão já havia sido publicada em diversos jornais, revistas e sites da internet. E a aceitação, até então, havia sido unânime por parte dos leitores (pelo menos dos que se manifestaram com comentários). Qual não foi minha surpresa, porém, ao me deparar com determinada manifestação de alguém, que se dizia “usuário do portal”, alinhavando uma série de considerações nada lisonjeiras ao que escrevi. E não apenas em relação ao texto (que estava na página para quem quisesse ler e avaliar), mas, sobretudo, sobre a minha pessoa (que tenho certeza absoluta que esse indivíduo não conhecia e ainda não conhece).
Entre tantas coisas que o tal “crítico” de algibeira escreveu, a que mais me irritou foi ter classificado a referida crônica de “piegas”. Houve reações imediatas (e espontâneas) em minha defesa, como a do escritor Urariano Mota, cujo talento admiro e cuja capacidade de análise considero insuspeita, dada sua trajetória no jornalismo e, sobretudo, na literatura.
Meu primeiro impulso foi o de responder de forma mal-criada a essa má-criação. Isso, porém, não faz parte do meu comportamento. Respeito, profundamente, a opinião de qualquer leitor, principalmente aquelas que divirjam das minhas. Estou, sempre estive e sempre estarei aberto às críticas, às quais me submeto (quando pertinentes) e tomo como referenciais para me tornar um redator melhor.
O tal indivíduo, porém, não estava me criticando. Estava fazendo “chacota” com o meu texto, o que é muito diferente. Ainda assim, decidi analisar sua crítica e tentar encontrar algo de bom, de útil e de aproveitável nela. Fui ao dicionário para refrescar a memória sobre o sentido exato da palavra “piegas”. Aurélio Buarque Ferreira diz que é o indivíduo “ridiculamente sentimental”. “Será que sou assim?!”, indaguei-me, atônito. Concluí que não.
Fiz novas consultas. Fui, por exemplo, ao Dicionário Mor da Língua Portuguesa, do professor Cândido de Oliveira. E ele define essa palavra assim: “piegas – pessoa embaraçada, atoleimada, ridiculamente assustadiça, afetada”. “Meu Deus do céu, será que sou tudo isso, sem me dar conta?!”. Tenho, é certo, inúmeros defeitos pessoais e algumas tantas deficiências de estilo, não nego. Mas piegas?! Não, definitivamente, não sou! E a dita crônica também não é.
Esse incidente trouxe-me à memória outro, ocorrido há mais de 40 anos. Recebi, certa feita, este poema de uma garota (a quem amei demais, e que, na época, era a minha namorada):

Menino grande

Eu gosto tanto do carinho quer ele me faz
Faz tanto bem o beijo que ele me traz
As horas passam, ligeiras, felizes
Sem a gente sentir.

Ele está ao meu lado, com o corpo cansado
Precisa dormir.

Dorme menino grande
Que eu estou perto de ti
Sonha o que bem quiseres
Que eu não sairei daqui.

Ó vento não faz barulho
Meu amor está dormindo
E o mar não bata com força
Por que ele está dormindo.

Dorme, menino grande,
Que eu estou perto de ti.
Sonha o que bem quiseres
Que eu não sairei daqui.

Mostrei estes versos a um amigo, sem revelar a autoria, e pedi sua opinião. Qual não foi a minha surpresa e, principalmente, minha decepção quando ele classificou, na maior cara dura, sem ao menos refletir no que dizia, essa jóia poética de “piegas”! Não pensei duas vezes. Rompi, de imediato, sem mais delongas ou explicações, a amizade. Nunca mais sequer conversei com essa pessoa.
Afinal, não tenho nada em comum com indivíduos de mau-gosto e que são, sobretudo, mal-informados. Estes versos, para quem não sabe (ou ainda não identificou) são do magnífico poeta, cronista, boêmio pernambucano (e, sobretudo, extraordinária figura humana), Antonio Maria Araújo de Morais, que foi um dos mais inspirados e consagrados compositores da MPB de todos os tempos. E a letra em questão, tão estupidamente avaliada e infantilmente criticada, foi estrondoso sucesso de público e de vendas, na voz gostosa e acariciante de Nora Ney...

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