Saturday, March 03, 2012







Vocação e coragem


Pedro J. Bondaczuk


A questão de “vocação” para determinada atividade é muito comentada, mas quase nunca bem entendida. É certo que temos capacidade para aprender, e executar bem, muitas coisas, das mais diversas naturezas: manuais, artísticas, intelectuais etc. Mas há algumas que, por razões não bem explicadas (ou talvez inexplicáveis) aprendemos e executamos melhor do que outras. É a isso, a essa facilidade, originada pelo gosto, pelo interesse e pela consequente aplicação, que chamam, genericamente, de “vocação”.

A experiência me mostrou que nem tudo o que gostamos temos a capacidade de fazer bem. Por exemplo, gosto muito de música, mas sou rigorosamente incapaz de tocar qualquer instrumento, mesmo o mais simples deles. No outro extremo, também aprendi que muita coisa que não apreciamos e que, até mesmo, detestamos, quando premidos pelas circunstâncias, sobretudo pela necessidade, somos capazes de fazer de forma mais do que adequada: excelente.

Não raro fracassamos no que gostamos de fazer e que, por causa desse gosto, nos aprimoramos para executar bem. Muitas vezes, os resultados finais das nossas ações se mostram pífios, quando não desastrosos. Por uma série de motivos ou circunstâncias, como falta de persistência ou, até mesmo, por incompetência para tal atividade, fracassamos no que julgávamos ter inequívoca vocação. Gostar de algo não significa, automaticamente, ser competente para sua execução. Muita gente discorda dessa afirmação e só se convence que isso é possível de acontecer (e, creiam-me, acontece com maior freqüência do que se supõe), quando passa por essa frustrante (e traumatizante) experiência.

Outro aspecto a considerar é o que se entende por “sucesso”. É ganhar muito dinheiro com o que se faz? Para muitos (diria que para a maioria) é. Há, porém, quem se sinta bem-sucedido com o mero reconhecimento da perfeição do que faz, mesmo que tardio e não representado necessariamente por vantagens materiais. Há muitos idealistas que pensam dessa maneira. Para estes, “sucesso” é a convicção íntima de que aquilo que fizeram foi bom, foi útil, foi bem feito e trouxe benefícios à coletividade, a milhares, quiçá a milhões de pessoas gerações afora.

A esse propósito, recorro a uma observação que li há algum tempo no livro “A prayer for Owen Meany”, a sétima novela do escritor norte-americano John Irving, que afirmou: “Se você tiver a sorte de encontrar um meio de vida de que goste, precisará ter a coragem para vivê-la”. Nem todos (diria que raros) têm. Não é fácil você jogar tudo para o alto, abrir mão de uma atividade que lhe proporcione estabilidade financeira, prestígio e/ou “status” social mas de que não goste para correr atrás de simples sonho, por mais grandioso que este seja. Mas há quem faça isso. Os que fazem essa opção se sentem realizados e felizes? Sei lá! Talvez sim, talvez não.

Querem um exemplo de alguém que agiu dessa maneira? Foi o pintor francês Paul Gauguin, expoente das artes plásticas do chamado “pós-impressionismo”. Ressalte-se que suas telas, hoje, obtêm cotação astronômica no mercado das artes . São inacessíveis à maioria dos bolsos. Valem fortunas e quem detém esse patrimônio não quer se desfazer dele por nada, a menos que lhe paguem somas absurdamente altas. Mesmo assim... E muitos pagam ou estão dispostos a pagar fortunas por elas. Todavia, nem sempre foi assim.

Esse artista talentoso e, mais do que isso, genial, ousou dar o passo citado por John Irving, ou seja, teve a “coragem” de jogar tudo para o alto para fazer o que gostava, para seguir seu impulso, para ir atrás do seu sonho. Após uma série de peripécias, que o levaram ao Peru, na juventude, regressou a Paris e parecia ter se “assentado” na vida. Quando tinha por volta de 33 anos, arranjou um bom emprego, como corretor na bolsa de valores parisiense, casou-se aos 35 com a jovem dinamarquesa Mette Sophie Gad (com quem teve cinco filhos) e tinha situação econômica e social estável, diria excelente. Era, certamente, invejado por muitos.

Porém, não se sentia satisfeito. O que fazia não era o que gostaria de fazer. Queria porque queria seguir o que entendia ser sua “vocação”, a pintura, mas não tinha coragem de dar passo decisivo nessa direção. Certo dia, no entanto, para desgosto da esposa (da qual viria a se separar), jogou, sem pestanejar, tudo para o alto. Abriu mão do emprego estável, da boa casa que tinha, do conforto de que gozava e da posição social que havia conquistado, para se dedicar completamente à pintura. Foi uma decisão, do ponto de vista material, maluca, incompreensível, desastrosa.

Os quadros que produzia – que hoje valem milhões de dólares, reitero – não tinham nenhuma saída. Ninguém os queria. Sua arte era ridicularizada. Não tardou para que caísse na miséria e passasse a levar vida de indigência, desregrada e boêmia. Findou por morrer, vítima de sífilis, abandonado e esquecido, aos 55 anos de idade, na perdida ilhota de Iva Oa, uma das Ilhas Marquesas, no Oceano Pacífico. É verdade que a posteridade lhe fez justiça. Mas... valeu a pena? Para alguns, sim. Para a maioria...

E você, o que acha? Você teria a coragem de fazer como Gauguin, jogando tudo o que conquistou para o alto, para correr atrás de um sonho? Quem age, como ele, aposta na imortalidade da memória, na esperança de que a obra que deixar (se ou quando deixar) será amplamente reconhecida, mesmo que muitos anos depois da sua morte. Às vezes (raramente), de fato, obtém esse reconhecimento. Mas, na maioria dos casos... Suas obras são ignoradas e desaparecem, como quem ousa tomar uma decisão, digamos, imprudente (para sermos delicados) como a do pintor francês.

Por que? Como explicar ou justificar? Suas obras, talvez, tenham utilidade sim, ou despertem, mesmo, interesse, mas apenas por poucos anos, quando não meses após serem elaboradas. Por isso, talvez sejam escassamente duráveis ou até mesmo perecíveis. Poucas são tão importantes a ponto de sobreviverem a uma única geração. O escritor australiano, Morris West, no romance “O Advogado do Diabo”, tratou desse aspecto, dessa efemeridade do que legamos ao mundo (isso, quando legamos).

É uma reflexão amarga, que não gostaria de fazer, mas que é a pura expressão da realidade. O romancista escreveu: “A obra morre. Quantos homens Cristo curou? E quantos deles estão vivos hoje? A obra é uma expressão daquilo que um homem é, do que sente, daquilo em que acredita. Se dura, se se desenvolve, não é devido ao homem que a começou, mas porque outros homens pensam, sentem e crêem da mesma maneira”. Há casos, raros, em que a obra sobrevive e quem a elaborou é lembrado e, muito raramente, até exaltado. Esta, todavia, convenhamos, não é a regra. É mera exceção. Vale a pena arriscar o certo pelo incerto por um resultado tão pífio e instável?

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