Obsessão por um sonho
Pedro J. Bondaczuk
A Copa do Mundo de 1966, disputada na Inglaterra, é a que me traz lembranças mais pungentes, não só em relação ao futebol (e a este nem tanto), mas aos rumos que minha vida havia tomado. Aquele Mundial foi disputado em um ano de imensos sacrifícios para mim, em que joguei para o alto relativa estabilidade econômica e social para batalhar por um dourado sonho de menino.
Estava, na ocasião, com 23 anos e meio (lembro que faço aniversário em janeiro). Ostentava, graças a Deus, uma saúde perfeita, invejável (característica, aliás, que ainda me acompanha, embora nunca se saiba até quando). Caso não estivesse hiper saudável, certamente não suportaria os sacrifícios a que teria que me submeter para conseguir o que tanto buscava.
Em fins de 1964, em plena ditadura militar, com vários dos meus companheiros e alguns amigos de infância “desaparecidos” (alguns reapareceram, outros não), resolvi dar um tempo no rádio (pois o período não era propício a quem tivesse senso crítico), deixar a casa dos meus pais e até a cidade pela qual tinha tanto carinho (São Caetano do Sul) e encarar o mundo de peito aberto, sozinho e em outro lugar.
Optei por instalar-me em Campinas para empreender essa luta incerta e solitária, que me exigiu, muitas vezes, que eu me esforçasse até o limite da minha capacidade física, mental, psicológica e até afetiva. É interessante fazer essa divisão da vida em segmentos de quatro anos cada – intervalo entre uma Copa do Mundo e outra – pois nos leva a constatações e conclusões até surpreendentes. É mais fácil para esquadrinhá-la, dissecá-la e esmiuçá-la.
No meu caso, descobri (e venho descobrindo ao longo da redação destas reminiscências) o quanto minha vida mudou – ora com avanços inusitados e, portanto para melhor, ora com quedas e recuos catastróficos, ou seja, para pior – como se fosse uma gangorra surreal.
Ao fazer essa mudança, mudei, também, de função profissional, embora sem deixar de exercer jornalismo. De homem de rádio, decidi tornar-me assessor de imprensa (grande novidade na época) de renomada empresa multinacional francesa do ramo químico, a Rhodia, sediada na Fazenda São Francisco, no recém-criado município de Paulínia, ex-distrito de Campinas que, em 28 de fevereiro de 1964, conquistou sua autonomia.
Outra mudança fundamental na minha vida, e esta até um tanto dramática, foi o fato de voltar a estudar. Queria porque queria ser médico e matriculei-me num cursinho para preparar-me para encarar a barra pesada do vestibular, e de Medicina, que naquele tempo era, disparado, o curso mais procurado em todo o País por estudantes que, como eu, tiveram o privilégio de só estudar em colégios particulares, caros, mas de ensino de qualidade.
A concorrência era de enlouquecer! A desproporção entre candidatos e vagas era brutal. No ano que consegui ser aprovado, 1967 (um após a Copa da Inglaterra, portanto), havia 70 mil inscritos (ou em torno disso, pois a cifra exata não me lembro). Desses, somente dois mil e tantos seriam aprovados. Reitero, fui um deles.
A seleção para esses cobiçadíssimos lugares era feita por uma instituição da qual me lembro só da sigla, mas não o que ela significava: CESCEM. Sei que era ligada à Fundação Carlos Chagas. Ao fazer a inscrição, o candidato poderia fazer cinco opções de faculdades para cursar. Sua colocação é que iria determinar em qual delas faria a matricula (se aprovado, claro). Ou seja, se a sua média estivesse entre as duas mil melhores.
Na ocasião, minha primeira opção foi a Faculdade de Medicina de Pinheiros. As outras foram Sorocaba, Marília, Campinas e Botucatu. Não escolhi a da cidade em que morava em primeiro lugar porque era recém-criada e funcionava precariamente no prédio da Maternidade local. Minha colocação fez com que ficasse com uma vaga na escola superior da minha quinta opção. Ou seja, em Botucatu.
Passei raspando, é verdade, mas pelas circunstâncias, já foi uma vitória fantástica o fato de ser aprovado. E olhem que quase fracassei. Tanto sacrifício, para quase ficar pelo caminho... Ainda bem que não fiquei, mas um ano depois, tranquei a matrícula (um dia explico porque) para nunca mais destrancar.
Minha vida, em 1966, era de causar inveja ao mais durão dos espartanos. Acordava às 7 horas da manhã e saía correndo para o ponto de ônibus, sem tomar café, pois como morava sozinho, não tinha quem me fizesse. Às 7h30 tinha que estar em minha seção, na Rhodia, já trabalhando. Saía do trabalho às 17h15 e mal dava para tomar banho, aquele de “gato”.
Jantar? Só depois das aulas do cursinho, por volta da meia-noite. Engolia uma marmita que sequer me dava o trabalho de conferir o que continha, e invariavelmente com um livro debaixo do nariz. Estudava até as duas da madrugada quando, então, ia cambaleando para a cama, repetindo, mentalmente, processos de química, pontos inteiros de biologia ou fórmulas de física, que poderiam ser de mecânica, de óptica, de eletricidade e magnetismo, e assim por diante.
Dormia, no máximo, cinco horas. Quantas vezes me senti tentado a arrebentar, a amassar, a pulverizar o despertador quando este me acordava! E não me permitia nenhuma trégua nessa rotina. Sábados, domingos e feriados eu passava estudando, da manhã até a madrugada.
Meu único lazer era acompanhar os jogos da Ponte Preta num radinho de pilha da marca Mitsubishi, que resistiu, comigo, por mais de vinte anos sem pifar e ouvir o noticiário esportivo. Quantas vezes quis ir ao Estádio Moisés Lucarelli para acompanhar meu time de coração, que não conseguia sair da Segunda Divisão do Campeonato Paulista nem com reza brava! Conseguia, no entanto, resistir a essa (para mim)quase irresistível tentação, para estudar, estudar e estudar.
Nunca deixei, claro, de gostar de futebol. Mas a luta pelo meu sonho virara obsessão. Eu estava disposto a sacrificar qualquer coisa, mas qualquer mesmo, para conseguir o que tanto queria. Por isso, não senti tanto o fracasso brasileiro na Copa do Mundo da Inglaterra. Desconfio que nem os jogadores que integraram aquela Seleção (salvo honrosas exceções) sentiram. Outros tantos insucessos – inclusive este, de 2010 – iriam doer (como está doendo) muito mais.
Pedro J. Bondaczuk
A Copa do Mundo de 1966, disputada na Inglaterra, é a que me traz lembranças mais pungentes, não só em relação ao futebol (e a este nem tanto), mas aos rumos que minha vida havia tomado. Aquele Mundial foi disputado em um ano de imensos sacrifícios para mim, em que joguei para o alto relativa estabilidade econômica e social para batalhar por um dourado sonho de menino.
Estava, na ocasião, com 23 anos e meio (lembro que faço aniversário em janeiro). Ostentava, graças a Deus, uma saúde perfeita, invejável (característica, aliás, que ainda me acompanha, embora nunca se saiba até quando). Caso não estivesse hiper saudável, certamente não suportaria os sacrifícios a que teria que me submeter para conseguir o que tanto buscava.
Em fins de 1964, em plena ditadura militar, com vários dos meus companheiros e alguns amigos de infância “desaparecidos” (alguns reapareceram, outros não), resolvi dar um tempo no rádio (pois o período não era propício a quem tivesse senso crítico), deixar a casa dos meus pais e até a cidade pela qual tinha tanto carinho (São Caetano do Sul) e encarar o mundo de peito aberto, sozinho e em outro lugar.
Optei por instalar-me em Campinas para empreender essa luta incerta e solitária, que me exigiu, muitas vezes, que eu me esforçasse até o limite da minha capacidade física, mental, psicológica e até afetiva. É interessante fazer essa divisão da vida em segmentos de quatro anos cada – intervalo entre uma Copa do Mundo e outra – pois nos leva a constatações e conclusões até surpreendentes. É mais fácil para esquadrinhá-la, dissecá-la e esmiuçá-la.
No meu caso, descobri (e venho descobrindo ao longo da redação destas reminiscências) o quanto minha vida mudou – ora com avanços inusitados e, portanto para melhor, ora com quedas e recuos catastróficos, ou seja, para pior – como se fosse uma gangorra surreal.
Ao fazer essa mudança, mudei, também, de função profissional, embora sem deixar de exercer jornalismo. De homem de rádio, decidi tornar-me assessor de imprensa (grande novidade na época) de renomada empresa multinacional francesa do ramo químico, a Rhodia, sediada na Fazenda São Francisco, no recém-criado município de Paulínia, ex-distrito de Campinas que, em 28 de fevereiro de 1964, conquistou sua autonomia.
Outra mudança fundamental na minha vida, e esta até um tanto dramática, foi o fato de voltar a estudar. Queria porque queria ser médico e matriculei-me num cursinho para preparar-me para encarar a barra pesada do vestibular, e de Medicina, que naquele tempo era, disparado, o curso mais procurado em todo o País por estudantes que, como eu, tiveram o privilégio de só estudar em colégios particulares, caros, mas de ensino de qualidade.
A concorrência era de enlouquecer! A desproporção entre candidatos e vagas era brutal. No ano que consegui ser aprovado, 1967 (um após a Copa da Inglaterra, portanto), havia 70 mil inscritos (ou em torno disso, pois a cifra exata não me lembro). Desses, somente dois mil e tantos seriam aprovados. Reitero, fui um deles.
A seleção para esses cobiçadíssimos lugares era feita por uma instituição da qual me lembro só da sigla, mas não o que ela significava: CESCEM. Sei que era ligada à Fundação Carlos Chagas. Ao fazer a inscrição, o candidato poderia fazer cinco opções de faculdades para cursar. Sua colocação é que iria determinar em qual delas faria a matricula (se aprovado, claro). Ou seja, se a sua média estivesse entre as duas mil melhores.
Na ocasião, minha primeira opção foi a Faculdade de Medicina de Pinheiros. As outras foram Sorocaba, Marília, Campinas e Botucatu. Não escolhi a da cidade em que morava em primeiro lugar porque era recém-criada e funcionava precariamente no prédio da Maternidade local. Minha colocação fez com que ficasse com uma vaga na escola superior da minha quinta opção. Ou seja, em Botucatu.
Passei raspando, é verdade, mas pelas circunstâncias, já foi uma vitória fantástica o fato de ser aprovado. E olhem que quase fracassei. Tanto sacrifício, para quase ficar pelo caminho... Ainda bem que não fiquei, mas um ano depois, tranquei a matrícula (um dia explico porque) para nunca mais destrancar.
Minha vida, em 1966, era de causar inveja ao mais durão dos espartanos. Acordava às 7 horas da manhã e saía correndo para o ponto de ônibus, sem tomar café, pois como morava sozinho, não tinha quem me fizesse. Às 7h30 tinha que estar em minha seção, na Rhodia, já trabalhando. Saía do trabalho às 17h15 e mal dava para tomar banho, aquele de “gato”.
Jantar? Só depois das aulas do cursinho, por volta da meia-noite. Engolia uma marmita que sequer me dava o trabalho de conferir o que continha, e invariavelmente com um livro debaixo do nariz. Estudava até as duas da madrugada quando, então, ia cambaleando para a cama, repetindo, mentalmente, processos de química, pontos inteiros de biologia ou fórmulas de física, que poderiam ser de mecânica, de óptica, de eletricidade e magnetismo, e assim por diante.
Dormia, no máximo, cinco horas. Quantas vezes me senti tentado a arrebentar, a amassar, a pulverizar o despertador quando este me acordava! E não me permitia nenhuma trégua nessa rotina. Sábados, domingos e feriados eu passava estudando, da manhã até a madrugada.
Meu único lazer era acompanhar os jogos da Ponte Preta num radinho de pilha da marca Mitsubishi, que resistiu, comigo, por mais de vinte anos sem pifar e ouvir o noticiário esportivo. Quantas vezes quis ir ao Estádio Moisés Lucarelli para acompanhar meu time de coração, que não conseguia sair da Segunda Divisão do Campeonato Paulista nem com reza brava! Conseguia, no entanto, resistir a essa (para mim)quase irresistível tentação, para estudar, estudar e estudar.
Nunca deixei, claro, de gostar de futebol. Mas a luta pelo meu sonho virara obsessão. Eu estava disposto a sacrificar qualquer coisa, mas qualquer mesmo, para conseguir o que tanto queria. Por isso, não senti tanto o fracasso brasileiro na Copa do Mundo da Inglaterra. Desconfio que nem os jogadores que integraram aquela Seleção (salvo honrosas exceções) sentiram. Outros tantos insucessos – inclusive este, de 2010 – iriam doer (como está doendo) muito mais.
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