Enlouquecendo os computadores
Pedro J. Bondaczuk
Depois de acompanhar, pelo rádio, a partida de estréia do Brasil na Copa do Mundo de 1958, em um bar do então vilarejo de Jacuba (que cresceu tanto que hoje é o populoso município de Hortolândia, na Região Metropolitana de Campinas), acompanhei os outros quatro jogos da mesmíssima maneira, no mesmo botequim, na mesma mesa, bebendo o mesmo refrigerante e, se bobear, vestindo a mesma roupa. Superstição? Pode ser. Na ocasião, não pensava nisso.
Aos que não me acompanharam desde o início nesta série de reminiscências informo que então eu tinha quinze anos e meio e estudava em um internato de disciplina bastante rígida, voltada, exclusivamente, a nos deixar permanentemente concentrados somente nos estudos. Havia ali, sim, a prática de esportes. Mas nem se cogitava de futebol. E rádio era um objeto superproibido. Nos inteirávamos dessa proibição assim que nos matriculávamos, mediante o regulamento, que tínhamos que ler previamente e assinar, posteriormente, concordando com a totalidade dos seus termos.
Não voltarei a destacar minhas “fugas” para Jacuba, para poder ouvir os jogos. Que fique implícito que todas foram bem-sucedidas. Não fui descoberto em nenhuma. Ninguém sequer desconfiou que eu acompanhei cada partida do Brasil, naquele mundial, sem perder nenhuma. E sem deixar que isso interferisse em meu desempenho escolar, já que estávamos em época de exames de meio de ano. A propósito, tirei dez em todas as doze matérias do currículo de então.
Apenas no sexto jogo do Brasil – justamente o da decisão, contra a Suécia – não precisei arriscar meu pescoço, pois foi disputado no meu primeiro dia de férias de meio de ano, quando eu já estava no aconchego da minha casa, em São Caetano do Sul, e, portanto, sem ninguém a me proibir de ouvir rádio ou qualquer outra coisa trivial.
Essa Copa foi marcante para mim também por este aspecto. Pelo da aventura, dos riscos, dos sacrifícios que tive que fazer para acompanhá-la. E, claro, pelo surpreendente, inesperado e por isso tão bem-vindo primeiro título mundial do Brasil.
O segundo jogo da Seleção Canarinho, contra a Inglaterra, ocorreu em 11 de junho de 1958, no Estádio Nya Ullevi, em Gotemburgo, assistido por um público de 40.895 pessoas. O nosso adversário teria que vencer de qualquer maneira se quisesse passar de fase, visto que havia empatado na estréia, com a União Soviética, por 2 a 2.
O empate para o Brasil, porém, não era mau negócio. E foi o que aconteceu. Ninguém mexeu no placar, que foi de 0 a 0. Os brasileiros atuaram com a mesma equipe que havia batido a Áustria, na estréia, por 3 a 0. Naquele tempo, não havia substituições nos jogos. Se alguém se machucasse e precisasse deixar o campo, sua equipe jogaria com um homem a menos (ou quantos se contundissem, claro). Essa partida foi arbitrada pelo alemão ocidental Albert Dusch.
O compromisso seguinte iria definir o líder do grupo. Brasil e União Soviética já estavam classificados. Nosso adversário despertava temores na crônica esportiva brasileira e na torcida por seu preparo físico e sua organização.
Dizia-se a boca pequena que as táticas de jogo soviéticas eram planejadas em computadores, que então eram a maravilha das maravilhas, um bicho de sete cabeças que mexia com a imaginação de todos nós, que chamávamos essas máquinas de “cérebros eletrônicos”.
Os russos, que recentemente haviam colocado em órbita da Terra o primeiro satélite artificial, o Sputnik, lideravam a corrida espacial. Achávamos que, por causa disso, podiam tudo. Afinal, quem manda uma cadelinha para a órbita terrestre e a traz de volta, não só viva, mas sã e salva, como eles haviam feito com a Laika, não teriam grandes dificuldades em descobrir formas infalíveis de parar ataques adversários e de furar as defesas mais indevassáveis.
O técnico Vicente Feola resolveu mexer na equipe, mais para dar ritmo aos que considerava “reservas”. Pelé, a essa altura, já estava recuperado da contusão sofrida num amistoso contra o Corinthians, que quase o alija daquele Mundial. Muitos, todavia, (diria que a maioria dos jornalistas) consideravam uma temeridade, se não uma irresponsabilidade, a sua escalação, levando em conta que ele só tinha 17 anos de idade. O treinador, porém, resolveu seguir sua intuição e arriscar. E o menino se saiu bem.
Não tremeu, conforme era o temor generalizado e, portanto, não comprometeu. Fez, até, algumas jogadas de efeito, que arrancaram exclamações e aplausos da torcida sueca. Ninguém poderia supor, nesse dia, que ali estava se manifestando pela primeira vez um fenômeno incomparável que se transformaria no maior jogador de futebol de todos os tempos.
Feola mexeu em quatro posições. Tirou Dino Sani, para a entrada de Zito. Do ataque da estréia, manteve apenas o ponta esquerda Zagallo, que tinha como principal característica o hábito de recuar para ajudar o meio de campo. O substituto do ponta direita Joel, Garrincha, seria considerado, pela imprensa internacional, depois do jogo, como a grande “arma secreta” da Seleção Brasileira.
Entre outras coisas, o jogador enlouqueceu o “cérebro eletrônico” soviético, desmantelando todas as suas táticas defensivas. Deixou louco, principalmente, seu atarantado marcador, que deve ter pesadelos até hoje com o nosso camisa 7. Entre tantas jogadas que levaram a torcida ao delírio, houve uma em que Garrincha deu sucessivos dribles no desesperado Tsarev, a ponto de deixá-lo sentado no gramado. O Mané das pernas tortas transformou-o num “João”, como, aliás, fazia com todos os laterais esquerdos que enfrentava aqui no Brasil.
A equipe, com as quatro modificações (Vavá, um centroavante pernambucano, raçudo e muito forte, que dificilmente perdia alguma bola dividida dos zagueiros, entrou no lugar de Mazola), teve um desempenho soberbo, magnífico, de encher os olhos do mais exigente amante do futebol, muito mais técnico e brilhante do que o da badalada Hungria de 1954 que, convenhamos, nunca ganhou “p....” nenhuma.
Os dois a zero sobre a União Soviética não refletiram o que foi aquele jogo. Não fossem as grandes defesas do lendário Lev Yashin, apelidado de “Aranha Negra”, e os soviéticos teriam sofrido uma das maiores goleadas dos mundiais. O Brasil venceu e convenceu. Os dois gols foram de Vavá, ambos concluindo entortadas de Garrincha em zagueiros adversários.
A despeito da desconfiança da imprensa (sempre ela!) e da descrença da torcida, chegáramos às quartas-de-final com competência e autoridade. Fizéramos cinco gols, sem sofrer nenhum. E jogando um futebol artístico, alegre, de puro malabarismo e magia, mas objetivo e prático.
Essa expressiva e categórica vitória sobre a União Soviética ocorreu em 15 de junho de 1958, presenciada por 50.928 privilegiados espectadores, arbitrada pelo francês Maurice Guiguê. Nesse dia me convenci, de vez, que ninguém conseguiria parar o Brasil quando este era representado pelos seus maiores talentos. E, de fato, não conseguiu.
Pedro J. Bondaczuk
Depois de acompanhar, pelo rádio, a partida de estréia do Brasil na Copa do Mundo de 1958, em um bar do então vilarejo de Jacuba (que cresceu tanto que hoje é o populoso município de Hortolândia, na Região Metropolitana de Campinas), acompanhei os outros quatro jogos da mesmíssima maneira, no mesmo botequim, na mesma mesa, bebendo o mesmo refrigerante e, se bobear, vestindo a mesma roupa. Superstição? Pode ser. Na ocasião, não pensava nisso.
Aos que não me acompanharam desde o início nesta série de reminiscências informo que então eu tinha quinze anos e meio e estudava em um internato de disciplina bastante rígida, voltada, exclusivamente, a nos deixar permanentemente concentrados somente nos estudos. Havia ali, sim, a prática de esportes. Mas nem se cogitava de futebol. E rádio era um objeto superproibido. Nos inteirávamos dessa proibição assim que nos matriculávamos, mediante o regulamento, que tínhamos que ler previamente e assinar, posteriormente, concordando com a totalidade dos seus termos.
Não voltarei a destacar minhas “fugas” para Jacuba, para poder ouvir os jogos. Que fique implícito que todas foram bem-sucedidas. Não fui descoberto em nenhuma. Ninguém sequer desconfiou que eu acompanhei cada partida do Brasil, naquele mundial, sem perder nenhuma. E sem deixar que isso interferisse em meu desempenho escolar, já que estávamos em época de exames de meio de ano. A propósito, tirei dez em todas as doze matérias do currículo de então.
Apenas no sexto jogo do Brasil – justamente o da decisão, contra a Suécia – não precisei arriscar meu pescoço, pois foi disputado no meu primeiro dia de férias de meio de ano, quando eu já estava no aconchego da minha casa, em São Caetano do Sul, e, portanto, sem ninguém a me proibir de ouvir rádio ou qualquer outra coisa trivial.
Essa Copa foi marcante para mim também por este aspecto. Pelo da aventura, dos riscos, dos sacrifícios que tive que fazer para acompanhá-la. E, claro, pelo surpreendente, inesperado e por isso tão bem-vindo primeiro título mundial do Brasil.
O segundo jogo da Seleção Canarinho, contra a Inglaterra, ocorreu em 11 de junho de 1958, no Estádio Nya Ullevi, em Gotemburgo, assistido por um público de 40.895 pessoas. O nosso adversário teria que vencer de qualquer maneira se quisesse passar de fase, visto que havia empatado na estréia, com a União Soviética, por 2 a 2.
O empate para o Brasil, porém, não era mau negócio. E foi o que aconteceu. Ninguém mexeu no placar, que foi de 0 a 0. Os brasileiros atuaram com a mesma equipe que havia batido a Áustria, na estréia, por 3 a 0. Naquele tempo, não havia substituições nos jogos. Se alguém se machucasse e precisasse deixar o campo, sua equipe jogaria com um homem a menos (ou quantos se contundissem, claro). Essa partida foi arbitrada pelo alemão ocidental Albert Dusch.
O compromisso seguinte iria definir o líder do grupo. Brasil e União Soviética já estavam classificados. Nosso adversário despertava temores na crônica esportiva brasileira e na torcida por seu preparo físico e sua organização.
Dizia-se a boca pequena que as táticas de jogo soviéticas eram planejadas em computadores, que então eram a maravilha das maravilhas, um bicho de sete cabeças que mexia com a imaginação de todos nós, que chamávamos essas máquinas de “cérebros eletrônicos”.
Os russos, que recentemente haviam colocado em órbita da Terra o primeiro satélite artificial, o Sputnik, lideravam a corrida espacial. Achávamos que, por causa disso, podiam tudo. Afinal, quem manda uma cadelinha para a órbita terrestre e a traz de volta, não só viva, mas sã e salva, como eles haviam feito com a Laika, não teriam grandes dificuldades em descobrir formas infalíveis de parar ataques adversários e de furar as defesas mais indevassáveis.
O técnico Vicente Feola resolveu mexer na equipe, mais para dar ritmo aos que considerava “reservas”. Pelé, a essa altura, já estava recuperado da contusão sofrida num amistoso contra o Corinthians, que quase o alija daquele Mundial. Muitos, todavia, (diria que a maioria dos jornalistas) consideravam uma temeridade, se não uma irresponsabilidade, a sua escalação, levando em conta que ele só tinha 17 anos de idade. O treinador, porém, resolveu seguir sua intuição e arriscar. E o menino se saiu bem.
Não tremeu, conforme era o temor generalizado e, portanto, não comprometeu. Fez, até, algumas jogadas de efeito, que arrancaram exclamações e aplausos da torcida sueca. Ninguém poderia supor, nesse dia, que ali estava se manifestando pela primeira vez um fenômeno incomparável que se transformaria no maior jogador de futebol de todos os tempos.
Feola mexeu em quatro posições. Tirou Dino Sani, para a entrada de Zito. Do ataque da estréia, manteve apenas o ponta esquerda Zagallo, que tinha como principal característica o hábito de recuar para ajudar o meio de campo. O substituto do ponta direita Joel, Garrincha, seria considerado, pela imprensa internacional, depois do jogo, como a grande “arma secreta” da Seleção Brasileira.
Entre outras coisas, o jogador enlouqueceu o “cérebro eletrônico” soviético, desmantelando todas as suas táticas defensivas. Deixou louco, principalmente, seu atarantado marcador, que deve ter pesadelos até hoje com o nosso camisa 7. Entre tantas jogadas que levaram a torcida ao delírio, houve uma em que Garrincha deu sucessivos dribles no desesperado Tsarev, a ponto de deixá-lo sentado no gramado. O Mané das pernas tortas transformou-o num “João”, como, aliás, fazia com todos os laterais esquerdos que enfrentava aqui no Brasil.
A equipe, com as quatro modificações (Vavá, um centroavante pernambucano, raçudo e muito forte, que dificilmente perdia alguma bola dividida dos zagueiros, entrou no lugar de Mazola), teve um desempenho soberbo, magnífico, de encher os olhos do mais exigente amante do futebol, muito mais técnico e brilhante do que o da badalada Hungria de 1954 que, convenhamos, nunca ganhou “p....” nenhuma.
Os dois a zero sobre a União Soviética não refletiram o que foi aquele jogo. Não fossem as grandes defesas do lendário Lev Yashin, apelidado de “Aranha Negra”, e os soviéticos teriam sofrido uma das maiores goleadas dos mundiais. O Brasil venceu e convenceu. Os dois gols foram de Vavá, ambos concluindo entortadas de Garrincha em zagueiros adversários.
A despeito da desconfiança da imprensa (sempre ela!) e da descrença da torcida, chegáramos às quartas-de-final com competência e autoridade. Fizéramos cinco gols, sem sofrer nenhum. E jogando um futebol artístico, alegre, de puro malabarismo e magia, mas objetivo e prático.
Essa expressiva e categórica vitória sobre a União Soviética ocorreu em 15 de junho de 1958, presenciada por 50.928 privilegiados espectadores, arbitrada pelo francês Maurice Guiguê. Nesse dia me convenci, de vez, que ninguém conseguiria parar o Brasil quando este era representado pelos seus maiores talentos. E, de fato, não conseguiu.
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