Sunday, October 28, 2007

Guerra dos sexos - Parte I


Pedro J. Bondaczuk

(CONTINUAÇÃO)

I - Agressor é conhecido


Estudos feitos por especialistas norte-americanos, divulgados em 1996, concluem que uma, em cada três mulheres no mundo, sofre estupro, ou abuso sexual, em alguma fase da sua vida! E que a maioria absoluta dos agressores é constituída por pessoas conhecidas da vítima.

São bastante numerosos, inclusive, os casos de incesto, em que o estuprador é o próprio pai ou irmão, que reincidem, seguidamente (às vezes por anos a fio) no crime, sem que a pessoa agredida tenha sequer a coragem de fazer a denúncia, por se sentir, de alguma forma, ameaçada. Vários livros foram escritos a respeito. Filmes e peças teatrais foram apresentados. Estudos e mais estudos têm sido divulgados. Tudo para tentar entender o que leva os homens a agir dessa forma.

Um dos livros mais completos sobre o tema, lançados ultimamente no Brasil, traz um título bastante sugestivo: "Eu Nem Imaginava que Era Estupro". Foi escrito por Robin Warshaw e publicado pela, Editora Rosa dos Ventos. É baseado num relatório da revista MS, uma das mais polêmicas e tradicionais dos Estados Unidos, dirigida por Gloria Steinem, ex-coelhinha da Playboy que se tornou escritora feminista internacionalmente famosa.

O livro ensina, entre outras coisas, a reconhecer, combater e principalmente a sobreviver psicologicamente a certas formas veladas de estupro, como aquelas cometidas por namorados, (muitas vezes até por maridos), por conhecidos, ou mesmo por parentes. Trata-se de uma das análises mais completas e mais profundas desse tipo tão comum de delito, que deixa marcas profundas nas vítimas, que as carregam pela vida inteira. Não são raras as mulheres estupradas que cometem suicídio ou que fazem uma ou várias tentativas.

Robin Warshaw tem experiência suficiente para tratar do assunto. Não por causa da profissão, já que não é médica, psicóloga, advogada e nem policial. É jornalista, especializada em temática social. Escreve para o "The New York Times", "Nation Philadelphia Inquirer Magazine" e "Woman' Day", entre outras publicações. Mas Robin passou pela terrível experiência do estupro. E resolveu escrever o livro, ao lembrar a forma como foi tratada pelas autoridades quando, na juventude, foi estuprada pelo namorado.

A jornalista constata: "Alguns jurados...ainda desconfiam da mulher que traz para o tribunal acusações de estupro por alguém conhecido. Ela é criticada pelo que fez ou por quem é, em vez de o homem ser condenado pelas suas ações criminosas". O número de condenações nesses casos, embora muito aquém do desejável, vem aumentando, nos últimos anos, nos Estados Unidos. Mas a maioria das mulheres estupradas ainda mantém em segredo as agressões sofridas.

Dois famosos casos de estupros, cometidos por pessoas conhecidas das vítimas, ambos ocorridos em 1991, nos Estados Unidos, agitaram a opinião pública, não somente norte-americana, mas de todo o mundo, pelos desfechos diferentes que tiveram, suscitando toda a sorte de debates em torno do tema.

Em um, ocorrido no Estado da Flórida, o estuprador escapou impune e foi absolvido pelos jurados. Em outro, no Estado de Indiana, o agressor (como o primeiro, também figura de grande projeção internacional), foi condenado a seis anos de prisão, tendo cumprido, encarcerado, mais da metade da pena. O primeiro dos acusados era um jovem branco, membro de uma das mais tradicionais famílias norte-americanas (sobrinho do senador Edward Kennedy) e estudante de medicina, famoso com playboy e grande conquistador.

O segundo réu era negro, ex-campeão mundial de boxe dos pesos pesados, autêntico mito do esporte, com fama de truculento, tendo várias passagens pela polícia por agressão, inclusive contra mulheres.

O primeiro, William Kennedy Smith, foi isentado de culpa (apesar das contundentes provas da sua culpabilidade) de haver estuprado Patrícia Bowman, mãe solteira, que acabou sendo tratada no tribunal não como vítima, que de fato era, mas como se fosse a criminosa.

O segundo, o boxeador Mike Tyson, foi condenado, pelo mesmo delito, a seis anos de prisão, pelo estupro de Desirre Washington, caloura de faculdade, de 18 anos, concorrente ao título de Miss Black America pelo Estado de Rhode Island.

Analisando o primeiro caso, Robin Warshaw escreve em seu livro: "A ação contra (William Kennedy) Smith (sobrinho do senador Edward Kennedy)... alterou o processo de Patricia Bowman muito antes da intimação do tribunal. Os investigadores de acusação interrogaram-na reiteradamente sobre sua queixa contra Smith, um membro do proeminente clã dos Kennedy. Perguntaram sobre seu uso ilegal de drogas, sua saúde mental, até por que ela não tinha pagado a conta de um alergista há nove anos. Mas essas investigações não representaram nada, comparadas com sua dissecação pública por uma mídia voraz, tanto impressa como eletrônica. Afinal, isso era uma história dos Kennedy e, embora os detalhes do caso fossem dolorosamente comuns, a maneira como a imprensa tratou o caso não o era. Enquanto Smith era retratado, na maioria das vezes, como um estudante de medicina/playboy, seguindo os passos movidos a testoterona dos seus parentes masculinos, a história pessoal de Bowman era revelada minuciosamente, de forma excruciante e condenatória".

O caso em questão ilustra bem como as vítimas de estupro são tratadas, na maioria dos casos, quando recorrem à justiça. Principalmente quando o agressor ocupa posição social de destaque e a mulher estuprada tem antecedentes que não sejam abonadores. Raramente a imprensa e os jurados se atêm, em tais circunstâncias, estritamente às provas. A queixosa acaba sendo tratada como criminosa, tendo sua vida esmiuçada publicamente, em especial nos detalhes escandalosos (caso existam).

Warshaw comenta: "No New York Times, o jornal mais importante da nação e talvez do mundo, os leitores tomaram conhecimento dos pormenores confusos do divórcio dos pais de Bowman, que ela 'teve uma pequena rebelião selvagem' na escola secundária, 'trabalhava esporadicamente' e nunca casou com o pai do seu filho. O tom crítico da matéria do Times foi claramente expresso pela sua manchete, 'Inquérito de Estupro de Mulher na Flórida, um Salto Rápido na Ascensão Econômica e Social". A implicação era clara: pôr em dúvida os motivos de uma mulher com raízes da classe operária que apresentava acusação de estupro contra um Kennedy".

E a jornalista conclui: "...O estupro ainda constitui um pesado estigma social para quem o sofre". Esta, aliás, ainda é a realidade na maior parte do mundo. A vítima sofre, tanto na carne quanto e principalmente em sua dignidade, esse tipo (tão comum) de agressão, mesmo que consiga a reparação na Justiça.

A respeito do rumoroso caso da Flórida, Robin Warshaw informa: "No banco das testemunhas, Bowman contou sua história: ela encontrou Smith num bar, à primeira vista não se deu conta de que ele era o sobrinho do senador Edward Kennedy, dançou com ele e deu-lhe uma carona até a casa da família dele, em frente à praia, por solicitação dele. Eles caminharam na areia, beijaram-se, e depois Smith a derrubou e a estuprou. Havia lacunas e inconsistências no seu relato".

Quem acompanhou o julgamento, no recinto do tribunal ou através dos meios de comunicação, que deram ampla cobertura do caso, pôde perceber a ostensiva má vontade do juiz que presidia a sessão, em relação à queixosa. Ele chegou a recusar, sem nenhuma explicação, o testemunho de três mulheres, que disseram ter sido agredidas por Smith, sob circunstâncias similares às de Bowman.

Ficou mais do que claro que o magistrado já havia "preconcebido" seu veredito. E este era favorável, evidentemente, ao jovem Kennedy, no que foi secundado pela maior parte da mídia de todo o país. O mesmo ocorreu, provavelmente, com os jurados. Os membros do júri impressionaram-se tanto com o desnível social dos protagonistas do caso, quanto com a vida pregressa da vítima, quando lhes competia, tão somente, julgar se atendo, "exclusivamente", às provas do processo, que eram esmagadoras contra o agressor. Tanto isso é verdade, que precisaram de somente 77 minutos para decretar a inocência de William Kennedy.

Warshaw relata, ainda: "Na semana seguinte (ao depoimento da queixosa), Smith contou a sua versão: ele dançou com Bowman, eles se beijaram, depois ela lhe ofereceu uma carona para casa. Ele achou que ela estava agindo de forma confusa e desorientada, mas teve relações sexuais com ela assim mesmo. Quando ele a chamou pelo nome de uma outra mulher, ela o 'mordeu' e bateu nele. Em seguida, ele foi nadar. Quando viu Bowman alguns minutos mais tarde, ela o acusava de estupro. Smith disse que ele não sabia a origem das equimoses, mais tarde visíveis no corpo dela".

Qual a conclusão que se pode tirar dos depoimentos das vítimas, nesse julgamento e no de Mike Tyson? A óbvia! Robin Warshaw afirma: "Através das histórias que Bowman e (Desirre) Washington contaram, os homens pareciam supor que tinham direito a sexo, que as mulheres que estavam com eles eram inconseqüentes e que alguma resistência deveria ser ignorada".

Essa, aliás, é a mentalidade de todos estupradores, conforme ficou patenteado na ampla e abrangente pesquisa nacional feita pela revista MS, envolvendo mais de seis mil entrevistas, em todo o território dos Estados Unidos. Parte considerável dos que cometem estupro (e até grande parcela das vítimas, mal informadas) não consideram que aquilo que fizeram foi errado, e que foi, por conseqüência, um crime. Deixam implícito um suposto "direito a sexo" com suas vítimas. E consideram a resistência das mulheres não como explícita e clara recusa ao ato sexual, mas como "parte do jogo" de sedução e conquista.

Sobre o caso de Mike Tyson, Robin Warshaw escreve: "Desirre Washington era caloura de faculdade, aos 18 anos, concorrente a Miss Black America de Rhode Island, e tinha viajado para Indianápolis para o concurso de 1991. Ela e outras concorrentes conheceram Tyson e pediram-lhe que posasse para uma foto. Quando ele marcou um encontro com Washington, ela lhe deu o número do telefone de seu quarto de hotel. Ele ligou após a meia-noite, oferecendo-lhe um passeio em sua limusine. Tyson tentou beijá-la na limusine. Quando ela recuou, ele comentou que ela era 'uma boa moça cristã'. Depois disse que tinha de voltar ao seu quarto para dar um telefonema. Foi lá que ele a agarrou, eles lutaram, e ele a estuprou. Um médico na sala de emergência disse que os ferimentos de Washington eram coerentes com um estupro. O chofer de Tyson testemunhou que a mulher estava perturbada quando deixou o quarto de hotel do boxeador. Tyson contestou a acusação, dizendo que Washington teve relações sexuais com ele voluntariamente. A defesa argumentou que ela consentiu para obter dinheiro. Sustentaram que a reputação de Tyson como mulherengo era tão notória que ela sabia que aceitando um encontro com ele significava concordar em ter também relações sexuais".

As provas contra o lutador de boxe, negro, apesar de contundentes e esmagadoras, eram até mais inconsistentes e mais fracas do que as apresentadas contra William Kennedy Smith, branco. No entanto, um foi condenado (justamente por sinal) e o outro absolvido (contrariando as mais primárias regras de justiça). Claro que o "status" e a cor pesaram, e muito, em decisões tão diferentes, para delitos tão semelhantes, apesar das reiteradas e enfáticas negativas dos envolvidos nos dois julgamentos, naquela ocasião.

Para enfatizar as inconsistências legais dos tribunais norte-americanos, nos casos de estupro, Robin Warshaw narra, em seu livro, outro caso que ficou famoso nos Estados Unidos: "Exatamente quão inconsistente já pode ser uma lei estadual protetora do estupro, especialmente quando aplicada num caso de estupro por alguém conhecido, ficou claro durante um julgamento em Nova Jersey em 1992 que despertou a atenção do país. Focalizava um acontecimento de 1989, quando treze rapazes adolescentes do confortável subúrbio de Glen Ridge encontraram uma moça de 17 anos que conheciam. Eles lhes prometeram um encontro com um deles, se ela os seguisse até o porão de uma casa. Ali os rapazes mandaram a moça tirar a roupa, acariciar a si mesma e fazer sexo oral com alguns deles. Ela fez. Depois, alguns dos adolescentes inseriram um cabo de vassoura, um fino bastão de beisebol e uma vareta, um de cada vez, na sua vagina, enquanto os que observavam insistiam, 'mais fundo'. Essa seqüência chocante foi agravada pelo fato central do caso: a menina era levemente retardada, com um Q.I. de 64 e o nível de relacionamento social de uma criança de oito anos. Ao longo da sua vida, ela sempre fez tudo que seus companheiros e companheiras lhe pediam que fizesse. Os jovens conheciam sua história. Devido às suas limitações mentais, o que aconteceu não foi meramente uma fantasia sado-sexual adolescente, vivida à custa de uma menina submissa --- foi estupro de gangue".

E a jornalista conclui: "Quatro homens foram a julgamento, acusados de ataque sexual e conspiração: Kevin e Kyle Scherzer, Christopher Archer e Bryant Grober. Três tinham 21 anos quando o julgamento começou; um tinha vinte...O júri condenou os quatro". Neste caso, os jurados agiram como deveriam agir. Ou seja, atendo-se exclusivamente às provas dos autos e ao texto da lei penal do Estado.

O que, afinal, caracteriza o estupro? Muita gente ainda confunde esse crime com o de sedução. A maior parte dos estatutos norte-americanos, no entanto, descreve esse delito da seguinte forma: "penetração sexual não desejada, realizada por força, ameaça de ferir, ou incapacidade mental ou física de dar consentimento (incluindo intoxicação)". Descrição clara, direta e objetiva, para não deixar nenhuma dúvida!

Robin Warshaw acrescenta: "...Estupro é violência, não sedução. No estupro por um estranho e no estupro por alguém conhecido, o agressor toma a decisão de forçar sua vítima a se submeter à sua vontade. O estuprador acredita que ele tem o direito de forçar relações sexuais com uma mulher e vê a violência interpessoal (seja simplesmente dominando a mulher com seu corpo ou brandindo uma arma) como uma maneira aceitável de conseguir seu objetivo".

Susan Brownmiller, no seu livro referencial "Against Our Will: Men, Women and Rape" (Contra Nossa Vontade: Homens, Mulheres e o Estupro), conclui, oportunamente: "Todo estupro é um exercício de poder".

Milhões de norte-americanas são vítimas, anualmente, desse tipo de agressão. Variam as circunstâncias, mas a forma de ação e a mentalidade que a move é sempre a mesma. De acordo com o estudo da revista MS, uma em cada 4 mulheres entrevistadas pelos pesquisadores, foi vítima de estupro ou tentativa de estupro. Oitenta e quatro por cento das mulheres estupradas conheciam seus agressores. Cinqüenta e sete por cento dos estupros aconteceram em encontros.

Num ano, 3.187 mulheres denunciaram que sofreram: 328 estupros (como definidos por lei); 534 tentativas de estupro (como definidas por lei); 837 episódios de coerção sexual (relação sexual conseguida pelos argumentos continuados ou pressão do agressor) e 2.024 experiências de contato sexual não desejado (carícias, beijos ou afagos contra a vontade da mulher).

Um, em 12 estudantes pesquisados, no estudo da revista MS, tinha cometido atos que se enquadravam nas definições legais de estupro ou tentativa de estupro. Para ambos, homens e mulheres, a idade média em que ocorria um estupro (tanto como perpetrador quanto como vítima) era de 18 anos e meio. Apenas 27% das mulheres, cuja agressão sexual se enquadrava na definição legal de estupro, pensaram em si mesmas como vítimas de estupro.

Mais ou menos 75% dos homens e pelo menos 55% das mulheres envolvidos em estupros por alguém conhecido estiveram bebendo ou tomando drogas imediatamente antes do ataque.

Das 3.187 estudantes universitárias pesquisadas pela revista MS, 15,3% tinham sido estupradas; 11,8% foram vítimas de tentativa de estupro; 11,2% viveram experiência de coerção sexual e 14,5% tinham sido tocadas sexualmente.

Quarenta e um por cento das mulheres que foram estupradas eram virgens na época das suas agressões. Quarenta e dois por cento das vítimas de estupro não falaram com ninguém sobre suas agressões. Somente 5% denunciaram seus estupros à polícia. Somente 5% procuraram ajuda em centros que prestam auxílio em caso de estupro.

Oitenta e três por cento das mulheres que foram estupradas por homens que elas conheciam tentaram argumentar ou negociar com seu agressor; 77% se mantiveram quietas, na esperança de repeli-lo; 70% lutaram fisicamente; 11% gritaram por socorro e 11% tentaram fugir.

Quarenta e dois por cento das mulheres que foram estupradas disseram que tiveram sexo novamente com os homens que as agrediram. Cinqüenta e cinco por cento dos homens que estupraram disseram que tiveram sexo novamente com suas vítimas. Quarenta e um por cento das mulheres estupradas disseram que acham que serão estupradas novamente.

Tendo ou não reconhecido sua experiência como estupro, 30% das mulheres identificadas no estudo da revista MS como vítimas de estupro consideraram o suicídio após o incidente; 32% procuraram psicoterapia; 22% entraram em cursos de autodefesa e 82% disseram que a experiência modificou-as de forma permanente.

No ano anterior ao estudo da revista MS, 2.971 homens com instrução universitária relataram que cometeram: 187 estupros, 157 tentativas, 327 episódios de coerção sexual e 854 incidentes de contato sexual não desejado. Dezesseis por cento dos estudantes homens que cometeram estupro e 10% dos que tentaram um estupro tomaram parte em episódios envolvendo mais de um agressor. Trinta e oito por cento das moças estupradas tinham 14, 15, 16 ou 17 anos na época das suas agressões.

(CONTINUA)

(Texto do meu livro, inédito, "Guerra dos Sexos")

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