Revolução que pouca
gente identificou
Pedro J. Bondaczuk
O pessimismo da imprensa em relação à Seleção Brasileira, em 1958, antes do embarque da delegação para a Suécia, é uma coisa que não entendi na época e creio que jamais irei entender. E olhem que sou do ramo. Trabalho com comunicação há quase meio século. Portanto, é manifestação pessoal de cada profissional e não, obviamente, característica da profissão, como muitos querem dar a entender.
Esse pessimismo profundo, esse derrotismo sem sentido, diga-se de passagem, contrastava agudamente com as coisas boas que ocorriam no País e que sequer eram percebidas pela maioria dos jornalistas. Eram, no entanto, pela população.
Só o distanciamento no tempo permitiu que, anos depois, os mais lúcidos se dessem conta que o Brasil, nesse período, viveu uma revolução de fato (e não em 1964, que teve mero golpe de Estado) – de conceitos, de atitudes, de mentalidade e de costumes – sem que, reitero, sequer nos déssemos conta.
Em pleno coração do País, no Planalto Central, uma utopia se fazia concreta, graças à ousadia e ao trabalho dos brasileiros. Dezenas de milhares de pessoas humildes, procedentes de todas as regiões, deixavam suas roças, sua criação de gado, sua pesca artesanal e tosca, seus sítios que mal davam para tirar o sustento, rumo à área que havia se transformado em formigueiro humano. Da noite para o dia brotava, do nada, naquele solo vermelho e duro do cerrado, uma nova cidade. E que cidade! Um sonho nacional se fazia concreto, como que por milagre.
Mas não era só isso, embora fosse o que de mais importante se verificava no País. Surgiam, por conta da ousadia de um líder lúcido e visionário, as indústrias, tanto a automobilística quanto a naval e de outras tantas atividades, demandando mão de obra especializada, então escassa ou quase inexistente. Foi o período das oportunidades.
De repente, o Brasil dava um enorme salto, de uma incipiente economia agropecuária, baseada ora na monocultura, ora em dois ou três produtos, para a modernidade advinda da industrialização. Subia, portanto, de patamar, arcando com o ônus (da poluição, da urbanização sem método ou planejamento etc.), mas auferindo o bônus do progresso, muito maior e mais precioso.
Fábricas e mais fábricas, de autopeças, de usinagem, de eletrodomésticos e de outros ramos, surgiam continuamente e por toda a parte. O Brasil mudava a sua cara. O desemprego crônico, que o caracterizou por tanto tempo e se transformou num grande flagelo, cedeu lugar a uma intensiva absorção de mão de obra, ao ponto de chegarem a faltar braços para tantas tarefas.
Foi aí, analisando 42 anos depois aquele momento ímpar, que a incrível capacidade de adaptação do brasileiro se manifestou em toda a sua plenitude. Em Brasília, por exemplo, peões que haviam lidado, a vida inteira, apenas com animais, com bois, cavalos e mulas, num piscar de olhos se transformaram em pedreiros, carpinteiros, quando não em mestres de obra de grande perícia e eficiência. Pequenos lavradores, que até então viviam de uma rústica e tosca agricultura familiar, habituados que estavam, somente, ao uso da enxada e de primitivos arados como os dos tempos anteriores ao nascimento de Cristo, então faziam, e muito bem, as vezes ou de serventes, ou de tratoristas, ou de motoristas de escavadeiras ou de caminhões.
O País estava vivo, pulsante, cheio de energia como nunca antes. Havia dinheiro farto em circulação. É certo que não em todas as mãos. Mas mais do que antes e do que depois daquela hoje histórica época. Todavia, não era o que as manchetes dos jornais e os noticiários de rádio e televisão destacavam. Focalizavam, é fato, o que vinha ocorrendo, a realidade do seu tempo, todavia sempre por um viés negativo, à cata de escândalos, de falcatruas e de tragédias.
Ao invés de destacarem a incrível rapidez das obras da construção de Brasília, preferiam direcionar os holofotes para o fenômeno da inflação que, se faça justiça, nos quatro anos do governo de Juscelino Kubitschek nem de longe se aproximou das estratosféricas, escandalosas e pornográficas taxas registradas no final da gestão do último presidente militar e do início da redemocratização.
Em vez de enfatizarem que o brasileiro tinha fartura de oportunidades e ganhava mais (em Brasília, por exemplo, muita gente ganhava, em horas extras, até três vezes mais do que o salário registrado em carteira), martelava na palavra “carestia”, como se fosse um diabólico mantra, a expressão da moda de 1958 na imprensa, e na tentativa (vã) da Superintendência Nacional do Abastecimento (a malfadada Sunab, há muito tempo extinta) de tabelar os preços dos gêneros de primeira necessidade.
Os meios de comunicação – em mãos (como ainda hoje) de meia dúzia de magnatas e suas famílias – como que ignoravam o verdadeiro milagre empreendido por milhões de brasileiros que, para poderem ocupar as vagas abertas exponencialmente pela indústria, pelo comércio e pelo setor de serviços, além da construção civil, eram alfabetizados a toque de caixa, em tempo recorde. Boa parte, logo após a alfabetização, dava um passo a mais e fazia, com êxito, cursos de especialização, não raro nos países-sedes das montadoras multinacionais recém-implantadas. Conheci dezenas, centenas de pessoas que deram esses miraculosos saltos de qualidade na vida.
O País fervilhava. Exsudava otimismo, em um clima de irrestrita liberdade política, característica do governo JK. Triplicara a dívida externa, conforme constatação da imprensa? Ora, esse era um preço até que bastante suave, diria irrisório a ser pago pelo fantástico desenvolvimento e tão profunda transformação.
O ano de 1958, reitero, foi o melhor da minha vida. Também foi da maioria dos brasileiros, muitos dos quais, até hoje, sequer se deram conta disso. Foi quando nasceu, por exemplo, a Bossa Nova. Surgiram inúmeros movimentos artístico-culturais – não somente nos grandes centros urbanos, mas também em distantes e esquecidos grotões – de renovação literária, de revigoramento das artes plásticas e de avanços em tantas outras manifestações de arte.
A Seleção Brasileira, renovada, com caras novas, todavia enxovalhada, escarnecida, ridicularizada e tão criticada pela imprensa, e que alguns nem queriam que viajasse para a Suécia, voltaria consagrada pouco mais de um mês depois, e coberta de glórias. E eu estava amando, como jamais voltaria a amar. Que bom seria se a vida, se toda ela, tivesse o perfil e o desfecho daquele ano dourado, que gostaria que nunca houvesse acabado!
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