Pedro J. Bondaczuk
(CONTINUAÇÃO)
QUALIDADE COMO MARCA
A grande marca da poesia de Cecília Meirelles é a qualidade. É a limpidez e a profundidade dos seus versos. É a magia das suas metáforas, sempre bem colocadas, e a fluência e musicalidade dos seus poemas. Nossa poetisa maior transfigurava o cotidiano. Ela mesma dizia: “A poesia é grito, mas transfigurado”.
Mencionar Cecília Meirelles, portanto, sem transcrever ao leitor alguns de seus poemas, sonegar-lhe inesquecíveis momentos de rara beleza e encantamento. Claro que não farei isso. Gostaria de transcrever não um, mas milhares de seus versos repletos de lirismo, mas o espaço não me permite. Mas sintam a riqueza de imagens e a carga de emoções existentes nos versos abaixo:
Os dias felizes
Os dias felizes estão entre as árvores como
Os pássaros:
Viajam nas nuvens,
Correm nas águas,
Desmancham-se na areia.
Todas as palavras são inúteis,
Desde que se olha para o céu.
A doçura maior da vida
Flui na luz do sol,
Quando se está em silêncio.
Até os urubus são belos,
No largo círculo dos dias sossegados.
Apenas entristece um pouco
Este ovo azul que as crianças apedrejaram:
Formigas ávidas devoram
A albumina do pássaro frustrado.
Caminhávamos devagar,
Ao longo desses dias felizes,
Pensando que a Inteligência
Era uma sombra da Beleza.
A expressividade, a espontaneidade, a fluidez dos versos de Cecília Meirelles fazem com que seus poemas se transformem em pinturas, em telas, em painéis coloridos e vivos. A poetisa substitui as tintas e a paleta e “pinta” com as palavras, o que, convenhamos, não é exercício dos mais fáceis. Exemplo? Os versos a seguir:
Música
Noite perdida,
Não te lamento:
Embarco a vida
No pensamento,
Busco a alvorada
Do sonho isento,
Puro e sem nada,
--- Roda encarnada,
Intacta, ao vento.
Noite perdida,
Noite encontrada,
Morta vivida
E ressuscitada...
(Asa de lua
Quase parada,
Mostra-me a sua
Sombra escondida,
Que continua
A minha vida
Num chão profundo!
--- Raiz prendida
A um outro mundo).
Rosa encarnada
Do sonho isento,
Muda alvorada
Que o pensamento
Deixa confiada.
Algo perceptível na poesia de Cecília Meirelles é a sua preocupação com o tempo. Ou seja, com o que fica e com o que não fica retido na memória, de bom ou de ruim, de felicidade ou de angústia, de amor ou de indiferença. Como os versos a seguir, por exemplo:
Memória
Minha família anda longe,
Com trajos de circunstância:
Uns converteram-se em flores,
Outros em pedra, água, líquen;
Alguns de tanta distância,
Nem têm vestígios que indiquem
Uma certa orientação.
Minha família anda longe,
--- Na Terra, na Lua, em Marte –
Uns dançando pelos ares,
Outros perdidos no chão.
Tão longe, a minha família!
Tão dividida em pedaços!
Um pedaço em cada parte...
Pelas esquinas do tempo,
Brincam meus irmãos antigos:
Uns anjos, outros palhaços...
Seus vultos de labareda
Rompem-se como retratos
Feitos em papel de seda.
Vejo lábios, vejo braços,
--- Por um momento, persigo-os:
De repente, os mais exatos
Perdem sua exatidão.
Se falo, nada responde.
Depois, tudo vira vento,
E nem o meu pensamento
Pode compreender por onde
Passaram nem onde estão...
Minha família anda longe.
Mas eu sei reconhecê-la:
Um cílio dentro do oceano,
Um pulso sobre uma estrela,
Uma ruga num caminho
Caída como pulseira,
Um joelho em cima da espuma,
Um movimento sozinho
Aparecido na poeira...
Mas tudo vai sem nenhuma
Noção do destino humano,
De humana recordação.
Minha família anda longe.
Reflete-se em minha vida,
Mas não acontece nada:
Por mais que eu esteja lembrada,
Ela se faz de esquecida;
Não há comunicação!
Uns são nuvens, outros lesma...
Vejo as asas, sinto os passos
De meus anjos e palhaços,
Numa ambígua trajetória
De que sou o espelho e a história.
Murmuro para mim mesma:
‘É tudo imaginação!”
Mas sei que tudo é memória...
A lírica de Cecília Meirelles, como ficou resumido acima, demonstra, sobejamente, que a presença da mulher, na poesia brasileira, se não é numerosa, ou seja, quantitativa, é, sobretudo, qualitativa. Pode haver alguma dúvida face à magia dos versos reproduzidos acima?!!
(CONTINUA)
(CONTINUAÇÃO)
QUALIDADE COMO MARCA
A grande marca da poesia de Cecília Meirelles é a qualidade. É a limpidez e a profundidade dos seus versos. É a magia das suas metáforas, sempre bem colocadas, e a fluência e musicalidade dos seus poemas. Nossa poetisa maior transfigurava o cotidiano. Ela mesma dizia: “A poesia é grito, mas transfigurado”.
Mencionar Cecília Meirelles, portanto, sem transcrever ao leitor alguns de seus poemas, sonegar-lhe inesquecíveis momentos de rara beleza e encantamento. Claro que não farei isso. Gostaria de transcrever não um, mas milhares de seus versos repletos de lirismo, mas o espaço não me permite. Mas sintam a riqueza de imagens e a carga de emoções existentes nos versos abaixo:
Os dias felizes
Os dias felizes estão entre as árvores como
Os pássaros:
Viajam nas nuvens,
Correm nas águas,
Desmancham-se na areia.
Todas as palavras são inúteis,
Desde que se olha para o céu.
A doçura maior da vida
Flui na luz do sol,
Quando se está em silêncio.
Até os urubus são belos,
No largo círculo dos dias sossegados.
Apenas entristece um pouco
Este ovo azul que as crianças apedrejaram:
Formigas ávidas devoram
A albumina do pássaro frustrado.
Caminhávamos devagar,
Ao longo desses dias felizes,
Pensando que a Inteligência
Era uma sombra da Beleza.
A expressividade, a espontaneidade, a fluidez dos versos de Cecília Meirelles fazem com que seus poemas se transformem em pinturas, em telas, em painéis coloridos e vivos. A poetisa substitui as tintas e a paleta e “pinta” com as palavras, o que, convenhamos, não é exercício dos mais fáceis. Exemplo? Os versos a seguir:
Música
Noite perdida,
Não te lamento:
Embarco a vida
No pensamento,
Busco a alvorada
Do sonho isento,
Puro e sem nada,
--- Roda encarnada,
Intacta, ao vento.
Noite perdida,
Noite encontrada,
Morta vivida
E ressuscitada...
(Asa de lua
Quase parada,
Mostra-me a sua
Sombra escondida,
Que continua
A minha vida
Num chão profundo!
--- Raiz prendida
A um outro mundo).
Rosa encarnada
Do sonho isento,
Muda alvorada
Que o pensamento
Deixa confiada.
Algo perceptível na poesia de Cecília Meirelles é a sua preocupação com o tempo. Ou seja, com o que fica e com o que não fica retido na memória, de bom ou de ruim, de felicidade ou de angústia, de amor ou de indiferença. Como os versos a seguir, por exemplo:
Memória
Minha família anda longe,
Com trajos de circunstância:
Uns converteram-se em flores,
Outros em pedra, água, líquen;
Alguns de tanta distância,
Nem têm vestígios que indiquem
Uma certa orientação.
Minha família anda longe,
--- Na Terra, na Lua, em Marte –
Uns dançando pelos ares,
Outros perdidos no chão.
Tão longe, a minha família!
Tão dividida em pedaços!
Um pedaço em cada parte...
Pelas esquinas do tempo,
Brincam meus irmãos antigos:
Uns anjos, outros palhaços...
Seus vultos de labareda
Rompem-se como retratos
Feitos em papel de seda.
Vejo lábios, vejo braços,
--- Por um momento, persigo-os:
De repente, os mais exatos
Perdem sua exatidão.
Se falo, nada responde.
Depois, tudo vira vento,
E nem o meu pensamento
Pode compreender por onde
Passaram nem onde estão...
Minha família anda longe.
Mas eu sei reconhecê-la:
Um cílio dentro do oceano,
Um pulso sobre uma estrela,
Uma ruga num caminho
Caída como pulseira,
Um joelho em cima da espuma,
Um movimento sozinho
Aparecido na poeira...
Mas tudo vai sem nenhuma
Noção do destino humano,
De humana recordação.
Minha família anda longe.
Reflete-se em minha vida,
Mas não acontece nada:
Por mais que eu esteja lembrada,
Ela se faz de esquecida;
Não há comunicação!
Uns são nuvens, outros lesma...
Vejo as asas, sinto os passos
De meus anjos e palhaços,
Numa ambígua trajetória
De que sou o espelho e a história.
Murmuro para mim mesma:
‘É tudo imaginação!”
Mas sei que tudo é memória...
A lírica de Cecília Meirelles, como ficou resumido acima, demonstra, sobejamente, que a presença da mulher, na poesia brasileira, se não é numerosa, ou seja, quantitativa, é, sobretudo, qualitativa. Pode haver alguma dúvida face à magia dos versos reproduzidos acima?!!
(CONTINUA)
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