“Happy end” e com chave de ouro
Pedro J. Bondaczuk
Foi há exatos 52 anos, em 29 de junho de 1958. Apesar de haver passado mais de meio século, lembro-me com nitidez e riqueza de detalhes de tudo o que aconteceu nesse memorável dia. Afinal, a primeira vez a gente nunca esquece. E eu não esqueci.
Aquele era meu primeiro dia de férias do meio de ano. Voltara para casa, do colégio interno em que estudava, na véspera, bem à noitinha. Ainda não havia saído à rua para reencontrar os amigos de infância, dos quais estava longe desde fins de fevereiro.
Meus pais não tinham do que reclamar de mim, pois meu boletim registrava, de novo, nota dez em todas as matérias. Mais uma vez eu vencera a competição com meus colegas de escola, com desempenho impecável nos estudos.
Claro que meus pais não sabiam – e ninguém no colégio sabia ou sequer desconfiava – das minhas escapadas furtivas para Jacuba, para acompanhar, pelo rádio, as transmissões dos jogos do Brasil na Copas do Mundo da Suécia.
Neste dia decisivo, no entanto, eu não precisaria me preocupar com isso. Estava em casa, com o dever devidamente cumprido, com carta branca para fazer tudo o que quisesse, ou quase tudo. Afinal, meus pais, também, eram eméritos disciplinadores.
Resolvi acompanhar a transmissão do jogo em meu quarto que só ocupava três meses por ano, de porta fechada e no escuro, ou melhor, na penumbra. Achava que, com isso, poderia enviar “fluidos positivos”, telepaticamente, à nossa Seleção em Estocolmo. Nesse tempo, eu acreditava nessas bobagens.
Nesse dia eu tinha tudo para estar feliz. Mas... não me sentia assim. Estava separado da minha amada até 1º de agosto, tempo que me parecia uma eternidade. Acordei, nesse domingo, com uma saudade enorme, opressiva, insuportável. Parecia que eu estava distante da amada não só por uma noite, mas por anos, décadas, séculos.
Estava quieto, angustiado e pensando numa forma de comunicar-me com ela. Mas como? Não tinha telefone. Naquela época, tratava-se de um objeto precioso, raro e caro. Decidi que escreveria uma carta – escrevi, na verdade, cerca de vinte nesse pouco mais de um mês de separação – assim que terminasse o jogo do Brasil. Estava triste, saudoso, inquieto, como se me estivesse faltando um pedaço. E faltava mesmo. Quem está amando, ou já amou, entende o que quero dizer.
Liguei meu rádio de cabeceira, da marca RCA Victor (do tamanho pouca coisa maior do que os atuais rádios-relógios), à válvula, com caixa de plástico azul. Essa era outra grande raridade, que poucas pessoas tinham acesso, grande novidade do comércio naqueles idos de 1958. Sintonizei na Bandeirantes, a tempo de ouvir os comentários pré-jogo se não me engano de Mauro Pinheiro.
Eu estava confiante de que a maldição de 1950 seria exorcizada nesse 29 de junho. Era a segunda final de Copa do Mundo a que o Brasil chegava em sua história, mas a primeira no exterior. Se a Seleção Canarinho vencesse, seria o primeiro selecionado nacional a conquistar a Jules Rimet fora do seu continente. Não havia quem não se lembrasse com apreensão, mesmo que apenas de passagem, da hecatombe de oito anos antes.
O jogo foi disputado no Estádio Solna Rasunda, de Estocolmo, com a presença de um público relativamente pequeno para confronto de tanta importância: 49.737 pessoas. O árbitro escalado pela Fifa foi, mais uma vez, o francês Maurice Guiguê.
O Brasil jogaria, pela primeira vez, de camisas azuis e calções brancos, porque os anfitriões tinham uniformes exatamente como os nossos. Dizem que o novo fardamento fora comprado às pressas numa lojinha de Estocolmo, dois dias antes, com os números e distintivos sendo costurados na véspera da partida.
Testemunhas garantem que os jogadores não queriam usar as novas camisas, achando que dariam “azar”. Asseguram, porém, que, mais uma vez, o chefe da delegação, Dr. Paulo Machado de Carvalho, entrou em cena. Ele teria reunido todo o mundo e convencido a equipe de que aquele era um bom augúrio. Teria afirmado que a exigência de usar as novas camisas era, na verdade, um fator de “sorte” à Seleção, pois o azul era “a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida”, a padroeira do Brasil.
A superstição bem que poderia aflorar e inibir nossos jogadores pois, logo aos 4 minutos, pouco depois da saída, os suecos abriram o placar, com gol do seu capitão Liedholm. Se azar havia, no entanto, Garrincha e Vavá se encarregaram de exorcizá-lo.
Em dois lances curiosamente iguaizinhos, um aos 8 e outro aos 32 minutos, o Mané da perna torta fez o escandinavo Bergmark de João, foi à linha de fundo e cruzou a bola rasteira para o “peito de aço” tocar para o gol, primeiro empatando e depois virando o jogo.
Os dois times foram para os vestiários com 2 a 1 para o Brasil. No segundo tempo, foi a vez de Pelé dizer a que veio e dar o seu show particular. O menino franzino de Três Corações faria outro gol antológico, uma espécie de “clone” do que havia feito contra País de Gales, logo aos 11 minutos. O garoto, na risca da pequena área, matou a bola no peito, deu um chapéu no central Axbon e, sem deixar a “gorduchinha” cair, mandou-a de sem-pulo para as redes da Suécia. Aí... foi um passeio. Nem o segundo gol sueco abalou a confiança da equipe e da torcida, marcado aos 35 minutos por Simonsen. Isso porque Zagallo, antes, aos 23, havia feito o nosso quarto.
E a Copa terminou em grande estilo e de maneira perfeita. O último lance desse Mundial foi o gol de cabeça sabem de quem? Isso mesmo, do menino que a imprensa não queria que fosse para aquele mundial, o mágico, fenomenal e incomparável (muitos desconfiavam que se tratasse de um ET) Pelé. Compará-lo, pois, com Maradona é demonstração de ignorância e de desinformação (isso para ser polido e não usar um palavrão).
Tão logo Guiguê apitou o final, saí em disparada, eufórico e andando nas nuvens, para a rua, gritando a plenos pulmões o grito que havia tido que sufocar, que mastigar, que engolir oito anos antes: É campeão!!! Fui até o Bar do Baixinho, ao encontro da minha turma, para festejar com tudo o que tinha direito (e até do que não tinha). O Brasil inteirinho, do Oiapoque ao Chuí, era um festa só. E os brasileiros começaram, nesse dia 29 de junho de 1958 a se livrar de seu secular complexo de vira-latas, designação criada pelo saudoso jornalista Nelson Rodrigues (vejo entristecido, porém, que nem todos se curaram desse mal).
Pedro J. Bondaczuk
Foi há exatos 52 anos, em 29 de junho de 1958. Apesar de haver passado mais de meio século, lembro-me com nitidez e riqueza de detalhes de tudo o que aconteceu nesse memorável dia. Afinal, a primeira vez a gente nunca esquece. E eu não esqueci.
Aquele era meu primeiro dia de férias do meio de ano. Voltara para casa, do colégio interno em que estudava, na véspera, bem à noitinha. Ainda não havia saído à rua para reencontrar os amigos de infância, dos quais estava longe desde fins de fevereiro.
Meus pais não tinham do que reclamar de mim, pois meu boletim registrava, de novo, nota dez em todas as matérias. Mais uma vez eu vencera a competição com meus colegas de escola, com desempenho impecável nos estudos.
Claro que meus pais não sabiam – e ninguém no colégio sabia ou sequer desconfiava – das minhas escapadas furtivas para Jacuba, para acompanhar, pelo rádio, as transmissões dos jogos do Brasil na Copas do Mundo da Suécia.
Neste dia decisivo, no entanto, eu não precisaria me preocupar com isso. Estava em casa, com o dever devidamente cumprido, com carta branca para fazer tudo o que quisesse, ou quase tudo. Afinal, meus pais, também, eram eméritos disciplinadores.
Resolvi acompanhar a transmissão do jogo em meu quarto que só ocupava três meses por ano, de porta fechada e no escuro, ou melhor, na penumbra. Achava que, com isso, poderia enviar “fluidos positivos”, telepaticamente, à nossa Seleção em Estocolmo. Nesse tempo, eu acreditava nessas bobagens.
Nesse dia eu tinha tudo para estar feliz. Mas... não me sentia assim. Estava separado da minha amada até 1º de agosto, tempo que me parecia uma eternidade. Acordei, nesse domingo, com uma saudade enorme, opressiva, insuportável. Parecia que eu estava distante da amada não só por uma noite, mas por anos, décadas, séculos.
Estava quieto, angustiado e pensando numa forma de comunicar-me com ela. Mas como? Não tinha telefone. Naquela época, tratava-se de um objeto precioso, raro e caro. Decidi que escreveria uma carta – escrevi, na verdade, cerca de vinte nesse pouco mais de um mês de separação – assim que terminasse o jogo do Brasil. Estava triste, saudoso, inquieto, como se me estivesse faltando um pedaço. E faltava mesmo. Quem está amando, ou já amou, entende o que quero dizer.
Liguei meu rádio de cabeceira, da marca RCA Victor (do tamanho pouca coisa maior do que os atuais rádios-relógios), à válvula, com caixa de plástico azul. Essa era outra grande raridade, que poucas pessoas tinham acesso, grande novidade do comércio naqueles idos de 1958. Sintonizei na Bandeirantes, a tempo de ouvir os comentários pré-jogo se não me engano de Mauro Pinheiro.
Eu estava confiante de que a maldição de 1950 seria exorcizada nesse 29 de junho. Era a segunda final de Copa do Mundo a que o Brasil chegava em sua história, mas a primeira no exterior. Se a Seleção Canarinho vencesse, seria o primeiro selecionado nacional a conquistar a Jules Rimet fora do seu continente. Não havia quem não se lembrasse com apreensão, mesmo que apenas de passagem, da hecatombe de oito anos antes.
O jogo foi disputado no Estádio Solna Rasunda, de Estocolmo, com a presença de um público relativamente pequeno para confronto de tanta importância: 49.737 pessoas. O árbitro escalado pela Fifa foi, mais uma vez, o francês Maurice Guiguê.
O Brasil jogaria, pela primeira vez, de camisas azuis e calções brancos, porque os anfitriões tinham uniformes exatamente como os nossos. Dizem que o novo fardamento fora comprado às pressas numa lojinha de Estocolmo, dois dias antes, com os números e distintivos sendo costurados na véspera da partida.
Testemunhas garantem que os jogadores não queriam usar as novas camisas, achando que dariam “azar”. Asseguram, porém, que, mais uma vez, o chefe da delegação, Dr. Paulo Machado de Carvalho, entrou em cena. Ele teria reunido todo o mundo e convencido a equipe de que aquele era um bom augúrio. Teria afirmado que a exigência de usar as novas camisas era, na verdade, um fator de “sorte” à Seleção, pois o azul era “a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida”, a padroeira do Brasil.
A superstição bem que poderia aflorar e inibir nossos jogadores pois, logo aos 4 minutos, pouco depois da saída, os suecos abriram o placar, com gol do seu capitão Liedholm. Se azar havia, no entanto, Garrincha e Vavá se encarregaram de exorcizá-lo.
Em dois lances curiosamente iguaizinhos, um aos 8 e outro aos 32 minutos, o Mané da perna torta fez o escandinavo Bergmark de João, foi à linha de fundo e cruzou a bola rasteira para o “peito de aço” tocar para o gol, primeiro empatando e depois virando o jogo.
Os dois times foram para os vestiários com 2 a 1 para o Brasil. No segundo tempo, foi a vez de Pelé dizer a que veio e dar o seu show particular. O menino franzino de Três Corações faria outro gol antológico, uma espécie de “clone” do que havia feito contra País de Gales, logo aos 11 minutos. O garoto, na risca da pequena área, matou a bola no peito, deu um chapéu no central Axbon e, sem deixar a “gorduchinha” cair, mandou-a de sem-pulo para as redes da Suécia. Aí... foi um passeio. Nem o segundo gol sueco abalou a confiança da equipe e da torcida, marcado aos 35 minutos por Simonsen. Isso porque Zagallo, antes, aos 23, havia feito o nosso quarto.
E a Copa terminou em grande estilo e de maneira perfeita. O último lance desse Mundial foi o gol de cabeça sabem de quem? Isso mesmo, do menino que a imprensa não queria que fosse para aquele mundial, o mágico, fenomenal e incomparável (muitos desconfiavam que se tratasse de um ET) Pelé. Compará-lo, pois, com Maradona é demonstração de ignorância e de desinformação (isso para ser polido e não usar um palavrão).
Tão logo Guiguê apitou o final, saí em disparada, eufórico e andando nas nuvens, para a rua, gritando a plenos pulmões o grito que havia tido que sufocar, que mastigar, que engolir oito anos antes: É campeão!!! Fui até o Bar do Baixinho, ao encontro da minha turma, para festejar com tudo o que tinha direito (e até do que não tinha). O Brasil inteirinho, do Oiapoque ao Chuí, era um festa só. E os brasileiros começaram, nesse dia 29 de junho de 1958 a se livrar de seu secular complexo de vira-latas, designação criada pelo saudoso jornalista Nelson Rodrigues (vejo entristecido, porém, que nem todos se curaram desse mal).
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